51. Viu, sentiu compaixão e cuidou dele (Lc 10,33-34)
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05.06.2023 | 20 minutos de leitura

Acadêmicos

RESUMO
A Campanha da Fraternidade de 2020 retira do texto do Evangelho segundo Lucas seu lema inspirador. Este lema encontra-se dentro da narrativa da parábola do Bom Samaritano. Com o objetivo de ajudar a melhor mergulhar na proposta que este lema inspira, o presente artigo apresenta uma breve análise exegético-hermenêutica dessa parábola. Através de criteriosa pesquisa bibliográfica e aplicação de métodos de exegese bíblica, o artigo traz uma breve apresentação do Evangelho segundo Lucas, com sua estrutura formal. Em seguida, contextualiza a perícope do Bom Samaritano dentro do referido evangelho. Por meio de uma análise mais detalhada do texto bíblico, são aprofundados os elementos trabalhados pela parábola, com ênfase na compreensão de quem seria o próximo que o evangelho deseja apresentar. Por fim, o artigo termina demonstrando alguns dos elementos desconcertantes da parábola, que questionam não somente seus ouvintes, mas a todos os cristãos através dos séculos.
Palavras-chave: bom samaritano; próximo; evangelho segundo Lucas
ABSTRACT
The 2020 Fraternity Campaign bases its inspiring motto on the Gospel according to Luke. This motto is part of the parable of the good Samaritan. In order to help better understand the proposal inspired by this motto, this article presents a brief exegetical-hermeneutic analysis of that parable. Through careful bibliographical research and application of biblical exegesis methods, the article brings a brief presentation of the Gospel according to Luke. It then contextualizes the parable of the Good Samaritan in the structure of the Gospel. Through a more detailed analysis of the biblical text, the parable elements are deepened to understand who is the "neighbor" that the gospel wants to present. Finally, the article ends by demonstrating some of the perplexing elements of the parable that question not only the listeners of the first century AD, but the Christians of all ages.
Keywords: Good Samaritan; neighbor; Gospel according to Luke
INTRODUÇÃO
A Campanha da Fraternidade de 2020 tem como tema Fraternidade e vida: dom e compromisso e, tomando como texto inspirador a parábola do Bom Samaritano, assumiu como lema a frase Viu, sentiu compaixão e cuidou dele (Lc 10,33-34).
Essa parábola, tão conhecida, corre o risco de não nos impactar com a força de sua mensagem justamente por sua popularidade entre as histórias contadas por Jesus. O fato de ser muito conhecida pode nos passar a impressão de que já a entendemos bem, ou pior, tornar-nos insensíveis a força de sua mensagem. Não nos enganemos, sua mensagem ainda nos interpela hoje. Com sua dinâmica narrativa e seus personagens, essa parábola nos coloca diante da necessidade de tomarmos uma posição diante do homem caído1.
1 O EVANGELHO DO CAMINHO
Vejamos, em um primeiro momento, alguns elementos gerais relativos ao Evangelho segundo Lucas para podermos, em seguida, tratar da parábola e de sua mensagem.
1.1 O CONTEXTO DO EVANGELHO
Os primeiros destinatários do Evangelho segundo Lucas pertencem ao ambiente helenista, possivelmente de Antioquia da Síria ou da Ásia Menor2. Trata-se, como deixa entrever o texto, de uma comunidade mista, com presença de cristãos de origem helênica e em número menor cristãos oriundos do judaísmo
A dedicatória da obra menciona certo Teófilo, figura literária, imagem do verdadeiro catecúmeno ou leitor cristão, representante não somente daqueles que viveram no final do século I d.C, mas também dos que pertencem às sucessivas gerações do cristianismo.
A intenção da obra está explicitada no prólogo: “para que verifiques a solidez dos ensinamentos que recebeste”3. O interesse é eminentemente catequético, o autor relê os eventos da história à luz da fé. Portanto, seu interesse é revigorar a fidelidade ao ensinamento e à prática transmitidos pela tradição. Lucas garante a autenticidade da doutrina mostrando que as práticas e os ensinamentos assumidos pelas comunidades de sua época estão enraizados no tempo de Jesus.
1.2 ELEMENTOS LITERÁRIOS DO EVANGELHO SEGUNDO LUCAS
Para nos ajudar a situarmos o texto do Bom Samaritano dentro do Evangelho lucano, vejamos brevemente a estrutura desta obra e seus principais temas teológicos.
1.2.1 Estrutura da obra e a parábola do Bom Samaritano
O Evangelho segundo Lucas pode ser dividido em três grandes partes, precedidas por uma parte introdutória4.
PARTE INTRODUTÓRIA:
- Prólogo Literário (1,1-4)
- Relatos sobre nascimento de João Batista e sobre o nascimento e infância de Jesus (1,5 ‒ 2,52)
- Díptico introdutório apresentando a atividade de João Batista e a unção e provação de Jesus (3,1 ‒ 4,13)
PRIMEIRA PARTE: A atividade de Jesus na Galileia (4,14 ‒ 9,50)
SEGUNDA PARTE: Caminho de Jesus para Jerusalém (9,51 ‒ 19,28)
TERCEIRA PARTE: Atividade de Jesus em Jerusalém (19,29 ‒ 24,53)
O texto do Bom Samaritano encontra-se dentro da segunda parte do Evangelho. Essa parte apresenta Jesus subindo para Jerusalém e é a parte mais longa de toda a obra. Nela temos o eixo em torno do qual gira a mensagem de Lucas, a comunidade cristã é uma comunidade que está no caminho de/com Jesus. Durante essa subida para Jerusalém, o evangelista apresenta Jesus ensinado, curando, discutindo com seus discípulos e adversários, tudo isso como uma forma pedagógica de ajudar sua comunidade a entender o que significa seguir Jesus e os elementos centrais de sua mensagem5.
Antes da cena na qual Jesus conta a parábola do Bom Samaritano, o caminho começa com uma controvérsia com os samaritanos,6 pois estes se recusaram a dar acolhida para Jesus e seus discípulos que subiam para Jerusalém, provocando o desejo de uma resposta violenta por parte de Tiago e João, mas que prontamente foi recusada por Jesus.
Após serem apresentados três relatos sobre as condições para o seguimento,7 Jesus envia setenta e dois discípulos para irem a sua frente nas cidades por onde ele pretendia passar, dando-lhes instruções sobre como proceder e o que deveriam anunciar.8
Em seguida, encontram-se três textos cujo tema é a alegria: em que deve consistir a alegria dos discípulos que retornaram da missão,9 a alegria de Jesus pelo Evangelho ser revelado aos pequeninos,10 a bem-aventurança que Jesus anuncia aos discípulos por eles poderem ver e ouvir o que outros desejaram, mas não puderam experimentar.11
A partir deste momento se abre a narrativa da parábola do Bom Samaritano.12
Após a parábola teremos a cena de Jesus na casa de Marta e Maria, onde se apresentará da escolha da melhor parte.13 Esse texto será seguido de um bloco que tratará sobre o tema da oração dividido em 3 partes: Jesus ensina seus discípulos a orar,14 Jesus ensina sobre a perseverança na oração15 e Jesus ensina sobre a eficácia da oração.16
A parábola do Bom Samaritano está inserida dentro deste contexto na estrutura do evangelho lucano.
1.2.2 Elementos teológicos do Evangelho segundo Lucas
Lucas recolhe as tradições sobre o ministério de Jesus, as reelabora e compõe uma catequese para a comunidade cristã. Nele o evangelista apresenta o caminho profético e salvador através do qual Deus Pai fez um trajeto com a humanidade, inicialmente com o povo da aliança, depois, através de Jesus, continuando com a comunidade da primeira geração cristã e, enfim, devendo percorrê-lo com cada geração até a plenitude do Reino para todos preparado.
Deus Pai estabeleceu um caminho de salvação por meio de uma promessa no passado (aliança com Israel), que se cumpriu em Jesus e que a igreja anuncia por palavras e testemunho até que esta via chegue ao cume na plenitude dos tempos.17
A obra de Lucas apresenta os grandes eventos da história da humanidade identificando com o caminho salvador determinado por Deus Pai: João, o batista, é o término do tempo da promessa.18 João é o elo entre a promessa e seu cumprimento através da mensagem de conversão por ele proclamada.19 Com Jesus inaugura-se o tempo do cumprimento, ele é o centro deste tempo salvífico.20
Entre os evangelistas, Lucas é o que mais utiliza o termo salvar e seus correlatos. O termo salvar (sozeîn) aparece dezessete vezes no seu Evangelho.21 Entretanto, Lucas não apresenta uma perspectiva escatológica sobre o tema como fazem os outros evangelistas. Ele entende a salvação como um acontecimento que está em processo dentro da história, por isso, para ele a história é uma história de salvação, prometida no Antigo Testamento, cumprida na pessoa de Jesus e continuada pela comunidade dos discípulos.
Essa salvação cumprida na pessoa de Jesus é apresentada por Lucas em cenas bem concretas, pois ela, apesar de ser universal, tem seus destinatários privilegiados: os pobres, os pecadores, os marginalizados, as mulheres, os samaritanos.22
O caminho salvador que a comunidade cristã é chamada a seguir é apresentado por Lucas em toda sua obra, mas, de modo particular, na sua segunda parte de seu Evangelho a qual ele dedica ao caminho de Jesus que sobe em direção à Jerusalém. Nessa longa parte, Lucas narra várias cenas por meio das quais deseja ensinar sobre esse caminho, sobre seus destinatários, sobre a ética que deve conduzir a vida dos seguidores de Jesus. Dentre essas cenas encontra-se a narrativa da parábola do Bom Samaritano.
2 O BOM SAMARITANO
Entrando diretamente na análise do texto do Bom Samaritano, recordamos que em Lc 10,17-20, encerrando o relatório da missão dos 72 discípulos, se afirma que Jesus exultou no Espírito, fazendo uma ação de graças ao Pai e Senhor porque revelou, aos pequeninos, aquilo que está oculto aos sábios e experientes. Essa revelação se dá através de Jesus, o único que conhece o Pai.
O contexto imediatamente posterior demonstra a atitude de um sábio, o Doutor da Lei, e de um pequenino, o Samaritano. Neste contexto Jesus esclarece a seus discípulos que o seu caminho salvífico é de amor-misericórdia.
O Doutor da Lei se dirige a Jesus com o objetivo de testar a sua interpretação da Torah a respeito da vida eterna. Esse tema era constantemente discutido pelos rabinos da época, os quais haviam resumido a prática da Torah à tarefa de amar a Deus e ao próximo23 . O Doutor da Lei demonstra estar informado sobre essas questões de forma teórica, mas não sabe como praticar o mandamento devido à amplitude de significados para o termo próximo no idioma hebraico, no qual foi escrita a Torah.
No imperativo “amarás o teu próximo como a ti mesmo”,24 o termo que geralmente se traduz por próximo pode significar amigo, vizinho, conhecido ou sócio. No tempo de Jesus, o próximo estava restrito aos membros do grupo de afinidade, ou seja, aos que compartilhavam da mesma ideologia religiosa e política.25 Por isso, o Doutor da Lei deseja precisar o campo da própria ação perguntando a Jesus qual seria, concretamente, o destinatário específico do seu agir.
Jesus conta a parábola do Bom Samaritano para ajudar o Doutor da Lei a descobrir a resposta dentro de si mesmo.
2.1 ANÁLISE DO TEXTO DO BOM SAMARITANO
Podemos, agora, a luz do contexto mais amplo do Evangelho segundo Lucas, analisar o texto da parábola para podermos perceber toda a sua riqueza e a força de sua mensagem.
2.1.1 As molduras da parábola
O texto de Lc 10,25-35 é composto por uma parábola e dois momentos de diálogo entre Jesus e um Doutor da Lei. Especificamente a parábola está emoldurada pelos diálogos que se constituem como perguntas e respostas.
- Moldura1: v. 25-28:
A. Pergunta do Doutor da Lei: Que devo fazer para herdar a vida eterna? (v.25)
B. Pergunta de Jesus: Que está escrito na Lei? Como lês? (v. 26)B’. Resposta do doutor da Lei: Amar a Deus e ao Próximo (v. 27)
A’. Resposta de Jesus: “faze isto e viverás” (v.28)
Essa moldura nos orienta como interpretar o texto. Primeiramente, deixa claro que o autor escolheu a melhor forma de expor os ensinamentos de Jesus através de um texto. Geralmente os relatos bíblicos são estruturados em paralelismos. Podemos comparar o texto bíblico com um bolo confeitado com camadas de chocolate e de baunilha, sendo o mesmo sabor na primeira e na última26.
O interesse do Doutor da Lei parece ser fazer o mínimo esforço para conseguir um grande prêmio, ou querer saborear a camada final sem provar das outras, assim irá estragar o bolo. À pergunta sobre o agir adequado para herdar a vida eterna, Jesus responde com a pergunta sobre o que está escrito na Lei (Torah) e como o seu interlocutor a interpreta.
O Doutor da Lei interpreta a Escritura resumindo-a num duplo mandamento de amor, combinando Dt 6,4-5 e Lv 19,18, conforme era costume naquela época. Sendo assim, se a resposta está claramente fixada na Lei, não há o que debater, basta por em prática o que está indicado. Note-se que a ênfase dessa moldura é a relação entre a Torah e a tarefa de amar, nisto consiste a participação na vida eterna. É praticando o amor que se vive para a eternidade. Isso elimina qualquer postura legalista ou preconceituosa a respeito do Antigo Testamento.
Esse diálogo poderia ter terminado aí (como se faz nos paralelos de Mateus e Marcos), mas na versão lucana o Doutor da Lei faz a Jesus uma questão adicional querendo se justificar a respeito do conceito próximo. O significado desse termo não era óbvio e o Doutor da Lei quer delimitar seu campo de ação. Ele quer saber concretamente a quem deve amar.
Passemos à segunda parte do diálogo, para em seguida considerarmos a parábola:
- Moldura 2: v. 29.35-36
A. Pergunta do Doutor da Lei (Campo restrito de ação): Quem é meu próximo? (v. 29)
B. Pergunta de Jesus (sujeito da ação): Quem se mostrou próximo? (v. 36)B’. Resposta do Doutor da Lei (sujeito da ação): Quem agiu com Misericórdia (amor) (v. 37a)
A’. Resposta de Jesus (Campo amplo de ação): faze o mesmo (v. 37b)
Se do amor ao próximo depende nada menos que a vida eterna, parece natural que se queira determinar indubitavelmente quem é o próximo. Querendo assegurar-se de que herdará a vida eterna, o Doutor da Lei mostra que necessita de uma definição mais incontestável a respeito daquele a quem deve amar.
Depois da parábola, o diálogo continua com uma contrapergunta de Jesus. Então algo inesperado acontece, as alternativas de resposta que Jesus oferece ao Doutor da Lei (qual dos três?) redireciona a atenção para os sujeitos da ação, neles é que está a definição de próximo. Sem perceber a reviravolta implicada nas alternativas de resposta que Jesus lhe oferece, o Doutor da Lei responde que o próximo foi aquele que agiu com misericórdia. O próximo não é uma categoria a qual o Doutor da Lei está autorizado a aplicar aos outros; ao contrário, traz a forma de um desafio a um agente ético capaz de ser ou de não ser próximo de alguém. O próximo não é alguém a quem se deve ajudar, mas é alguém que se aproximou para ajudar. No imperativo ético dado por Jesus (vai e faze o mesmo) o Doutor da Lei é convidado a ser o “próximo” das pessoas que atravessarem a sua trajetória histórica. Agindo dessa forma estará em direção à vida eterna.
Neste caso, as camadas do bolo vão enfocar que o mandamento de amar o próximo significa agir com misericórdia com cada pessoa que encontrarmos pelo caminho. O nosso agir, com relação às pessoas, deve se espelhar no agir do samaritano.
2.1.2 A parábola do Bom Samaritano (10,30-35)
O enredo da história é bastante direto e sua estrutura é muito simples:
A. Uma vítima (10,30)B. Os distantes (10,31-32)A’. O próximo (10,33-35)
Esse tipo de estrutura literária tem o objetivo de manter o leitor no foco, sem distrações com assuntos secundários que estão presentes apenas em função do objetivo principal. Neste caso o foco está numa denúncia das atitudes contraditórias do levita e do sacerdote.
O texto começa mencionando que um homem, alguém que permanecerá anônimo até o final, é assaltado no caminho para Jericó e deixado semimorto à margem da estrada.
A descrição pormenorizada do que acontece com a vítima alude ao termo hebraico presente no mandamento de Lv 19,18. O vocábulo rea aparece muitas vezes na bíblia hebraica. É próprio da linguagem cotidiana para relacionamentos e pode designar amigo, vizinho, conhecido ou sócio etc. Em seu sentido teológico significa o outro, o não-eu, o diferente de mim.
Portanto, quando o texto de Lucas afirma que a vítima foi despojada de tudo, quer dizer que ficou completamente nua e que, portanto, não poderia ser identificada pelas vestes. Trata-se apenas de certo homem do qual não é possível saber sua etnia, classe social ou religião. A vítima é o outro, o anônimo que interpela os transeuntes a uma ação.
3 UMA PARÁBOLA DESCONCERTANTE
O texto do Evangelho afirma que passaram por ali um sacerdote e um levita e, preocupados com a possibilidade de se tornarem ritualmente impuros pelo contato com um cadáver, seguem adiante sem se aproximar para ajudar.
Nesse ponto da parábola há um exagero para enfatizar o mau exemplo desses dois personagens, pois eles estão descendo de Jerusalém e isto significa que já realizaram a liturgia e, portanto, não deveriam estar preocupados com a pureza ritual e sim em cumprir o mandamento do amor ao próximo.
A parábola deixa claro que temos um mau exemplo dado por pessoas de quem se deveria esperar um bom exemplo, porque elas não põem a Torah em prática.
É um menosprezado Samaritano,27 evidentemente desinteressado sobre a pureza ritual, quem se aproxima da vítima, para curar suas feridas, levá-la a um abrigo e instruir o hospedeiro a não economizar dinheiro durante o tratamento das feridas.
Considerado em si mesmo, o relato sobre um homem que foi ferido por ladrões poderia conduzir os leitores que compartilham da perspectiva do Doutor da Lei a supor que o próximo é apenas o homem em necessidade. Nesse tipo de interpretação, os detalhes da narrativa são, em última instância, supérfluos, e a parábola é somente mais um modo atrativo de ilustrar uma resposta bastante direta para a questão do Doutor da Lei: teu próximo é alguém que precisa de tua ajuda. Contudo, esse tipo de interpretação está longe de ser aquela que Jesus faz e deseja que seus seguidores compartilhem, ou seja, outra maneira de entender o texto de Lv 19,18.
“Qual dos três foi o próximo daquele que caiu nas mãos dos assaltantes?”.28 Supõe-se que a resposta deve ser um dos que passaram por ali, ou seja, o sacerdote, o levita ou o samaritano. Em nenhuma das alternativas dadas por Jesus está a vítima.
Quando não responde a pergunta do Doutor da Lei, mas, ao contrário, a envia de volta numa contrapergunta, Jesus força o Doutor da Lei a aplicar o termo próximo não para a vítima do assalto, mas para “o que mostrou [literalmente: fez] misericórdia para com ele”.29 Na verdade, o mandamento da Torah deveria ser traduzido por amar o outro, pois as traduções modernas quando escrevem amar o próximo estão influenciadas por interpretações posteriores.
Contudo, o efeito da pergunta de Jesus não é somente substituir uma definição possível de próximo (alguém em necessidade) por outra (alguém que satisfaz as necessidades de outro). Trata-se da vida eterna e do cumprimento das Escrituras na prática do amor. A vivência do seguimento de Jesus é a execução da vocação do ser humano expressa na totalidade das Escrituras que, em resumo, implica na tarefa de amar efetivamente a Deus e ao outro que nos interpela no caminho para a vida eterna.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O próximo é o que se aproximou, ou como afirmou o Doutor da Lei, o que praticou (literalmente: fez) misericórdia. De fato, as antigas traduções das Escrituras, tanto para a língua aramaica, quanto para o idioma grego, em Lv 19,18 usam termos que denotam compaixão.30
O Doutor da Lei, grande conhecedor da Torah, sabe com que tipo de amor se deve amar o outro. Ele e os personagens do início da parábola foram apresentados como pessoas cheias de perfeições, mas sem profundidade na espiritualidade, entendida como relacionamento profundo e íntimo com Deus, tendo consequências práticas na vida cotidiana. Eles representam pessoas de nossa época que tem uma religiosidade intimista e subjetivista, mas sem uma experiência pessoal com o Deus misericordioso.
Essas pessoas necessitam passar por um processo de reiniciação cristã para que possam viver radicalmente o seguimento de Jesus como adesão pessoal de vida e não apenas como crenças em formulações doutrinárias. Os seguidores de Jesus sabem que devem amar como Jesus amou, ter misericórdia como Jesus teve misericórdia, pois ele nos mostrou que essa atitude partia de Deus mesmo: “Sede misericordiosos, como também é misericordioso vosso Pai”. 31
REFERÊNCIAS
BÍBLIA de Jerusalém. Revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2002.
BERGANT, Diane; KARRIS, Robert J. Comentário Bíblico. V. III. Evangelhos e Atos, Cartas, Apocalipse. 3a. Edição, São Paulo: Loyola, 2001
FABRIS, Rinaldo. O Evangelho segundo Lucas. In: FABRIS, Rinaldo; MAGGIONI, Bruno. Os Evangelhos II. 4 ed. São Paulo: Loyola, 2006.
MARCONI, Benito. Os evangelhos sinóticos: formação, redação, teologia. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 2004.
MAIER, Johann. Entre os dois Testamentos: história e religião na época do Segundo Templo. São Paulo: Loyola, 2005
MONASTÉRIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodrìguez. Evangelhos e Atos dos Apóstolos. São Paulo: Ave Maia, 2006.
PIKAZA, Xabier; SILANES, Nereo. Dicionário Teológico: O Deus Cristão. São Paulo: Paulus,1988.
SILVA, Cássio Murilo Dias da. Leia a Bíblia como literatura. São Paulo: Loyola, 2007.
_____________________
1 BÍBLIA de Jerusalém. Revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2002; Lc 10,30.
2 BERGANT, Diane; KARRIS, Robert J. Comentário Bíblico, V. III. Evangelhos e Atos, Cartas, Apocalipse. 3a. Edição, São Paulo: Loyola, 2001, p. 73: “Para os leitores de Lucas, a geografia, a linguagem e as condições religiosas e políticas da Palestina eram estranhas e remotas. Muitos não estavam familiarizados com os escritos judaicos aos quais os pregadores se referiam com frequência ao explicar a história de Jesus”.
3 Lc 1,4.
4 Tomamos por base o esquema apresentado por MONASTÉRIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodrìguez. Evangelhos e Atos dos Apóstolos. São Paulo: Ave Maia, 2006. p. 284-285.
5 FABRIS, Rinaldo. O Evangelho segundo Lucas. In: FABRIS, Rinaldo; MAGGIONI, Bruno. Os Evangelhos II. 4 ed. São Paulo: Loyola, 2006, p. 12-13.
6 Lc 9,51-55.
7 Lc 9,57-62.
8 Lc 10,1-16.
9 Lc 10,17-20.
10 Lc 10,21-22.
11 Lc 10,23-24.
12 Lc 10,25-37.
13 Lc 10,38-42.
14 Lc 11,1-4.
15 Lc 11,5-8.
16 Lc 11,9-13.
17 Lc 16,16.
18 Lc 3,4-6; Is 40,3-5.
19 Lc 3,3ss.
20 Lc 4,18-19; Is 61,1-2.
21 MARCONI, Benito. Os evangelhos sinóticos: formação, redação, teologia. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 2004. p. 160.
22 MONASTÉRIO; CARMONA, 2006, p. 318-322.
23 MAIER, Johann. Entre os dois Testamentos: história e religião na época do Segundo Templo. São Paulo: Loyola, 2005, p. 230.
24 Lv 19,18.
25 FABRIS, 2006, p. 126.
26 SILVA, Cássio Murilo Dias da. Leia a Bíblia como literatura. São Paulo: Loyola, 2007, p. 79
27 Lucas, ao colocar essa parábola após a cena da rejeição dos samaritanos à passagem de Jesus com seus discípulos pela Samaria, oferece um contrapondo, reforçando o elemento desconcertante dessa parábola para os leitores de seu evangelho.
28 Lc 10,36.
29 Lc 10,37.
30 A versão aramaica usa o termo raham, a grega usa agapao. O termo aramaico tem a mesma raiz que a palavra útero (réhem) e denota “entranhas de misericórdia”. O vocábulo grego é o mesmo para o ágape cristão. Cf. PIKAZA, Xabier; SILANES, Nereo. Dicionário Teológico: O Deus Cristão. São Paulo: Paulus,1988, p.646-647
31 Lc 6,36.
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