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56. Novas configurações dos sujeitos urbanos

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12.08.2024 | 10 minutos de leitura
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Acadêmicos
56. Novas configurações dos sujeitos urbanos
Entrevista de Edward Guimarães a
Solange Maria do Carmo e Moisés Sbardelotto


- Solange, vivemos uma mudança epocal. Mudam-se os valores, a gramática simbólica, o modo de amar, viver e sentir a vida. Essa mudança está intimamente relacionada com o indivíduo, com a emergência da subjetividade, com o desejo de ser senhor de si, de ser livre e de construir para si uma identidade confiável. Essas mudanças são mais visíveis, são bem mais percebidas, no mundo urbano. O que dizer desse indivíduo pós-moderno urbano e como essas mudanças do indivíduo afetam a pastoral das igrejas cristãs? 

A emergência da subjetividade é uma marca da modernidade e, na pós-modernidade, essa característica ganhou contornos ainda mais visíveis. Neste mundo complexo, a homogeneidade de antes deu lugar à pluralidade e à multirreferencialidade. Se, na cristandade, a religião dava o tom da sociedade e delineava o perfil dos indivíduos, na modernidade, a razão ocupou seu espaço. No entanto, de certa forma, também a razão garantia a uniformidade do modo de pensar e de viver. 
Na pós-modernidade, essa hegemonia não existe mais. A diversidade é tal que os indivíduos se sentem soltos, desvinculados de tudo e de todos, ficando à mercê de toda espécie de ventos que regulam as modas do momento. Diante de tal desligamento das pertenças, o indivíduo passa a ter como maior obrigação a sua liberdade, pois ele pode ser o que quiser ser, ou o que conseguir ser. Para não ficar como um barco à deriva, sem nenhuma bússola, os pós-modernos devem construir para si uma identidade que seja confiável, o que é um trabalho doloroso e árduo mas necessário. 
Nos grandes centros urbanos, essa liberdade de ser se mostra bem mais clara que nas cidades interioranas, nas quais a tradição ainda conserva seu peso. Mas também nesses ambientes, por causa da globalização e dos meios de comunicação, a emergência da subjetividade pode ser percebida. Já não se pensa e vive mais como nos tempos de nossos pais e avós, mesmo nas cidadezinhas mais pequeninhas que sobrevivem por aí.
As igrejas cristãs, se querem de fato comunicar a boa nova de Jesus aos nossos contemporâneos, não devem ignorar essa marca do nosso tempo. Aquela fé engessada, imutável nas suas formulações dogmáticas, nas expressões litúrgicas e num único modo de viver, não dá conta mais de falar ao coração do homem e da mulher de hoje. Uma outra gramática simbólica se implantou no nosso mundo e precisamos conhecê-la e assumi-la, se queremos que a fé cristã seja uma proposta razoável para nosso tempo. Caso contrário, como afirmou o catequeta Emilio Alberich, falaremos para um público que não existe, sobre algo que não lhes interessa, respondendo a perguntas que não lhes dizem respeito. Se fazemos assim, a fé cristã, em vez de ser boa nova, sempre capaz de produzir sentido e transformar os corações, se transformará em um lengalenga que não interessa a ninguém, uma mensagem sem frescor, com cheiro de mofo. A práxis pastoral não pode ignorar essa mudança epocal. Ela precisa tomar a sério a emergência da subjetividade, e a primeira iniciativa é ocupar um lugar de humildade e de diálogo, sem querer impor nossa verdade, nosso modo de viver, rezar, celebrar etc. Sem isso, nossa pastoral estará fadada ao fracasso já na largada.

- Moisés, uma das mudanças marcantes de nosso mundo atual diz respeito às novas tecnologias, especialmente às redes sociais. O que salta aos olhos nas redes sociais nos dá material para falar algo sobre esse novo sujeito urbano, sobre seu modo de agir e de pensar, de crer e de amar? Elas são um espelho do indivíduo pós moderno, especialmente do homem e da mulher urbanos?  – 8’

- Solange, você afirma que o indivíduo pós-moderno, especialmente das grandes cidades, é um indivíduo à procura de si, um indivíduo que deseja ser sujeito de si mesmo. Isso tem a ver com a sociedade complexa na qual vivemos, da qual os grandes centros urbanos são a amostra mais legítima. Ao contrário da sociedade – sempre tão multirreferencial – as igrejas cristãs costumam ser bastante monorreferenciais, com uma palavra única, muitas vezes fechada e definitiva. A diversidade e a liberdade costumam assustar as comunidades eclesiais. Como fazer pastoral nesse mundo tão complexo sem negligenciar essa nova configuração dos sujeitos urbanos, esse sujeito que deseja ser o que ele quiser ser ou o que ele consegue ser?
A diversidade é uma marcada da sociedade atual, mas também sempre foi uma característica da igreja cristã. Nas origens, não tínhamos um único modo de celebrar, de crer, de formar comunidades. Ao contrário, havia diversas eclesiologias e muitas teologias. Prova disso são os quatro Evangelhos canônicos, cuja imagem de Jesus não é exatamente a mesma e cuja finalidade catequética é distinta. Além disso, em Atos dos Apóstolos e nas Cartas Paulinas, observamos diversos tipos de organização eclesial e também de teologias. 
A diversidade é um dom, uma graça, uma riqueza para a fé. Infelizmente, com o passar dos anos, especialmente depois de a Igreja e o Estado se unirem no século IV dC, para unificar o império foi preciso unificar a religião e as expressões de fé. Desde então, a Igreja Católica se tornou hegemônica e sua voz passou a ser a verdade definitiva que todos deveriam seguir. Afeiçoamo-nos a esse modo de ser igreja da cristandade e temos dificuldade para repensar nossa eclesiologia e para conviver com as diferentes expressões de fé dentro da comunidade cristã. Essa uniformização tem seu preço, especialmente nesses tempos complexos, nos quais a voz da Igreja  Católica se tornou apenas uma voz a mais em meio a tantas ofertas de sentido que estão presentes na sociedade.  
A diversidade e a liberdade não deveriam assustar nem causar receios aos crentes, pois é “para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gl 5,1), como afirma Paulo. Ou ainda, “onde há o Espírito de Deus, aí está a liberdade” (2Cor 3,17). Para fazer pastoral no tempo que se chama hoje, é preciso tomar a sério a liberdade dos indivíduos. A Igreja Católica precisa entender que ela não é mais a voz decisiva na vida dos crentes. Cada católico tem de ter o direito de responder livre, consciente e pessoalmente a Jesus Cristo, que o interpela a entrar no seu seguimento. Nenhuma instância, nem mesmo a doutrina da Igreja, pode superar a instância da consciência, como lembra o Vaticano II. Recordando Agostinho de Hipona, é lá no íntimo de nós mesmos que Deus se manifesta. É preciso respeitar esse espaço sagrado do ser. E é preciso reconhecer Deus agindo em cada história, em cada narrativa individual. A pastoral hoje ou educa para a liberdade ou não há espaço para ela no coração de nossos contemporâneos. A boa nova de Jesus afirma as subjetividades, as verdades mais profundas do sujeito. Se a fé obriga o indivíduo a ser o que ele não é, logo ela não é fé cristã mesmo que seja transmitida pela Igreja. A fé é resposta pessoal, consciente e livre; não uma imposição da instituição ou uma herança social. Eliminar o pressuposto da cristandade e encarar com coragem esse mundo multirreferencial é condição sine qua non para o sucesso de qualquer ação pastoral, especialmente nas grandes cidades, em que a liberdade e a identidade pessoal são valores aos quais os indivíduos não renunciam, e não devem mesmo renunciar.

- Moisés, o rosto do sujeito urbano nas mídias é sempre um rosto ideal, feliz, muitas vezes relacionado a uma vida perfeita. No entanto, por outro lado, crescem as doenças psíquicas, tais como a depressão e outras doenças do gênero. Principalmente os jovens, não raras vezes, enveredam pelos caminhos da automutilação, do autoextermínio etc. Esse sujeito urbano tem duas faces? É possível fazer pastoral sem levar em conta esse mundo ideal do sujeito midiático? 7’

- Solange, a sociedade é complexa, multirreferencial, como você sempre afirma. Nas cidades, a multirreferencialiddade e a pluralidade podem ser vistas nas ruas. Mas ela é também contraditória, cheia de abismos, de situações que ferem a vida, tais como pobreza, desemprego, machismo, exploração dos indivíduos etc. Logo, parece que também não podemos falar de um sujeito único, igual, com um perfil homogêneo. Como fazer uma pastoral num mundo de indivíduos de muitas faces e com situações urbanas tão peculiares? 

A sociedade complexa não é uniforme, logo faz parte dela a contradição. Essa contradição pode ser notada nos abismos sociais. Se por um lado muitos reivindicam o direito à liberdade de ser o que querem e podem ser, outros ainda reivindicam direitos mínimos e básicos para sua sobrevivência. Temos uma imensa massa de pobres, de excluídos à margem da sociedade. O papa Francisco, grande amigo e defensor dos pobres, fala de periferias existenciais. Estão nessa periferia não-geográfica os negros, os pobres, os migrantes, as mulheres, os desempregados, as populações de rua, os presidiários, as populações originárias como os indígenas e quilombolas, assim como os LGBTQIA+ etc. Vivemos numa sociedade xenófoba, misógina, homofóbica, machista e aporofóbica, que odeia os pobres e as minorias. Mas também todos esses excluídos estão lutando por seu reconhecimento como sujeito. Temos aí os coletivos que são agregações de pessoas com lutas afins, que se organizam para defender sua identidade e seus direitos. Isso está muito presente nos grandes centros urbanos mais que nas cidades interioranas. Se a gente dá uma voltinha numa noite de sábado pela Praça da Liberdade aqui em BH, logo nota esses grupos urbanos em todo o espaço. 
Onde está a Igreja com sua pastoral, que não se faz presente nesses coletivos ou grupos urbanos? Por que não nos juntar a esses grupos para reconhecer o rosto de seus indivíduos e nos deixar interpelar por eles? Temos por aí várias experiências bacanas nesse sentido. Alguns líderes pastorais têm saído das sacristias para ir até essas populações, não para converter as pessoas ou impor a fé, mas para fazer comunhão com elas, para chorar suas dores, viver seus dramas, reconhecer suas necessidades e alimentar suas esperanças, como fez Jesus com as multidões que o seguiam. Não há uma fórmula pronta do fazer pastoral nesse mundo tão diversificado. Mas uma coisa é certa: sem respeitar as individualidades e sem abraçar a causa dos mais sofridos não há pastoral cristã autenticamente jesuana. 

Moisés, dentre as muitas faces dos indivíduos urbanos, o que vc acha que a Pastoral não pode ignorar? Que desejo mais profundo dos sujeitos urbanos precisa ser mais considerado na hora de planejar nossa ação pastoral nas cidades? 5’