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154. Anacronismo cristão e as violências da igreja atual

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28.08.2023 | 19 minutos de leitura
Fabiano Aguilar Satler
Diversos
154. Anacronismo cristão e as violências da igreja atual
O cristianismo é constitutivamente anacrônico. Mais precisamente, afirmamos: o evangelho é anacronicamente positivo. O sentido mais comum de anacronismo refere-se a transladar para épocas passadas valores, perspectivas, ideias, conceitos e objetos que passaram a ter existência em épocas posteriores. Mas, em um sentido mais amplo, anacronismo pode significar, também, a dissociação entre o tempo presente que nos toca viver e outros tempos, passados ou futuros. Nesse sentido é possível afirmar a natureza anacrônica do cristianismo. Não um anacronismo qualquer, mas, repetimos, um anacronismo positivo.

Uma experiência amadurecida de fé trinitária desperta, naquele que crê, uma percepção de inadequação com a realidade na qual ele está imerso, seja ela qual for. Diante da proposta e do projeto evangélico de Jesus, toda e qualquer realidade na qual estamos imersos – política, econômica, social, afetiva, ecológica, eclesial – converte-se, inevitavelmente, em algo obsoleto. O coração ganha as asas do desejo e nos projeta para um futuro sinalizado pela progressiva revelação de Deus e pela encarnação do Verbo. Nosso coração estará inquieto e insatisfeito, labutando e sempre à espera de uma realidade cujos horizonte e concretude nos escapam sempre. É este o sentido positivo do anacronismo cristão: vivemos a realidade do nosso tempo presente, enquanto o evangelho nos projeta em direção a um futuro que progressivamente nos afaste deste presente e nos aproxime de uma realidade mais sintonizada com os valores evangélicos. A teologia cunhou um termo específico e muito bem conhecido para essa experiência de anacronismo positivo: tensão escatológica. Significa que há algo da eternidade – a vida trinitária – sendo vivida já no presente da nossa vida. E é justamente a experiência benéfica dessas pequenas experiências comunitárias e pessoais de vida trinitária que nos fazem desejar que essa realidade tenuamente experimentada se converta em uma realidade totalmente envolvente e estruturante. Corações ao alto e adiante, pois já há algo da presença e ação benéficas de Deus em nossa vida pessoal e comunitária. 

A história é o campo onde se desenrola essa dinâmica. Nela o Verbo se fez carne. Em uma cultura de um tempo muito específico viveu e atuou. Sob a lei religiosa e civil de seu tempo, foi condenado à morte. Sua vida, entretanto, foi uma subversão da lógica, dos valores e da experiência religiosa do seu tempo. Atuando na realidade histórica em que se encarnou, fermentou-a com a experiência de Deus que amadurecia no seu dia a dia. Fazendo uso de uma metáfora cara a Teilhard de Chardin, com a sua vida, morte e ressurreição elevou com seus braços humanos a história para que ela pudesse contemplar a face de Deus. Entretanto, a história, lugar de transfiguração, converte-se, com frequência, em prisão para o cristianismo. 

Incapaz de romper com os agentes históricos dominantes de cada época e região, a igreja associa-se simbioticamente a eles, fornece-lhes o suporte teológico-religioso para seus propósitos, beneficiando-se do espólio resultante. Essa subversão da tensão escatológica cristã, esse caminhar em direção oposta a valores fundamentais evangélicos atemporais é o que podemos chamar de anacronismo eclesial negativo

Esse anacronismo negativo se manifesta quando, por exemplo, em determinada época, a sociedade civil advoga valores que podem ser definidos como a expressão civil e laica de valores evangélicos: abolicionismo, democracia, direitos humanos, justiça laboral, equidade de gênero, descriminalização da comunidade LGBTQIA+ etc. Entretanto, a igreja, na contramão dessas correntes civis, aferra-se a um passado e a mentalidades marcadas pela oposição a esses valores. Acontece, então, a dissociação entre amplos setores até então cristãos e a igreja, seguida do abandono eclesial. Foi assim com o surgimento da democracia moderna e do movimento proletário no final do século XIX. Mais recente, ocorreu o mesmo com o movimento feminista, que conquistou cidadania na década de 60 do século passado. A igreja, uma aliada natural dessas causas, foi, na verdade, um grande obstáculo. É possível afirmar que a maioria dos direitos civis consensuados pela maior parte do mundo civilizado foi conquistada apesar da oposição da igreja e não com a sua colaboração. Outra manifestação desse anacronismo negativo é o saudosismo sempre presente em diferentes sectores eclesiais, de uma realidade que pertence a outras épocas passadas, tempos de aparente ordem e verdades objetivas. Em uma palavra, tempos de segurança institucional e, como consequência, de ilusórias seguranças pessoais. A ilusão e a busca de um passado aparentemente ordeiro e seguro é sempre tentador frente a um presente aparentemente caótico e aberto a inúmeras possibilidades pouco claras. 

Com segurança, é possível afirmar que a manifestação mais aguda desse anacronismo cristão negativo foi a participação da igreja na escravidão africana nas Américas. A mais grave pela sua duração (mais de 300 anos), pela abrangência (três continentes envolvidos: África, Américas e Europa), pela cifra de africanos afetados (mais de 25 milhões, se somamos aos 12,5 milhões que sobreviveram à travessia do Atlântico os que faleceram na travessia e os mortos nas ações de captura em solo africano) e, principalmente, pelas consequências que ainda hoje perduram nas diferentes partes das Américas. A breve e rápida abordagem deste tema tem um propósito claro, como demonstraremos a seguir. 


Igreja e escravidão no Brasil 

Na segunda metade do século XVI e início do XVII, houve a transição do trabalho servil indígena para o trabalho escravo africano na América portuguesa. No final do século XVI, a Companhia de Jesus necessitava de meios financeiros para sustentar sua ampla atividade missionária. Na Ásia, essa necessidade foi satisfeita por meio de direitos de comercializar produtos ou da atividade fundiária. Nas Américas, por meio do trabalho compulsório dos indígenas sob sua administração. Na África, principalmente na região da atual Angola, por meio do tráfico negreiro. Essa incipiente atividade escravista jesuíta na costa ocidental africana cresceu junto com o trato dos viventes africanos e a implantação da sociedade escravista na América lusa. No século XVII, com o tráfico negreiro já consolidado, os jesuítas operavam nas duas margens do Atlântico: na costa de Angola, geradora de mão de obra escravizada, e na América portuguesa, ávida consumidora desses viventes transformados em mercadorias. Resta investigar se, como no ano de 1592, quando a Companhia possuía dois navios que faziam a rota Lisboa-Bahia-Lisboa, dedicados ao transporte de seus próprios missionários, de outros passageiros e de mercadorias, chegou a possuir seus próprios navios negreiros, participando, assim, na totalidade da cadeia escravista. A introdução de senzalas nos colégios e, principalmente, nas fazendas jesuítas, não foi um processo pacífico entre alguns de seus membros, pelo menos no início do processo. Houve vozes jesuítas, tanto em Roma, quanto nos colégios jesuítas da América lusa, que se levantaram tanto contra a atividade escravista em geral, como também contra a atividade escravista dos próprios jesuítas. Triunfou o pragmatismo jesuíta de então. É possível afirmar que, dada a unidade institucional da Companhia de Jesus e seus vários colégios e fazendas espalhados pelo território da América portuguesa, ela foi a maior proprietária de escravizados até sua expulsão em 1759. O conjunto de inventários das propriedades jesuítas expropriadas em 1759 pode ajudar-nos a estimar o alcance da atividade escravocrata jesuíta nessa época. Nesse ano, somente o engenho jesuíta de Sergipe do Conde, atual São Francisco do Conde, Bahia, possuía 698 escravizados. Uma das propriedades jesuítas mais emblemáticas foi a Fazenda de Santa Cruz, nos arredores da cidade do Rio de Janeiro. Sua sede e núcleo principal corresponde hoje ao bairro carioca de mesmo nome. Tratava-se de um imenso latifúndio que se estendia do atual município de Mangaratiba até Vassouras. Foi o maior complexo agropastoril do Brasil durante o século XVIII. Nessa fazenda trabalhavam cerca de 1.000 escravizados. Como já afirmou o historiador Luis Felipe de Alencastro, a Companhia possui inúmeros esqueletos no armário. 

Mas engana-se quem imaginar que a Companhia foi um ator eclesiástico isolado no campo da escravidão. Todas as três ordens religiosas que se instalaram no Brasil entre 1580 e 1587 (Carmelitas, Franciscanos e Beneditinos) se acomodaram rapidamente ao modus vivendi tropical, incorporando aos claustros conventuais as senzalas conventuais. Para carmelitas e beneditinos, a exemplo dos jesuítas, senzalas em suas fazendas de exploração agrícola e de criação de gado. Enganam-se também aqueles que, guiados mais pelo afã de branquear o passado escravista eclesial e menos pelos fatos historicamente documentados, afirmam que a escravidão conventual foi mais branda que a escravidão da casa grande. Não existe uma escravidão branda e outra severa, não há uma violência tolerável e outra menos tolerável. Contra os argumentos dos que buscam branquear a escravidão eclesial e o papel da igreja na sustentação da escravidão, encontramos, por exemplo, o relato do cronista franciscano do século XVIII, Fr. Antônio de Santa Maria Jaboatão, sobre a contratação de um capitão do mato para recuperar três escravos fugitivos, iniciativa complementada com a intercessão a Santo Antônio, célebre recuperador de objetos perdidos e, na mentalidade da época, também de escravos fugitivos. Outro exemplo é a queixa do Pe. Manuel de Sá contra um de seus companheiros, Pe. Pedro Leitão, enviada em 1593 ao Padre Geral em Roma, Cláudio Acquaviva: “o Pe. Pedro Leitão, sendo procurador ferrou hum negro com o ferro do gado por nada, e não com pouco escândalo de todo o colégio, e nem por isso lhe deram penitência; a outra que mandando o dito padre açoutar um negro morreu estando-no açoutando amarrado, o qual era dos melhores que tinha este Colégio”. Para coroar esse passado eclesial escravista, basta avaliar o tímido papel eclesial na luta abolicionista no final do período monárquico brasileiro. 

Essa rápida incursão pelo passado escravista eclesial brasileiro tem por objetivo, em primeiro lugar, discutir dois conceitos distintos: culpabilidade e responsabilidade histórica. O primeiro, culpabilidade histórica, é um conceito falacioso, mesmo se nos movemos no âmbito do discurso eclesiástico, no qual o conceito de culpa ocupa um lugar central. Nenhum religioso jesuíta, carmelita, franciscano ou beneditino atual pode ser culpado pela atividade escravista de seus antecessores. A atual geração não pode ser culpada pelos atos de seus antepassados, como já zombava o profeta Jeremias da crença comum no seu tempo: os pais comeram uvas verdes e os dentes dos filhos é que se embotaram. A história é o que é e nos resta somente nos aproximarmos do passado para tentar compreendê-lo e interpretá-lo o melhor possível, baseados em fatos documentalmente verificáveis. Mas, se a culpabilidade histórica é um conceito sem sentido, a responsabilidade histórica com o presente é um conceito central para aqueles que buscam interpretar o passado. Como costuma afirmar a historiadora Lilia Schwarcz, o presente brasileiro está cheio de passado. O passado escravista brasileiro emerge com força no presente da sociedade brasileira, obviamente na vida da população negra e das periferias. A tentativa constante até o presente de ignorar o passado de violência escravista e suas repercussões na atualidade é uma forma de esquivar-se da responsabilidade histórica com o tempo que nos toca viver. É necessário cuidar do presente para que cessem as violências atuais, cujas raízes remetem à violência escravista. Entramos aqui no campo da memória histórica e dois conceitos relacionados: reparação e não repetição

O conceito de reparação está intimamente ligado ao conceito de justiça. Para a população negra, é necessário reparar uma injustiça que se arrasta desde o fim do período monárquico, quando a fim da escravidão não foi seguida pela integração na população recém-libertada no conjunto da sociedade brasileira. É esse um dos sentidos das cotas raciais nos diferentes âmbitos públicos e privados da sociedade brasileira. Outra importante iniciativa de reparação seria a adoção séria do ensino em todos os níveis da educação brasileira, da história e dos mecanismos de violência contra a população negra. Para uma população historicamente marginalizada, é necessária uma discriminação positiva, políticas públicas que tentem colocar fim a mais de um século de exclusão. É esse, por exemplo, o sentido da destinação de 100 milhões de dólares da Conferência Jesuíta de Canadá e Estados Unidos para uma fundação dedicada a apoiar descendentes de escravizados. Assim como no Brasil, nessa região a Companhia se serviu abundantemente da mão de obra escrava para seu clero, suas igrejas, seus colégios e a agora conceituada Universidade de Georgetown, em Washington DC. 

A igreja no Brasil é historicamente tímida ou mesmo omissa com o tema da responsabilidade histórica com a população negra. Exceptuando a Campanha da Fraternidade de 1988, boicotada por quase 50 bispos em suas respectivas dioceses, restam algumas tímidas iniciativas pontuais. Contra os argumentos contrários à afirmação da falta de responsabilidade histórica da igreja no Brasil com a população negra, basta ver a   composição majoritariamente branca do clero brasileiro. Isso ficou patente na eleição da última direção da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, em 2023. Políticas de integração da população negra, sim; na igreja, não. Não fora pela denúncia corajosa de um ou outro dessa situação tão descarada, o fato teria passado despercebido. A mente de um brasileiro médio está treinada para achar normal um hospital com médicos majoritariamente brancos, um Tribunal Supremo exclusivamente branco, parlamentos majoritariamente brancos, juízes majoritariamente brancos, universidades públicas antes das cotas com uma comunidade estudantil majoritariamente branca, bispos e clero majoritariamente brancos, uma direção da mais alta representação eclesiástica brasileira exclusivamente branca. 

Finalmente o conceito de não repetição, mais além do significado de evitar novas manifestações do mesmo tipo de violência, significa, também, evitar novas modalidades de violências de raízes antigas e conhecidas. O tema da violência contra a população negra é algo tão patente, seja no passado, seja no presente, que serve como parâmetro para identificar outros tipos de violências mais sutis e não tão explícitas. É por isso que podemos afirmar que o movimento negro é extremamente benéfico não somente para a própria população negra, mas, também, para todos aqueles que compreendem os mecanismos de violência denunciados por seus membros e abraçam as propostas de luta e transformação pleiteadas por eles. 

Por detrás dos mecanismos de violência que sofreu e sofre a população negra, há quatro pontos que merecem a atenção. Em primeiro lugar, a normatização da violência, vista como algo socialmente aceito. Em segundo lugar, a delimitação de um grupo alvo dessa violência. Em terceiro lugar, a negação da violência, como se o fato de negar uma realidade pudesse fazê-la desaparecer. Em quarto e último lugar, o elemento religioso como justificativa para a violência. Sob esses quatro pontos que analisamos a violência contra a população negra no passado e no presente, encontramos os mesmos mecanismos aplicados a dois grupos distintos e que se sobrepõe à população negra: mulheres e membros da comunidade LGBTQIA+.


A atual violência eclesial contra as mulheres 

Falando sobre a atual impossibilidade do acesso das mulheres ao ministério ordenado na Igreja Católica, uma religiosa amiga afirmou: não quero ser ordenada. Essa afirmação negativa pode ser interpretada de diversos modos. Pode expressar, por exemplo, um tipo de humildade piedosa comum em ambientes eclesiais e, principalmente, na vida consagrada. Ser ordenado diácono, presbítero ou bispo é sinônimo de status, o oposto a essa humildade idealizada. Pode indicar, por outro lado, uma compreensão do que significa o ministério ordenado em sua forma atual, sua inadequação com o tempo em que vivemos e, consequentemente, o rechaço a participar ativamente nele sendo ordenada. Finalmente, pode significar muito simplesmente a autopercepção da falta daquilo que, na linguagem religiosa, convencionou-se chamar de vocação para o ministério ordenado. Para uma mulher, entretanto, diferente de um varão, há uma sutileza nessa afirmação negativa em relação ao ministério ordenado feminino que não pode ser ignorada. Tentemos traduzir essa sutileza.  

Suponhamos que, em uma situação hipotética, a hierarquia eclesial, exclusivamente masculina e parcialmente misógina (neste ponto não se trata de uma situação hipotética), determine que as mulheres na igreja não possam ser batizadas com nomes de cantoras pop. Nada de Gal, Anita, Ivete, Daniela ou similares. Para o nome Rita seria necessária a convocação de um concílio nacional, para decidir se não causaria ambiguidade entre aquela cantora de sobrenome americano, ovelha negra desgarrada, ou a santa piedosa da cidade umbra. Cada conferência episcopal se encarregaria de codificar seu próprio index nominorum prohibitorum. Minha amiga poderia afirmar: não gostaria de ser chamada de Anita ou Ivete. Prefiro Maria. Nada de mal, aparentemente nenhum problema. Avançando um pouco, suponhamos que a mesma hierarquia decida que as mulheres não podem frequentar estudos teológicos equiparados aos que frequentam os varões candidatos ao ministério ordenado. Minha amiga poderia afirmar: não quero estudar Teologia. Prefiro Psicologia ou Física Teórica. Se se trata de uma aptidão intelectual genuína, muito bem. Dando mais uma volta ao parafuso, suponhamos que a atual hierarquia determine que uma das condições de pertença eclesial é que as mulheres não podem frequentar qualquer tipo de instituição de ensino superior, seja eclesial ou laica. Minha amiga poderia afirmar: não quero formação superior, estou satisfeita com os estudos básicos e médios que tenho. De acordo, vamos respeitar sua decisão. Subindo um pouco o tom, suponhamos que a hierarquia eclesiástica decida que, para preservar a intimidade e o decoro na igreja, as mulheres devem frequentar os lugares de culto com o corpo coberto da cabeça aos pés. Minha amiga poderia afirmar: confio que as decisões que tomam nossa hierarquia são benéficas para nós mulheres. Finalmente, como cláusula pétrea da igreja, a hierarquia determina que as mulheres não podem formar parte da hierarquia eclesiástica. Ou seja, que as mulheres não podem tomar parte nos espaços de decisão onde se decide que nome devem tomar, que estudos podem cursar ou o traje que devem vestir. Obviamente, um critério fundamental para participar nesses espaços de decisões é que seus membros sejam ordenados, algo vetado às mulheres. Neste último ponto, deixamos a zona das hipóteses e entramos na realidade mais notória e dura da igreja em relação às mulheres. E é exatamente isso o significado mais profundo da negativa não quero ser ordenada. Significa a conformação à exclusão dos espaços de discernimento e decisão na igreja, um sinal de renúncia à própria dignidade batismal e a constatação de que o Evangelho não chegou a ser, na vida dessas mulheres que se submetem a tal tratamento e aos homens que lhas imponham, uma verdadeira força interior de mudanças em direção ao projeto evangélico de fraternidade universal. 

Como é possível que, em pleno século XXI, com todos os avanços relacionados com os direitos civis e o feminismo, exista uma instituição ocidental, cuja sede está no coração da Europa, que, no trato com as mulheres, guarda proximidade ao tratamento a elas dispensado nas diferentes versões do islamismo? Alguém poderia objetar com o argumento simplista de que a realidade de uma mulher na igreja é muito mais confortável que a realidade de uma mulher em ambientes muçulmanos. Mas, em uma e outra realidade, não está a mulher identicamente excluída e subalternizada em relação ao clero patriarcal de um e outro grupo? Não bebem a Igreja Católica e as diferentes configurações do islamismo do mesmo argumento fundamental para discriminá-las, isto é, que se trata de uma realidade divinamente estabelecida? Uma das características do cristianismo é a capacidade do indivíduo de descer às raízes mais profundas das realidades que nos cercam e dar-se conta das diferentes formas de violências que estruturam essas realidades, frequentemente mascaradas como benéficas. A tradução em linguagem evangélica dessa capacidade de descer aos fundamentos da realidade pessoal e comunitária é: conhecereis a verdade e a verdade vos libertará. Nas raízes da discriminação das mulheres na igreja, hoje, não se trata, pura e simplesmente, de uma das diferentes formas de violência que se praticou sempre contra as mulheres e que se perpetuam hoje, também na igreja? 

No dia 10 de dezembro de 2022, em Barbacena, Brasil, ocorreu o processo de beatificação de Isabel Cristina Mrad Campos. Em 1982, com 20 anos, a jovem, procedente de uma família religiosa, foi brutalmente assassinada enquanto se defendia da tentativa de estupro. É possível imaginar que o processo de canonização seguirá seu curso e que a jovem assassinada seja declarada, no futuro, santa católica e exemplo de vida cristã. O relato de violência contra a jovem Isabel Cristina é verdadeiro. O relato por detrás de todo o processo canônico de beatificação tem uma trama embutida. Expliquemo-nos. A violência extrema contra as mulheres nas diferentes partes do mundo é algo real. O Brasil não é uma exceção, pelo contrário. O assassinato de Isabel Cristina insere-se no triste rol quotidiano de assassinatos de mulheres por homens, muitos deles pessoas próximas ou companheiros de relacionamentos. Essa violência extrema é o ponto mais alto de diferentes formas de violências a que as mulheres são submetidas rotineiramente. Tão rotineiramente que muitas dessas violências se normatizaram, assim como a violência escravista foi algo normatizado em tempos passados. Ora, não resulta evidente a influência de séculos de visão eclesial relacionada com a mulher nesse caldo de violência machista? Também não é verdade que, longe de dedicar-se com afinco a desmontar essa influência eclesial na violência contra as mulheres, a Igreja Católica segue alimentando-a de alguma forma ao normatizar a discriminação contra as mulheres e ao relegá-las internamente a um papel subalterno intramuros? Não nos deixemos enganar. O magistério eclesial está cheio de rebuscados documentos teológicos relacionados com o papel da mulher na igreja, em um esforço que podemos chamar de tentativa de controle da narrativa sobre a mulher na igreja e no mundo. Essas narrativas, entretanto, derretem-se frente à realidade. É justamente neste ponto que o relato canônico da beatificação falseia: na violência cometida contra a jovem que a igreja quer levar aos altares, há digitais do ensinamento passado e da prática eclesial presente em relação às mulheres. 

Encontramo-nos, portanto, em uma situação aparentemente paradoxal. Imagino que qualquer um que esteja lendo estas linhas, mulher ou homem, se indigne ou se sinta profundamente incomodado com a seguinte situação: na empresa em que trabalha, a direção (exclusivamente masculina) determina que todos os futuros postos de trabalho na empresa serão preenchidos exclusivamente por homens. Logicamente, haverá uma série de justificativas que apoiem tal decisão. Podemos estender essa situação hipotética a um país inteiro: o governo central determina que um dos critérios para candidatos a postos na administração pública é que os candidatos sejam homens. Igualmente estarão excluídas da vida política as mulheres, que não poderão candidatar-se a qualquer posto nas esferas de governabilidade. Como reagiríamos, pessoal e eclesialmente, a essa situação hipotética? Que não nos apressemos em responder a ela. Se alguma das leitoras ou leitores é um católico praticante, lembre-se de que é exatamente essa a realidade da Igreja Católica em relação ao ministério ordenado e espaços de decisões: as mulheres estão excluídas. Poucos se incomodam com essa realidade, é algo normatizado. Mais uma vez, afirmamos: normatizado como o foi a violência escravista no passado. Podemos ser capazes de nos indignarmos com esse tratamento discriminatório dispensado às mulheres na sociedade civil. Na Igreja Católica é algo eclesial e teologicamente aceito e normatizado. Aqui está o paradoxo ou, pelo menos, a incoerência explícita. O rei está nu e poucos se dão conta. Se se dão conta, não se importam. A solução que sustentam alguns para justificar essa dissociação é que a igreja é uma realidade divina, que não pode ser colocada no mesmo nível de qualquer outra organização mundana. Voltamos, então, ao ponto inicial e a uma das raízes das violências praticadas contra as mulheres: é algo divinamente determinado por deus, seja ele qual for. Se aqueles que estão relacionados institucionalmente com o sagrado, aqueles que se autoproclamam porta-vozes do sagrado estão autorizados a praticar violência contra as mulheres, seja ela qual for, como a de discriminá-las internamente e sem nenhum pudor, então a mensagem translúcida que se transmite é esta: qualquer um está autorizado a violentá-las da forma que seja, até à violência mais extrema, física ou emocional. 

Violência contra a comunidade LGBTQIA+ 

No dia 3 de julho de 2021, em La Coruña, Espanha, o jovem Samuel Luiz Muñiz, de 24 anos, um espanhol de origem brasileira, faleceu vítima de um ataque homofóbico praticado por dois homens e uma mulher entre 20 e 25 anos. 
Em 7 de dezembro de 2018, em Moreno, na região metropolitana de Recife, Brasil, Jefferson Anderson Feijó da Cruz, então com 21 anos, foi estuprado, apedrejado e espancado a pauladas por um agressor. O motivo: era homossexual. O resultado da violência: Jefferson não anda, não fala, perdeu as funções cognitivas, não discerne fatos e nem expressa emoções, respira com a ajuda de uma traqueostomia e se alimenta por meio de sonda. 

Estes são apenas dois exemplos recentes de assassinatos e violências praticadas contra a comunidade LGBTQIA+ mundo afora. Algumas delas são oficialmente praticadas por diferentes Estados, a maioria deles de identidade muçulmana, mostrando a estreita vinculação entre violência e religião. No Brasil se registraram oficialmente, em 2021, 316 mortes violentas de pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, pessoas intersexo e assexuadas. Houve, obviamente, tantos outros assassinatos de crianças, heterossexuais, mães e pais de família. Entretanto, os números anteriores informam assassinatos relacionados com o fato de que essas pessoas foram vítimas por serem membros do coletivo LGBTQIA+, e não por terem sido apanhadas em meio de um confronto entre polícias e traficantes ou resultado de um assalto violento. É um tipo de violência como a de violência de gênero: o fator determinante na violência é que a vítima seja uma mulher, esposa, namorada.  

Obviamente, ninguém pensará que os jovens envolvidos no assassinato Samuel Muñiz ou o criminoso que atentou contra a vida de Jefferson Feijó eram frequentadores de grupos de jovens paroquiais ou adeptos da Renovação Carismática Católica. Menos ainda plantearão a ideia de que esses criminosos agiram motivados pela pregação de um padre durante a missa. Entretanto, assim como a violência contra a mulher, que tem várias causas que se relacionam, também a violência contra a comunidade LGBTQIA+ tem vários componentes ancestrais que se somam e se amplificam. Entre essas causas há, obviamente, um componente religioso. Dentro desse componente religioso, há um componente cristão. Dentro desse componente cristão, encontra-se um importante componente católico. 

Que ninguém se engane: por detrás de tímidas manifestações de alguma condescendência com os membros da comunidade LGBTQIA+, amplificadas à enésima potência como se fossem uma mudança de rumo, como a conhecida afirmação do Papa Francisco à jornalista Ilze Scamparini (quem sou eu para julgar?), o ensinamento e a doutrina sobre os membros da comunidade LGBTQIA+ segue intacta. O Catecismo Católico (o de 1992, não o de 1566) os define explicitamente como pessoas gravemente depravadas. A homossexualidade não é um delito, mas é um pecado, algo anormal, intrinsicamente deformador, contra a natureza. Assim o reafirmou o Papa Francisco em uma entrevista à Associated Press em 25/01/2023. Tudo o que no Catecismo se afirma de forma aparentemente positiva ou condescendente em relação com a homossexualidade se choca contra essa definição pétrea: é uma grave depravação. O lugar adequado para tratar o tema na homossexualidade no Catecismo não deveria ser a seção relacionada com a castidade, e sim a seção que trata de direitos humanos. No dia 29/05/2023, o ditador de Uganda, Yoweri Museveni, chancelou uma das leis anti-LGBTQIA+ consideradas mais duras do mundo. A legislação sancionada prevê punições que podem chegar até a pena de morte. Ao defender a lei, o ditador nomeou a pessoas que sentem atração por outras do mesmo sexo da mesma forma que o magistério eclesial as define: são pessoas pervertidas e depravadas. Não se trata de uma coincidência léxica e semântica sem importância. 

Diante desse componente católico de raiz milenar contra a comunidade LGBTQIA+, dessa violência ancestral normatizada até o presente, seria necessário um plano de choque eclesial para detê-lo, para neutralizar pelo menos o componente católico. É como um caminhão desgovernado que desce a ladeira. É necessário deter o caminhão e evitar que ele siga provocando vítimas à medida que desce com cada vez maior velocidade. Não basta rezar por um milagre para que o caminhão se detenha sem mais no meio da ladeira. São necessárias medidas claras e efetivas. Pois o que se passa na igreja atual é justamente o contrário. Longe de dedicar-se com seriedade à tarefa de deter o mais eficientemente possível o caminhão da violência contra a comunidade LGBTQIA+, o magistério eclesial se encarrega rotineiramente de aumentar a carga sobre a carroceria do caminhão (caminhões com mais peso têm maior inércia e, portanto, velocidade). O atual papado, no momento em que escrevo essas linhas, é um caso explícito de política de morde e assopra em relação com a comunidade LGBTQIA+. Acossado pelo movimento LGBTQIA+ em nível mundial e pelas pessoas e governos que adoptam sua luta no contexto de direitos humanos, o papa atual emite sinais tênues de alguma compaixão com esse coletivo pelas diferentes violências que seus membros sofrem em diferentes partes do mundo e por parte da igreja. Chega um momento no qual não é mais possível varrer essa violência para debaixo do tapete, assim como não foi possível continuar varrendo para debaixo do tapete outro tipo de violência praticada pelo clero e religiosos, cuja extensão não chegaremos a conhecer com clareza, em que pesem algumas iniciativas de investigar os casos de abusos sexuais na igreja. Ato de extrema grosseria e pobreza mental foi a amplamente conhecida iniciativa de Bento XVI de tentar associar pedofilia com homossexualidade, para esquivar-se de responsabilidades desses crimes. Um exemplo clássico de vai-que-cola, uma prática que, com frequência, costumava ser eficaz na igreja em outros tempos. 

Há na atualidade, obviamente, bispos e padres com uma visão distinta. Reconhecem, pela sua experiência do Sagrado e do Evangelho, que as pessoas homossexuais são queridas e amadas por Deus em sua natureza homossexual e não apesar dela. Reconhecem a incompatibilidade do ensinamento eclesial com o preceito evangélico de amor incondicional em relação com todos, homossexuais inclusive. Entre eles, há uns poucos que têm a coragem de afirmar essa verdade publicamente. Mas, em uma prova mais da homofobia na igreja, basta que um bispo se atreva a proclamar essa verdade evangélica para colocar em marcha toda uma corrente ruidosa de protestos originada em um laicato homofóbico e em um episcopado ainda mais homofóbico. Amplificados pelas redes sociais, os protestos raivosos desse laicato contra tal pastor chegam aos ouvidos do núncio apostólico (uma emulação exótica de bispo ao qual todos os bispos de verdade têm que dobrar o joelho e dizer amém). A afirmação corajosa, então, tem que ser contextualizada, explicada e retratada até que, desidratada, nada reste de sua força evangélica inicial. É necessário, entretanto, fazer justiça: a responsabilidade do episcopado e do clero na manutenção da homofobia eclesial é muito mais relevante que a do laicato. Os leigos foram treinados durante séculos e séculos para pensarem assim e serem o que são pela doutrina definida e difundida sem a participação deles. Não se podem socializar responsabilidades da homofobia na igreja quando o poder de definir o que é certo ou errado está privatizado nas mãos e bocas de um minúsculo corpo episcopal referendado por presbíteros e teólogos clérigos. 

As religiões vivem uma relação conturbada com a homossexualidade. No catolicismo, além de conturbada, a relação é esquizofrênica. Boa parte do que foi e do que é a igreja deve ser creditada ao empenho e entrega sincera de parte de seu clero, religiosos/as e fiéis homossexuais e lésbicas. Obviamente, não é possível falar de um clero homossexual homogêneo. Tudo o que se possa afirmar em relação com a homossexualidade do clero secular e membros da vida consagrada masculina pode ser afirmado, também, em relação com o lesbianismo na vida religiosa consagrada feminina. Apresentamos aqui apenas um lado da questão, que pode ser transposta, com algumas sutilezas, para a vida consagrada feminina. 

Uma parte do clero e vida consagrada homossexual estabelece relações afetivas e sexuais mais ou menos estáveis com outros companheiros do próprio clero/vida consagrada. Outros se relacionam com homossexuais de fora de seu círculo profissional. Outra parte não estabelece vínculos afetivos e vive relações exclusivamente sexuais mais ou menos esporádicas.  

São, obviamente, pessoas que se reconhecem homossexuais e optam pelo difícil equilíbrio entre a vivência privada da própria homossexualidade e o papel que desempenham publicamente. 

Há, ainda, outros dois grupos distintos. O primeiro é formado por homossexuais que não reconhecem ou admitem a própria homossexualidade. A pertença ao clero ou à vida consagrada pode gestar nesse grupo a impressão de que estão eximidos da desafiante tarefa de reconhecer e integrar a própria identidade sexual. Parece-lhes que o estatuto de pertença ao clero ou à vida consagrada, com a respectiva disciplina de abstenção sexual (que observam com fidelidade), desobriga-lhes dessa tarefa. Obviamente, a autoidentidade sexual é uma tarefa básica dentro do processo mais amplo de autoidentificação de um indivíduo. Como ele vai viver essa identidade sexual é outra história. A identidade sexual não pertence ao campo das escolhas e decisões pessoais. Para um homossexual, é-se homossexual e ponto final. Pertence ao campo das eleições como viver sua homossexualidade, inclusive com disciplina celibatária. Não raras vezes, a falta de integração da identidade homossexual deste grupo do clero/membros da vida consagrada tem resultados muito bem conhecidos: homens e mulheres tecnicamente impecáveis em relação à disciplina celibatária, mas um desastre sob diferentes formas nas relações quotidianas. 

Há, finalmente, um último grupo formado por aqueles que se reconhecem homossexuais. São homens e mulheres que integraram e pacificaram essa realidade no conjunto da própria identidade (inclusive na identidade clerical ou de vida consagrada) e vivem sem grandes dificuldades a disciplina sexual de seu grupo religioso. Esse grupo está subdividido em dois grupos claramente distintos: aqueles que guardam o reconhecimento da sua homossexualidade em um silêncio autoimposto e aqueles que assumem publicamente sua identidade homossexual. É sobre estes últimos, um grupo reduzido que recentemente tem vindo a público revelar sua natureza homossexual, que queremos nos deter. 
O fato de que um membro do clero ou da vida consagrada se declare publicamente homossexual pode significar dois pontos distintos. O primeiro é a afirmação de que sua homossexualidade não é um fardo, desvio, depravação, pecado, antinatural ou o que quer que seja classificado pela igreja. Se é algo natural, não pode ser algo mau ou execrado por Deus. O segundo ponto é que está corajosamente afirmando que não há incompatibilidade entre sua natureza homossexual e a função pública eclesial que ele desempenha. A homossexualidade é sua natureza e não está em desacordo com a vida eclesial, presbiteral ou consagrada. Finalmente, o fato de afirmar publicamente sua homossexualidade, juntamente com o outro grupo que guarda sua homossexualidade em silêncio, significa que o tema segue sendo tabu na igreja do século XXI. 

Chegamos, finalmente, ao ponto central da nossa argumentação. Afirmamos, anteriormente, que esse minúsculo grupo de homossexuais que se reconhece publicamente não veem incompatibilidade entre sua natureza homossexual e sua função eclesial. Não haver incompatibilidade é algo distinto de não haver profundas contradições. Mais uma vez nos servimos da luta dos movimentos negros para lançarmos luz sobre essa contradição estruturante. Cabe aqui fazermos uma analogia. É plausível que um homem ou uma mulher negra, consciente da sua dignidade inviolável, consciente de um passado de violência imposta a seus antepassados e que se prolonga em sua vida e na de seus contemporâneos, se associe livremente a um grupo racista qualquer? Analogamente, qual o sentido de um homossexual, ciente da sua natureza e dignidade inviolável, de um passado de violência imposta a outros homossexuais como ele e que se prolonga em sua vida e na de outros como ele, se associe livremente a qualquer versão de igreja cristã, mas, especificamente ao catolicismo, dado que é uma das instituições que conformam a atual violência contra a comunidade LGBTQIA+? Trocando em miúdos: há alguma lógica em que um homossexual se associe livremente a uma instituição homofóbica? Um homossexual, na igreja, tem necessariamente que violentar e sacrificar a consciência da sua natureza homossexual para ser contado entre os fiéis? Porque, ao que tudo indica, é exatamente essa uma das consequências mais óbvias da pertença de um homossexual à igreja: se vai à missa, deve deixar sua consciência em casa. 


A violência nossa de cada dia

Finalmente, é necessário plantear-se uma última pergunta. As diferentes formas de violências presentes nas diferentes sociedades são benéficas, de algum modo, para a igreja? Nutre-se a igreja das violências alheias? Pelo menos sob um aspecto a resposta a esta pergunta parece ser afirmativa. 

A persistência de violências e injustiças permite à igreja apresentar-se como sujeito de denúncias contra essas injustiças, voz dos oprimidos e sem voz. Também permite a uma pequena parte de seus membros trabalharem com afinco e dedicação para mitigar os efeitos dessa violência. A atuação desses poucos batizados entre imigrantes, encarcerados, população de rua, idosos, indígenas, população negra, regiões de pobreza e outras áreas de fraturas sociais confere ao conjunto da igreja um lastro de credibilidade que, de outra forma, no presente contexto de crise eclesial, não saberíamos como seria. Seguramente, a igreja estaria mais desacreditada do que está. Da atuação e empenho desses poucos mulheres e homens batizados nas periferias geográficas e sociais se nutrem todos os demais batizados, até mesmo os cardeais e burocratas da Cúria Romana e de outras cúrias espalhadas pelo mundo. É um movimento centrípeto, das periferias para o centro provocado pelo empenho e testemunho sincero desses discípulos e discípulas. É uma das consequências da comunhão eclesial. Onde está presente um, está presente toda a igreja. 

Um efeito nocivo nos batizados da violência extramuros é que perdem a capacidade de ver essa mesma violência dentro da igreja, ou, pelo menos, as mesmas raízes geradoras de violência. Esse efeito parece se manifestar com maior intensidade naqueles que estão mais fortemente empenhados em combater as violências extramuros. São pessoas que estão sinceramente convencidas de que estão cumprindo sua missão de batizados e os preceitos evangélicos derivados. Entretanto, em um movimento centrífugo de sentido inverso ao anterior, do centro para fora, do magistério eclesial para os indivíduos nas periferias, a violência do magistério eclesial é, também, a violência que cada batizado perpetua pelo simples fato de ser membro da comunidade eclesial. Não há homem ou mulher, por mais íntegro, justo, fraterno, piedoso ou místico que seja e que não seja, simultânea e paradoxalmente, violento contra seus semelhantes. E tudo isso pelo simples fato de serem membros de uma instituição violenta contra as mulheres, violenta contra a comunidade LGBTQIA+. 

Há um touro bravo solto dentro da loja de cristais. O incenso, o canto gregoriano, o colorido dos vitrais, o silêncio das ermidas, as finas e alvejadas rendas dos paramentos, a coreografia litúrgica, a sofisticação dos documentos teológicos: nada disso consegue ocultar ou disfarçar o fato de que há, no centro da igreja, uma violência explícita e eclesialmente justificada em relação às mulheres e aos indivíduos do coletivo LGBTQIA+. Longe de ocultar, toda essa finesse eclesial somente contrasta e torna mais evidente uma violência contrária ao Evangelho e que se encontra instalada entre a cátedra e o altar.