169. O erro de Abraão
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26.02.2024 | 9 minutos de leitura

Diversos

A primeira leitura desse segundo domingo da quaresma (Gênesis 22,1-2.9a.10-13.15-18) nos apresenta uma cena bastante dramática: Deus concedeu um filho a Abraão, na velhice; é o filho da promessa: a de uma descendência. Mas, eis que o filho dado, agora lhe é pedido pelo mesmo Deus: “Toma teu filho único, Isaac, a quem tanto amas, dirige-te à terra de Moriá,
e oferece-o aí em holocausto sobre um monte que eu te indicar\" (v.2). Um pedido que fere a nossa sensibilidade moderna, mas é pouco estranho às religiões-pagãs circunvizinhas da religião abraâmica. Afinal, era um costume sacrificar crianças e até os primogênitos para aplacar a fúria dos deuses.
Por sorte, tudo estaria resolvido assim: 1. ao sabermos o que a fenomenologia das religiões ensina sobre a henolatria, essa crença em muitos deuses combatendo entre si, à medida que os povos combatem uns contra os outros, estaríamos advertidos, então, de que a religião abraâmica e sua fé em um só Deus está se firmando e, em contradição com as religiões pagãs. 2. Assim sendo, o costume de sacrifício de crianças precisa ser criticado e interrompido. Deus, então, o interrompe, enquanto Abraão levanta o cutelo, dizendo: “Não estendas a mão contra teu filho e não lhe faças nenhum mal! Agora sei que temes a Deus, pois não me recusaste teu filho único\" (v.12). Ou seja: com essa cena catequética, a religião abraâmica supera toda e qualquer possível vinculação ao culto sacrificial de crianças, além de criticar as religiões pagãs, desenhando mais ou menos sua identidade monoteísta. Simples: o gênero literário usa de suspense e dirige nosso olhar para a ação de Deus, contra a obstinação de Abraão. Afinal, não se deve duvidar daquilo mesmo que as escrituras ensinam sobre sacrifícios humanos, apesar das constantes ambiguidades.
Por exemplo: o horror aos sacrifícios humanos se pode ver na boca do próprio Deus, em Levítico, não sem uma promessa de morte: “Se o povo da terra fechar os olhos a respeito do homem que entregar um de seus filhos a Molech e não o matar, Eu mesmo ficarei contra ele e contra sua família. Eu o expulsarei do meio do povo, junto com todos os que seguirem seu exemplo e adorarem o deus Molech. (Levítico 20, 4-5).
Acontece que, o fato de Deus interromper o cutelo não apaga que tenha sido ele a “oferecer a faca”. E para pôr à prova (na língua original: Deus tenta) Abraão. Se um texto importa mais pelo afirmado, do que pelo que está dito, esse texto pode fundamentar muitas experiências violentas de Deus.
Ora, segundo algumas tradições judaicas, o sacrifício realmente aconteceu, porque Isaac foi amarrado e oferecido (aqedá), mas isso não tem nada a ver com o assassinato de uma vida.
Não deixa de ser estranho, contudo, que Deus precise pôr alguém à prova dessa maneira e valendo-se do absurdo. Escandaliza também a reação de Abraão, que não discute com Deus. Para salvar os sodomitas ele argumentou e reclamou: “Não agirá com justiça o Juiz da terra?” (Gn 18,25). Quando se trata de seu filho, nenhuma palavra, apenas uma obediência sem critério. Essa submissão irrestrita, sem pergunta, sem relutância, seria isso a fé?
Para Kierkegaard sim. Para o filósofo dinamarquês, Abraão subiu o monte na região de Moriá, com temor e tremor; com fé, não sem medo. Uma fé que ultrapassa o tremor, ao mesmo tempo que é dialetizada por ele. O medo interroga a fé, porque não há garantias, não há seguranças, não há solo sob os pés, apesar do caminho árduo, montanha acima. A fé é a confiança de se lançar, é a confiança na palavra de Deus. Uma fé tal que significa jogar-se no escuro, sem a garantia do fiador.
Por isso, para Kierkegaard, a fé abraâmica supera a estética e a ética e mesmo a religião, e chega a um estágio religioso para além da religião: fé seria apostar. Uma aposta que engaja a vida, empenha tudo. Supera a estética de uma vida baseada no prazer e a ética de uma vida baseada nos questionamentos morais. É uma vida frente ao que não pode ser reduzido pela reflexão, é o irrefletido. E o que não aparece no “espelho das reflexões” é o real: o real enquanto estrutura. Daí que a fé seja essa capacidade de lançar-se na vida, já que o refletido tem um furo. Um furo abissal. Um furo com o qual é preciso operar e só se opera, tomando a aposta como caminho. Ora, mas aqui parece haver um trabalho com o texto bíblico, e mesmo com a reflexão de Kierkegaard. Dizer do furo do refletido e da aposta parece estar para além do texto do sacrifício de Isaac, onde o refletido sequer aparece. A fé aí aparece apenas como uma obediência cega, quase fundamentalista. E Kierkegaard que falava de um humano que nasce da dialética com o transcendente, chama de fé e religião justamente a fé que, aí, no texto, não fala, não objeta.
Segundo o filósofo italiano Vito Mancuso, o que vemos nesse trecho não é bem a fé, mas a escravidão de Abraão. E mesmo interpretá-lo como condenação de sacrifícios humanos parece ser excessivo demais. Primeiro, porque não há indício de condenação de sacrifícios humanos, no texto, nem sequer do que está prestes a acontecer. Segundo: os sacrifícios humanos quando são proibidos em Levítico, são crimes contra a vida em prevenção do culto. Terceiro, há um caso de sacrifício humano na Escritura sem intervenção de Deus: Jefté promete o holocausto do primeiro que lhe aparecesse em sua frente, caso vencesse uma batalha. Ao vencer, quem vem em sua direção é sua própria filha, e Jefté sacrifica a filha, sem que Deus levante um dedo para o impedir (Jz11, 39).
Segundo Mancuso seria preciso não descrer de Deus, mas libertar-se de uma religiosidade que diz sim às supostas vozes de Deus (inclusive as que aparecem na nossa cabeça), como quem diz “sim, comandante”. Em nome de uma consciência tranquila, dizer “sim, comandante” pode ser um jeito fácil de não erguer a bandeira da livre consciência, que segundo Mancuso, corresponde à mais profunda espiritualidade judaica. Nesse sentido aparece, de novo, a estrutura de aposta, lembrando que há nela uma decisão, como lançar-se no que fura o refletido, mas levando em conta o refletido. Isso não faz dessa aposta um degrau acima da ética (nem da estética), mas a realização de uma ética radical. Uma ética que leva em conta o que não se pode dizer nem refletir totalmente, e até o absurdo, sem se converter em absurdo. Uma ética que leva em conta o real e opera com ele.
Nesse sentido, Mancuso chama pra cena uma filósofa e escritora judia chamada Shulamith Hareven, dedicada há muito na defesa do estado de Israel. Hareven vê que Abraão foi posto à prova, mas para ela, ele fracassa completamente. Ele deveria ter dito não e se oposto ao comando de Deus, replicando: “você nos proibiu os sacrifícios humanos, portanto eu me recuso a imolar meu filho”. Ora, mesmo para Kierkegaard o humano se faz em dialética com o transcendente, simplesmente dizer “sim comandante” (ainda que para Deus) não é nada dialético. Não parece ser a fé, portanto, mas um fracasso da fé. Se a religião derrama sangue ainda hoje, é por causa desse esquema de escravidão de fé, que não questiona, não se opõe, trata a fé como a prática do absurdo, sacrificando o outro e a ética. Pensar a fé como o salto (absurdo) após o refletido e seu furo se apresentarem, é outra coisa. Essa é a mais pura ética. Até mesmo quando essa ética desafia o religioso.
Um fracasso na fé, poderíamos dizer, mas não um fracasso do fiel. Nem um fracasso do modelo de fé que é Abraão. Atestar que Abraão falhou não faz dele um modelo menos fiel, porque não apaga a sua fidelidade. Sim, ele pode ser nosso pai na fé não por causa de sua infalibilidade, ou por causa de seus sucessos apenas, mas para nos mostrar que nossa fé se faz de alguns erros, quando somos incapazes de ouvir a voz de Deus e ouvimos tantas outras vozes, entendendo-as como a voz de Deus, acreditando que sejam a voz dele. Isso ainda segue presente: confundir a voz de Deus com a nossa, especialmente quando as nossas estão eivadas de preconceitos, violências e erro.
Deus não pede sangue, mas as escrituras estão cheias de antropomorfismos que parecem fazê-lo conforme ao nosso desejo de sangue. Na nossa fé, não raras vezes podemos escutar as vozes humanas, dos juízes internos e externos, dos absurdos tomados como fé (fundamentalismos, radicalismos, etc). Se Abraão por um certo tempo falha, isso mostra que nossa fé também pode falhar. Mas que possamos, ao menos, confiar no Deus que para o cutelo.
A promessa de Deus segue sendo fiel a Abraão, contudo, pois Deus é fiel sempre. Se ele falha em elevar o cutelo ao invés de dizer não, o “porque me obedeceste”, que encerra a leitura, diz mais sobre ele ter oferecido o filho a Deus, do que sobre ele ter levantado, contra ele, o punhal. A oferta, Deus acolhe; o cutelo (apesar de nossos antropomorfismos, que muitas vezes induzem a erros e radicalismos), Deus interrompe.
Na fé cristã, o sacrifício de Jesus é aludido ao Cordeiro imolado. Recordemos que essa alusão não faz de Jesus um sacrificado pelo Pai. Se o Pai não poupou o próprio Filho, o entregando por nós (Rm 8, 32), isso é porque Jesus mesmo abraçou livremente a sua paixão e fez dela doação da própria vida. Deus não o poupou, porque recebe essa entrega do Filho e no-la dá. Jesus não obedece como quem diz “sim, comandante”, mas realiza com a sua vida aquilo que o salmo canta: “eis que venho fazer com prazer, vossa vontade” (Sl 39).
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