166. As lepras
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12.02.2024 | 9 minutos de leitura

Diversos

O Ápice
O evangelho desse 6o. Domingo do Tempo Comum mostra Jesus chegando ao que pode ser lido como o ápice de seu ministério terapêutico e curativo. Ele começa expulsando um espírito mau do âmbito da sinagoga, mostrando como a religião abriga o diabólico e não o combate; diferente do Reino de Deus que não se alia a uma religião demonizadora da vida (4o domingo). Depois, Jesus cura a sogra de Pedro (5o domingo), superando a lei do sábado, levantando com sua mão poderosa e braço forte, mão estendida, o corpo de uma mulher febril que se põe logo a servir. Agora, Jesus purifica alguém da lepra, uma doença considerada sem cura e que fazia os acometidos por ela serem considerados mortos-vivos, excluídos do convívio, pecadores à espera da morte.
A lepra
Na época de Jesus, lepra não é (só) a hanseníase, como conhecida hoje. A ameaça da lepra dizia respeito a quase toda doença da pele desconhecida, até então: “alguma inflamação, erupção ou mancha branca, com aparência do mal da lepra” (Lv 13, 2). Ao ser acometido por alguma doença da pele, o indivíduo deveria se apresentar aos sacerdotes que estabeleciam se ele estava enfermo ou não. Com isso, o indivíduo ficava afastado do convívio social, obrigado a morar fora do acampamento, em lugar isolado. Além disso, deveria tornar pública sua condição, não só pelo seu afastamento, mas também vestindo-se com roupas rasgadas e tendo o cabelo desgrenhado e a barba coberta; assim se fazia visível sua situação. Além disso, deveria berrar contra todos a sua condição, a fim de evitar toda e qualquer proximidade. Afinal, encostar num leproso era estar contaminado do mesmo mal, tornando-se impuro. Ou seja: alguém com lepra não era apenas alguém com uma doença, mas era a própria doença. O que se vê aqui? Não mais a pessoa, mas a doença; não mais um estado, entre outros, mas a pessoa reduzida a um objeto-dejeto, excluída do convívio.
Com isso, os sacerdotes não garantiam apenas uma condição sanitária, portanto, mas firmavam um esquema religioso, separando as pessoas em puras e impuras. Incrementavam o sistema religioso em que se cria que os doentes são pecadores pagando por seus pecados, além de justificar, com isso, a marginalização e exclusão das pessoas. Além disso, como a lepra não tinha cura, a palavra dos sacerdotes era considerada como a última. Cabia ao leproso aguardar sua morte, já que seu fim já teria chegado ao se tornar leproso.
Que é saúde? Que é doença?
Geralmente tendemos a pensar na saúde como o estado de funcionamento perfeito do nosso organismo e seus sistemas. Esse estado de bem-estar depende de muitos fatores e, quase sempre, quando experimentamos alguma doença, algo de nossa imagem de inteireza (ideal) se desfaz. Isso é sentido com a impressão forte de desordem ou de quebra daquele bem estar.
Ora, a saúde não é apenas o bem estar físico, mas o bem estar biopsicossocial. Isso amplia a questão, ao não reduzir a saúde ao estado de não ter doenças ou ao estado incontaminado, ou ainda ao bem estar somente físico. As emoções, a relação do indivíduo consigo mesmo e a relação com o outro; portanto, as relações sociais, ou ainda, entre o indivíduo e o trabalho, o indivíduo e o mercado, o indivíduo e sistema capitalista; tudo isso está implicado nesse conceito aberto de saúde.
A saúde virou, então, uma utopia? Essa é uma crítica possível, pois com a abertura do conceito, parece que a saúde se tornou impossível. Mas o grande objetivo não é obsedar os sujeitos numa perseguição do estado ideal de saúde nem, tampouco, desestimular, mas sim tirar o foco da saúde física, tão somente, e cuidar do quanto a saúde é multifatorial. Isso mudou o jeito de pensar, mostrando-nos que não estamos divididos entre sãos e doentes, já que todos temos algum mal-estar ou estamos/estivemos/estaremos inseridos em alguma cena de sofrimento. Com isso, também ficaria derrubada a lógica higienista que estabelece quem são os “doentes” e os separa, jogando-os nos hospícios, nos hospitais, nos presídios, nos centros de recuperação, para eles serem separados de nós, aquilo que que não queremos ser, ou ver em nós.
Mas a nossa sina idealizadora continua…
Agora, o grande ideal da saúde é perseguido com terapia e com a ideia de estarmos “descontaminados” de qualquer síndrome e transtorno mental. A ideia de sermos os grandes gestores de nós e a de jamais experimentar o fracasso do descontrole virou nossa atual obsessão.
Precisamente, aí, é que se encontra o estado da questão saúde-doença, atualmente: sob a ideia de controle. Controle médico, controle social, controle psicológico; obsessão por controle do corpo, da estética, das emoções, etc. E é preciso dizer logo: controle não é cuidado.
Os sacerdotes da época de Jesus controlam. Diagnosticam, dividem e separam-se dos impuros, excluem, mantêm, com isso, a ordem. Não há cuidado, há controle.
Doenças metáforas
Uma doença nunca é só uma doença, mas é a rede de significâncias que a acompanha. Essa rede diz muito sobre como a vivência pode ser encarnada e como ela é assumida pelos enfermos. Assim sendo, uma doença pode carregar graves estigmas e ser metáfora de algo para além dela mesma, ligada a preconceitos sociais ou não.
Lembremo-nos do surto de HIV há pouco mais de quarenta anos. A doença era considerada a doença dos gays; era metáfora da devassidão sexual, do imoralismo e de uma “conduta homossexual”. O infectado era de algum modo intocado e seus objetos pessoais não eram compartilhados. Ficava, assim, excluído do convívio, posto à margem, muitas vezes até do cuidado. Hoje, a doença, segundo dados da OMS, predomina entre gays, pardos e negros e isso ainda tem uma forte referência com o debate moralista, mas agora não como acusação, mas como indicador de que esses grupos continuam sofrendo preconceito e são invisibilizados, não sendo atingidos nem mesmo pelas campanhas massivas do Ministério da Saúde. Sem mecanismos de inclusão, sem mecanismos de acolhimento e cuidado, os números de pessoas não tendo acesso a outras fontes de renda que não o próprio sexo (e às vezes sem proteção), mantêm-se.
Uma doença metáfora é sempre uma intricada rede de ideias e algumas delas podem ser metáforas de condições sociais mais estruturais e, por causa disso, podem não receber devida atenção. Doenças que atingem populações mais pobres não recebem o mesmo cuidado que doenças que atingem todas as camadas sociais da população. E isso mostra que algumas doenças metaforizam a estratificação da sociedade e os interesses econômicos da ciência.
Além disso, uma doença pode ser metáfora imediata da morte, como o câncer. Apesar de a remissão do câncer ser de 80%, quase sempre ouvir esse diagnóstico faz inflamar em nossas entranhas a ferida da finitude. Ou seja, a doença metaforiza algo que é certo, mas não por causa dela, necessariamente.
Na época de Jesus e também na nossa, de jeitos diferentes e semelhantes, a lepra (hanseníase ou não) é uma doença metáfora. Por isso, o toque de Jesus no leproso não é apenas um toque, mas o desmantelamento de todo um sistema de significância.
A coragem de viver
Já sabemos que o leproso deveria ficar à margem (da vida, da sociedade, de si), gritando sua condição: leproso, leproso!
Mas não é o que o leproso do evangelho faz: ele se aproxima de Jesus, ajoelha-se diante dele e o reconhece dizendo “se queres, tens o poder de me curar”. O “se queres” indica sua confiança em Jesus, sua oração despretensiosa e corajosa. É o que ele mais quer, mas não força o outro, mesmo diante de sua necessidade. Mas para além disso, a aproximação desse leproso contrariando a lei, revela o seu desejo, a sua coragem de não ficar submetido à lei e ao que estabeleceram os sacerdotes. Sua coragem de viver é maior que a lei que o interdita.
A tradução empobrece o sentido do que o leproso diz. Ele não pede para ser curado, mas purificado. A cura poderia nos dar a falsa impressão de que Jesus restabelece a ordem orgânica do sujeito. Mas não. Purificar aqui é reestabelecer a condição de gente, é não ser visto mais como uma doença, mas como pessoa! É o desejo de romper com a doença-metáfora que exclui, diminui e faz esse sujeito ser considerado menos que um ser humano.
Então Jesus responde; “eu quero: fica purificado!”. Mas o disse, tocando nele (o que era proibido, com o risco de contaminar-se e tornar-se impuro). À ousadia, Jesus responde com ousadia. À coragem de viver, Jesus responde com a coragem de amar.
Cuidado é a coragem de amar.
Os dois imperativos de Jesus
Após cuidar, a partir do toque, do contato, da intimidade, desse ser humano com lepra, Jesus oferece dois imperativos.
O primeiro; “Não contes nada disso a ninguém!”, acompanha todo o evangelho e é seu segredo messiânico. Não é só o jeito de Jesus evitar que sua missão seja mal compreendida, mas é convite à proximidade, para aí, podermos entender quem ele é. As curas de Jesus são sinais de sua proximidade. A salvação/saúde que Jesus confere é a proximidade do cuidado/amor que rompe com as objetificações presentes, especialmente quando alguém está enfermo. Não adianta alguém ter experimentado essa salvação e falar disso, se a gente não ousar aproximar-se.
O segundo; “Vai, mostra-te ao sacerdote…”, mostra Jesus rompendo o sistema que domina sobre os sujeitos, impondo pesados fardos sobre eles. Os sacerdotes achavam que tinham a última palavra, mas não a têm mais. Se o que eles podem fazer é impor o pesado fardo das doenças-metáforas, Jesus agora tira o fardo. Por isso, o que Jesus diz é “oferece, pela tua purificação, o que Moisés ordenou, como prova CONTRA eles!" Não “para” eles, como indica a tradução. É contra! O sistema sacerdotal, sanitário-higienista, religioso e social, cai por terra, porque a contra-lógica apareceu na ação de Jesus.
As lepras
Jesus não realiza sua missão só nos grandes centros, mas na periferia existencial do mundo, onde os sacerdotes não vão, mas para onde eles mandam aqueles que não poderiam confrontar sua palavra, senão aceitá-la.
Reclusos entre seus muros, da sinagoga ou de seu templo, eles permanecem leprosos de um sistema excludente, impondo a outros a lepra de seus preconceitos.
Nos desertos, porém, o povo encontra alguém que os ajuda a reencaminhar e a relançar a coragem de viver; contra a religião, inclusive.
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