38. Cristo é a nossa paz: do que era dividido, fez uma unidade (Ef 2,14) - PARTE 2
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14.01.2021 | 12 minutos de leitura

Acadêmicos

3. TEMA CENTRAL: A UNIDADE
Mostrar como um texto bíblico está estruturado não é simplesmente uma questão de erudição como pode parecer à primeira vista. A estrutura aponta para a teologia do texto; ela sinaliza as escolhas do autor, o lugar onde ele põe destaque e o que deve orientar a leitura de todo o escrito. No caso de uma estrutura concêntrica, como é a Carta aos Efésios, ela indica que o autor fez uma ou mais molduras no intuito de destacar sua mensagem central. Assim, é a partir do plano da obra que podemos encontrar sua teologia mais genuína.
Observando o modo como a Carta aos Efésios foi estruturada, descobrimos que sua mensagem central (sua teologia) é a unidade do Corpo de Cristo (4,1-16). A descoberta do tema principal sublinha a convergência dos outros aspectos da epístola para um objetivo teológico bem definido, uma mensagem sobre a unidade entre os membros da comunidade dos seguidores e das seguidoras de Cristo. Esta é a mensagem da Carta aos Efésios: a unidade em Cristo. Uma mensagem central, dominante, única, em torno da qual o autor faz uma síntese da fé e da práxis cristãs. A unidade funciona como o foco de uma lanterna na escuridão do texto. Por meio do facho da sua luz, toda a Carta fica iluminada.
Para destacar melhor sua mensagem fundamental, o autor primeiramente se concentra no termo ἀγάπη (agape) que significa o amor incondicional com que Deus nos ama e com o qual somos chamados a nos amar uns aos outros (4,1-3). Cada membro da comunidade deve ser um suporte para os outros por meio do amor, “com toda a humildade, mansidão e paciência” (4,2). Assim, sustentados uns pelos outros, ninguém vacilará na fé. Por isso, a exortação para que se esforcem “diligentemente por preservar a unidade do Espírito pelo vínculo da paz” (4,3).
Estamos fortemente vinculados uns aos outros em Cristo, ainda que não queiramos. Há um só corpo, um só Espírito, uma só vocação, uma só esperança (4,4-5), pois “há um só Deus e Pai de todos, o qual está sobre todos, por todos e em todos” (4,6). Em Deus, fomos agregados e irmanados, e um fio invisível costura a vida de uns à vida dos outros. Este é primeiro argumento para a unidade na comunidade: fomos atados por um forte laço de comunhão, e esse laço é a presença de Deus e o seu agir em nós.
Essa unidade, no entanto, não deve ser confundida com uniformidade. Ela se dá em meio à pluralidade circunstancial. Por isso, da igreja como um todo, o autor passa a tratar de seus membros individuais. Na unidade geral, o indivíduo não é esquecido. Ela contempla a variedade de dons e ministérios: “a graça foi concedida a cada um segundo a medida do dom de Cristo” (4,7). “Cada um” (ἑνὶ ἑκάστῳ) é diferente do outro, embora todos estejam em unidade; os ministérios são diferentes e, portanto, os dons são diferentes. Todos agem pela graça que é concedida por Deus e ela não se origina nas pessoas, mas em Deus mesmo. A graça é dada a cada pessoa de forma suficiente para capacitá-la a viver configurada a Cristo.
Finalmente chegamos no ponto central da Carta (4,8-10), que amarra toda a trama de argumentos em vista de demonstrar a unidade essencial da comunidade cristã. Para isso, o autor se fundamenta nas Escrituras, tomando como base o Sl 68,19. Curiosamente, o autor se desvencilha do texto hebraico e assume a versão aramaica do Salmo, no qual o verbo “receber” é substituído pelo verbo “dar”: “Por isso foi dito: ‘Subindo ao alto, levou cativo o cativeiro, e deu dons aos homens’” (Ef 4,8; Sl 68,19) . O autor neotestamentário relê o Salmo sob a ótica da ascensão de Cristo, após sua ressurreição dos mortos. O Cristo que volta para o Pai dá aos seus seguidores o dom da unidade.
O versículo, tal como está no salmo, refere-se a um triunfo militar. O Deus de Israel, qual conquistador colocado em uma carruagem muito elevada, estava sobre a arca da aliança, considerada baluarte de guerra e palanquim. O Salmo foi composto, provavelmente, por ocasião da remoção da arca da aliança da cidade de Kiryat Ye'arim (também conhecida como Baalá de Judá) para o Monte Sião (2Sm 6,1ss). É um cântico que celebra as vitórias de Deus, particularmente aquelas que foram alcançadas quando a arca estava à frente do exército. Era comum que um rei vitorioso em uma batalha, trouxesse amarrados atrás de sua carruagem os rivais cativos, reis e generais, para ilustrar o seu triunfo. Nesse momento, o rei vitorioso recebia dons, os despojos que eram frutos de suas conquistas, e submetia os conquistados às suas leis. Na Carta aos Efésios, seguindo a versão aramaica, Deus, em Cristo, deu os dons e não os recebeu.
À subida da arca para o Monte Sião, o salmista associa o fato de Deus ter subjugado todos os inimigos. A versão aramaica vê nessa ascensão o meio de obter dons inestimáveis para as pessoas; porque dali a Torá deveria se espalhar pelo mundo inteiro como resultado do triunfo de Deus. Para o autor da Carta aos Efésios, a ascensão de Cristo pode ser dita em comparação à procissão triunfal da arca da aliança rumo a Sião. A ascensão do Ressuscitado mostra o total triunfo sobre o mal, sobre a morte e sobre o pecado. Ele “levou cativo o cativeiro” (Ef 4,8). Não há nada que permaneça fora de seu domínio. Seu triunfo sobre os inimigos da humanidade indica que ele concede bênçãos e dons a todos que nele creem, de forma que podem viver em comunhão entre si e com ele, vitoriosos sobre todo muro de separação.
Em 4,11-13, o autor volta a compor sua moldura para envolver o tema central. Retorna ao tema da diversidade dos dons, para que cada pessoa exerça seu ministério singular: a uns constituiu “apóstolos, a outros profetas, a outros evangelistas, a outros pastores e mestres” (4,11).
Por fim, temos o fechamento da moldura (4,14-16) com o termo ἀγάπη (agape), que já apareceu em 4,1-3: “vivendo conforme a verdade no amor, cresçamos em todos os sentidos, naquele que é a cabeça, Cristo” (4,15).
4. CONCLUSÃO: O ROMPIMENTO DO MURO DE SEPARAÇÃO
Se a Carta aos Efésios tem como tema central a unidade em Cristo assunto aos céus, que tem todas as realidades sob seu domínio e exerce seu triunfo sobre os inimigos da humanidade, pode-se inferir que o autor e os leitores da Carta tinham bem presente um fator de separação. “Ele é a nossa paz, de dois povos fez um só, derrubando em sua carne o muro da inimizade, que os separava” (Ef 2,14). Se a unidade não fosse problema, ela seria ignorada e outro problema seria discutido. Ora, o que separava a comunidade destinatária da Carta aos Efésios? Por que a insistência na derrubada do muro da inimizade?
O muro da inimizade ou muro de separação foi algo bem concreto no primeiro século, conforme recente descoberta arqueológica. No Templo construído por Herodes, havia uma inscrição que advertia aos gentios que evitassem entrar no perímetro do Santuário, sob pena de morte . Uma inscrição, em grego, para que todos a pudessem ler, rezava:
Essa inscrição é aludida por Flávio Josefo, historiador judeu do primeiro século, nas obras Guerra Judaica e Antiguidade Judaica . Ela é considerada o muro da inimizade que separava judeus e gentios a que Ef 2,14 se refere. Com a destruição do Templo no ano 70 dC., o muro de separação continuou a motivar a inimizade, não mais como uma inscrição na pedra, mas ideologicamente, como uma inscrição nas entranhas das consciências. O Novo Testamento registra que a inclusão dos gentios na comunidade cristã foi considerada, por muitos cristãos de origem judaica no primeiro século, como uma grande ofensa (cf. Mc 7,26–27; At 21,27–28). E só a custo, os mesmos puderam ocupar seu espaço nas comunidades cristãs das origens. Sobre isso, Lucas escreve o episódio de Pedro na casa de Cornélio e mostra como a entrada dos gentios na comunhão eclesial não se deu por iniciativa humana, mas por ação do próprio Espírito (At 10,1–11,18) .
Se Deus é comunhão – Pai, Filho e Espírito Santo – e se por meio de Cristo ele restaurou a unidade dos humanos, derrubando definitivamente o muro da separação, o que dizer dos muros de separação que ainda hoje se erguem entre nós? Por que ainda tanta violência contra os homossexuais, tanto preconceito e racismo em relação aos negros, tanta imposição sobre as culturas dos povos originários e tanta sujeição das mulheres aos varões? Parece que a superação se deu no âmbito teológico-soteriológico, mas sua implicação prática anda bem longe de nossas igrejas e dos corações dos crentes. Em tempos de pluralismo religioso e cultural, nenhum testemunho cristão pode ser mais eficaz que o da tolerância e do diálogo entre as religiões. E, em meio a uma sociedade multirreferencial e sem uma visão hegemônica, nada pode ser mais cristão que aceitar o outro do jeito que ele é, embora não concordemos com seu modo de viver.
A fé cristã, em nome da verdade salvífica, não pode ser instrumento de divisão. Qualquer pretensão nesse sentido nega a essência da própria fé, que tem em Cristo aquele que supera o muro da divisão. Deixar que o outro seja, que ele se descubra e que construa para si uma identidade confiável, é sem dúvida a maior dádiva que podemos ofertar aos outros. Como os cristãos de origem judaica pressionavam os cristãos do mundo gentílico a entrarem na forma do judaísmo, não faltam hoje cristãos apegados ao regime de cristandade, que tencionam obrigar as consciências a se curvarem às suas crenças. Em vez do ἀγάπη (agape) de Cristo, ofertam violência e desrespeito. Semeiam discórdias e colhem inimizades. Isto pode ser visto nas redes sociais e em outros meios de comunicação: homéricos debates tentam incriminar as partes. Em vez de tolerância e diálogo, veem-se acusações e ofensas. Em vez de perdão e ajuda mútua, encontramos juízos pesados e exclusão, quando se deveria saber que a “tolerância é a marca característica principal da verdadeira igreja” .
A Carta aos Efésios com sua mensagem central sobre a unidade nos convida a enxergar além de nossas convicções intransigentes e a derrubar os muros de separação. Toda pessoa merece e exige respeito. Por meio de Cristo morto e ressuscitado, a humanidade foi unida ao Pai, mas essa unidade se efetiva por caminhos que nem sempre conseguimos enxergar. Ele é o Deus misterioso que age na intimidade das consciências e não permite mais juízo sobre o outro. Nele, todos estamos unificados e, consequentemente, obrigados a um amor ético que ultrapassa as afinidades ideológicas. Não escolhemos ser irmãos deste ou daquele sujeito. Irmãos a gente não escolhe; são-nos dados. E uma vez que nos são dados, estamos obrigados ao amor. Nossa unidade não é fruto de emoções, mas da obra salvífica de Cristo que fez dos povos um só e derrubou definitivamente os muros de separação. Qualquer outra tentativa de cristianismo é jogo de interesses e ignorância teológica. Certamente, ao cristão, é possível tolerar tudo, menos a intolerância. Esta mostra a face mais feia da humanidade e a instrumentalização da religião e da fé em nome dos interesses próprios.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Aila Luzia Pinheiro; RIBEIRO, Susie Helena. Targumim, as traduções aramaicas do Antigo Testamento, e alguns paralelos com o Novo Testamento. Perspectiva Teológica, Belo Horizonte, v.52, n.1, p.55-72, 2020.
CARMO, Solange Maria do. Jesus, Boa-nova universal de Deus: estudo bíblico-catequético a partir de At 10,1–11,18. Goiânia: Scala, 2014. v. 1 e 2.
CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA DEI VERBUM sobre a revelação divina. In Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II, 7a. ed. São Paulo: Paulus, 2014.
ARZT-GRABNER, Peter. Paul’s Letter Thanksgiving. In: PORTER, Stanley E. and ADAMS, Sean A (ed). Paul and the Ancient Letter Form. Leiden: Brill, 2010, p. 129-158.
BARTH, Markus. Ephesians: Introduction, Translation, and Commentary on Chapters 1–3. New York: Doubleday and Company,1974.
BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 1985.
BÍBLIA SAGRADA: edição pastoral. São Paulo: Paulos, 2014.
BICKERMAN, Elias J. Warning Inscription of Herod's Temple. The Jewish Quarterly Review, v. 37, n. 4, 1947, p. 387-405.
BROWN, Raymond E. The churches the apostles left behind. New York: Paulist Press, 1984
BRUCE, Frederick Fyvie. The Canon of Scripture. Downers Grove: InterVarsity Press, 1988.
CROUCH, James E. The Origin and Intention of the Colossian Haustafel. Gottingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1972.
HORSLEY, Richard A. “Paul and Slavery: A Critical Alternative to Recent Readings”. Semeia, n. 83-84, 1998, p. 153-200.
KEENER, Craig. Paul, Women and Wives: Marriage and Women’s Ministry in the Letters of Paul. Peabody: Hendrickson, 1992.
MacDONALD, Margaret. The Pauline Churches: A Socio-Historical Study of Institutionalization in the Pauline and Deutrero-Pauline Writings. Cambridge: Cambridge University Press, 1988. Society for New Testament Studies Monograph Series, 60.
OCKE, John. Cartas sobre a tolerância. São Paulo: Ícone, 2004
PENN-LEWIS, Jessie. The Magna Charta of Woman. Minneapolis: Bethany Fellowship, 1975
THOMAS, Yan. Droit domestique et droit politique à Rome. Remarques sur le pécule et les honores des fils de famille. Mélanges de l'Ecole française de Rome. Antiquité, vol. 94, no 2, 1982, p. 527-580.
TITE, Philip L. How to begin, and why? Diverse functions of the pauline prescript within a greco-roman context. In: PORTER, Stanley E. and ADAMS, Sean A (ed). Paul and the Ancient Letter Form. Leiden: Brill, 2010, p. 57-99.
Mostrar como um texto bíblico está estruturado não é simplesmente uma questão de erudição como pode parecer à primeira vista. A estrutura aponta para a teologia do texto; ela sinaliza as escolhas do autor, o lugar onde ele põe destaque e o que deve orientar a leitura de todo o escrito. No caso de uma estrutura concêntrica, como é a Carta aos Efésios, ela indica que o autor fez uma ou mais molduras no intuito de destacar sua mensagem central. Assim, é a partir do plano da obra que podemos encontrar sua teologia mais genuína.
Observando o modo como a Carta aos Efésios foi estruturada, descobrimos que sua mensagem central (sua teologia) é a unidade do Corpo de Cristo (4,1-16). A descoberta do tema principal sublinha a convergência dos outros aspectos da epístola para um objetivo teológico bem definido, uma mensagem sobre a unidade entre os membros da comunidade dos seguidores e das seguidoras de Cristo. Esta é a mensagem da Carta aos Efésios: a unidade em Cristo. Uma mensagem central, dominante, única, em torno da qual o autor faz uma síntese da fé e da práxis cristãs. A unidade funciona como o foco de uma lanterna na escuridão do texto. Por meio do facho da sua luz, toda a Carta fica iluminada.
Para destacar melhor sua mensagem fundamental, o autor primeiramente se concentra no termo ἀγάπη (agape) que significa o amor incondicional com que Deus nos ama e com o qual somos chamados a nos amar uns aos outros (4,1-3). Cada membro da comunidade deve ser um suporte para os outros por meio do amor, “com toda a humildade, mansidão e paciência” (4,2). Assim, sustentados uns pelos outros, ninguém vacilará na fé. Por isso, a exortação para que se esforcem “diligentemente por preservar a unidade do Espírito pelo vínculo da paz” (4,3).
Estamos fortemente vinculados uns aos outros em Cristo, ainda que não queiramos. Há um só corpo, um só Espírito, uma só vocação, uma só esperança (4,4-5), pois “há um só Deus e Pai de todos, o qual está sobre todos, por todos e em todos” (4,6). Em Deus, fomos agregados e irmanados, e um fio invisível costura a vida de uns à vida dos outros. Este é primeiro argumento para a unidade na comunidade: fomos atados por um forte laço de comunhão, e esse laço é a presença de Deus e o seu agir em nós.
Essa unidade, no entanto, não deve ser confundida com uniformidade. Ela se dá em meio à pluralidade circunstancial. Por isso, da igreja como um todo, o autor passa a tratar de seus membros individuais. Na unidade geral, o indivíduo não é esquecido. Ela contempla a variedade de dons e ministérios: “a graça foi concedida a cada um segundo a medida do dom de Cristo” (4,7). “Cada um” (ἑνὶ ἑκάστῳ) é diferente do outro, embora todos estejam em unidade; os ministérios são diferentes e, portanto, os dons são diferentes. Todos agem pela graça que é concedida por Deus e ela não se origina nas pessoas, mas em Deus mesmo. A graça é dada a cada pessoa de forma suficiente para capacitá-la a viver configurada a Cristo.
Finalmente chegamos no ponto central da Carta (4,8-10), que amarra toda a trama de argumentos em vista de demonstrar a unidade essencial da comunidade cristã. Para isso, o autor se fundamenta nas Escrituras, tomando como base o Sl 68,19. Curiosamente, o autor se desvencilha do texto hebraico e assume a versão aramaica do Salmo, no qual o verbo “receber” é substituído pelo verbo “dar”: “Por isso foi dito: ‘Subindo ao alto, levou cativo o cativeiro, e deu dons aos homens’” (Ef 4,8; Sl 68,19) . O autor neotestamentário relê o Salmo sob a ótica da ascensão de Cristo, após sua ressurreição dos mortos. O Cristo que volta para o Pai dá aos seus seguidores o dom da unidade.
O versículo, tal como está no salmo, refere-se a um triunfo militar. O Deus de Israel, qual conquistador colocado em uma carruagem muito elevada, estava sobre a arca da aliança, considerada baluarte de guerra e palanquim. O Salmo foi composto, provavelmente, por ocasião da remoção da arca da aliança da cidade de Kiryat Ye'arim (também conhecida como Baalá de Judá) para o Monte Sião (2Sm 6,1ss). É um cântico que celebra as vitórias de Deus, particularmente aquelas que foram alcançadas quando a arca estava à frente do exército. Era comum que um rei vitorioso em uma batalha, trouxesse amarrados atrás de sua carruagem os rivais cativos, reis e generais, para ilustrar o seu triunfo. Nesse momento, o rei vitorioso recebia dons, os despojos que eram frutos de suas conquistas, e submetia os conquistados às suas leis. Na Carta aos Efésios, seguindo a versão aramaica, Deus, em Cristo, deu os dons e não os recebeu.
À subida da arca para o Monte Sião, o salmista associa o fato de Deus ter subjugado todos os inimigos. A versão aramaica vê nessa ascensão o meio de obter dons inestimáveis para as pessoas; porque dali a Torá deveria se espalhar pelo mundo inteiro como resultado do triunfo de Deus. Para o autor da Carta aos Efésios, a ascensão de Cristo pode ser dita em comparação à procissão triunfal da arca da aliança rumo a Sião. A ascensão do Ressuscitado mostra o total triunfo sobre o mal, sobre a morte e sobre o pecado. Ele “levou cativo o cativeiro” (Ef 4,8). Não há nada que permaneça fora de seu domínio. Seu triunfo sobre os inimigos da humanidade indica que ele concede bênçãos e dons a todos que nele creem, de forma que podem viver em comunhão entre si e com ele, vitoriosos sobre todo muro de separação.
Em 4,11-13, o autor volta a compor sua moldura para envolver o tema central. Retorna ao tema da diversidade dos dons, para que cada pessoa exerça seu ministério singular: a uns constituiu “apóstolos, a outros profetas, a outros evangelistas, a outros pastores e mestres” (4,11).
Por fim, temos o fechamento da moldura (4,14-16) com o termo ἀγάπη (agape), que já apareceu em 4,1-3: “vivendo conforme a verdade no amor, cresçamos em todos os sentidos, naquele que é a cabeça, Cristo” (4,15).
4. CONCLUSÃO: O ROMPIMENTO DO MURO DE SEPARAÇÃO
Se a Carta aos Efésios tem como tema central a unidade em Cristo assunto aos céus, que tem todas as realidades sob seu domínio e exerce seu triunfo sobre os inimigos da humanidade, pode-se inferir que o autor e os leitores da Carta tinham bem presente um fator de separação. “Ele é a nossa paz, de dois povos fez um só, derrubando em sua carne o muro da inimizade, que os separava” (Ef 2,14). Se a unidade não fosse problema, ela seria ignorada e outro problema seria discutido. Ora, o que separava a comunidade destinatária da Carta aos Efésios? Por que a insistência na derrubada do muro da inimizade?
O muro da inimizade ou muro de separação foi algo bem concreto no primeiro século, conforme recente descoberta arqueológica. No Templo construído por Herodes, havia uma inscrição que advertia aos gentios que evitassem entrar no perímetro do Santuário, sob pena de morte . Uma inscrição, em grego, para que todos a pudessem ler, rezava:
“Nenhum estrangeiro entrará no pátio guardado do Santuário.
Aquele que, porém, for aí encontrado, será responsável por provocar a própria morte”.
Essa inscrição é aludida por Flávio Josefo, historiador judeu do primeiro século, nas obras Guerra Judaica e Antiguidade Judaica . Ela é considerada o muro da inimizade que separava judeus e gentios a que Ef 2,14 se refere. Com a destruição do Templo no ano 70 dC., o muro de separação continuou a motivar a inimizade, não mais como uma inscrição na pedra, mas ideologicamente, como uma inscrição nas entranhas das consciências. O Novo Testamento registra que a inclusão dos gentios na comunidade cristã foi considerada, por muitos cristãos de origem judaica no primeiro século, como uma grande ofensa (cf. Mc 7,26–27; At 21,27–28). E só a custo, os mesmos puderam ocupar seu espaço nas comunidades cristãs das origens. Sobre isso, Lucas escreve o episódio de Pedro na casa de Cornélio e mostra como a entrada dos gentios na comunhão eclesial não se deu por iniciativa humana, mas por ação do próprio Espírito (At 10,1–11,18) .
Se Deus é comunhão – Pai, Filho e Espírito Santo – e se por meio de Cristo ele restaurou a unidade dos humanos, derrubando definitivamente o muro da separação, o que dizer dos muros de separação que ainda hoje se erguem entre nós? Por que ainda tanta violência contra os homossexuais, tanto preconceito e racismo em relação aos negros, tanta imposição sobre as culturas dos povos originários e tanta sujeição das mulheres aos varões? Parece que a superação se deu no âmbito teológico-soteriológico, mas sua implicação prática anda bem longe de nossas igrejas e dos corações dos crentes. Em tempos de pluralismo religioso e cultural, nenhum testemunho cristão pode ser mais eficaz que o da tolerância e do diálogo entre as religiões. E, em meio a uma sociedade multirreferencial e sem uma visão hegemônica, nada pode ser mais cristão que aceitar o outro do jeito que ele é, embora não concordemos com seu modo de viver.
A fé cristã, em nome da verdade salvífica, não pode ser instrumento de divisão. Qualquer pretensão nesse sentido nega a essência da própria fé, que tem em Cristo aquele que supera o muro da divisão. Deixar que o outro seja, que ele se descubra e que construa para si uma identidade confiável, é sem dúvida a maior dádiva que podemos ofertar aos outros. Como os cristãos de origem judaica pressionavam os cristãos do mundo gentílico a entrarem na forma do judaísmo, não faltam hoje cristãos apegados ao regime de cristandade, que tencionam obrigar as consciências a se curvarem às suas crenças. Em vez do ἀγάπη (agape) de Cristo, ofertam violência e desrespeito. Semeiam discórdias e colhem inimizades. Isto pode ser visto nas redes sociais e em outros meios de comunicação: homéricos debates tentam incriminar as partes. Em vez de tolerância e diálogo, veem-se acusações e ofensas. Em vez de perdão e ajuda mútua, encontramos juízos pesados e exclusão, quando se deveria saber que a “tolerância é a marca característica principal da verdadeira igreja” .
A Carta aos Efésios com sua mensagem central sobre a unidade nos convida a enxergar além de nossas convicções intransigentes e a derrubar os muros de separação. Toda pessoa merece e exige respeito. Por meio de Cristo morto e ressuscitado, a humanidade foi unida ao Pai, mas essa unidade se efetiva por caminhos que nem sempre conseguimos enxergar. Ele é o Deus misterioso que age na intimidade das consciências e não permite mais juízo sobre o outro. Nele, todos estamos unificados e, consequentemente, obrigados a um amor ético que ultrapassa as afinidades ideológicas. Não escolhemos ser irmãos deste ou daquele sujeito. Irmãos a gente não escolhe; são-nos dados. E uma vez que nos são dados, estamos obrigados ao amor. Nossa unidade não é fruto de emoções, mas da obra salvífica de Cristo que fez dos povos um só e derrubou definitivamente os muros de separação. Qualquer outra tentativa de cristianismo é jogo de interesses e ignorância teológica. Certamente, ao cristão, é possível tolerar tudo, menos a intolerância. Esta mostra a face mais feia da humanidade e a instrumentalização da religião e da fé em nome dos interesses próprios.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Aila Luzia Pinheiro; RIBEIRO, Susie Helena. Targumim, as traduções aramaicas do Antigo Testamento, e alguns paralelos com o Novo Testamento. Perspectiva Teológica, Belo Horizonte, v.52, n.1, p.55-72, 2020.
CARMO, Solange Maria do. Jesus, Boa-nova universal de Deus: estudo bíblico-catequético a partir de At 10,1–11,18. Goiânia: Scala, 2014. v. 1 e 2.
CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA DEI VERBUM sobre a revelação divina. In Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II, 7a. ed. São Paulo: Paulus, 2014.
ARZT-GRABNER, Peter. Paul’s Letter Thanksgiving. In: PORTER, Stanley E. and ADAMS, Sean A (ed). Paul and the Ancient Letter Form. Leiden: Brill, 2010, p. 129-158.
BARTH, Markus. Ephesians: Introduction, Translation, and Commentary on Chapters 1–3. New York: Doubleday and Company,1974.
BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 1985.
BÍBLIA SAGRADA: edição pastoral. São Paulo: Paulos, 2014.
BICKERMAN, Elias J. Warning Inscription of Herod's Temple. The Jewish Quarterly Review, v. 37, n. 4, 1947, p. 387-405.
BROWN, Raymond E. The churches the apostles left behind. New York: Paulist Press, 1984
BRUCE, Frederick Fyvie. The Canon of Scripture. Downers Grove: InterVarsity Press, 1988.
CROUCH, James E. The Origin and Intention of the Colossian Haustafel. Gottingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1972.
HORSLEY, Richard A. “Paul and Slavery: A Critical Alternative to Recent Readings”. Semeia, n. 83-84, 1998, p. 153-200.
KEENER, Craig. Paul, Women and Wives: Marriage and Women’s Ministry in the Letters of Paul. Peabody: Hendrickson, 1992.
MacDONALD, Margaret. The Pauline Churches: A Socio-Historical Study of Institutionalization in the Pauline and Deutrero-Pauline Writings. Cambridge: Cambridge University Press, 1988. Society for New Testament Studies Monograph Series, 60.
OCKE, John. Cartas sobre a tolerância. São Paulo: Ícone, 2004
PENN-LEWIS, Jessie. The Magna Charta of Woman. Minneapolis: Bethany Fellowship, 1975
THOMAS, Yan. Droit domestique et droit politique à Rome. Remarques sur le pécule et les honores des fils de famille. Mélanges de l'Ecole française de Rome. Antiquité, vol. 94, no 2, 1982, p. 527-580.
TITE, Philip L. How to begin, and why? Diverse functions of the pauline prescript within a greco-roman context. In: PORTER, Stanley E. and ADAMS, Sean A (ed). Paul and the Ancient Letter Form. Leiden: Brill, 2010, p. 57-99.
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