36. Um samaritano desconcertante


Eduardo César Rodrigues Calil1
Solange Maria do Carmo2
Há muito que os estudiosos bíblicos orientam a ler cada Evangelho respeitando sua teologia particular. A teologia do autor, que se vê na estruturação da narrativa, no uso das palavras, no estilo que lhe é próprio, e ainda a comunidade narratária que recebe e recria o texto à medida que o lê, o próprio texto, com suas múltiplas possibilidades, foram focos da atenção de estudiosos ao longo desses quatro últimos séculos de pesquisas histórico-críticas, pragmalinguísticas e estruturais, bem como narrativas.
O que interessa é que cada texto tem um autor com um projeto distinto. Não é diferente com o Evangelho de Lucas, que organiza seus escritos num esquema coerente. Os textos lucanos podem ser identificados como uma unidade inseparável, cuja narrativa parte da promessa realizada, da espera que finalmente se realiza com o nascimento do Deus-Conosco (Lc 1–2), passa pela missão na Galileia (Lc 3,1–9,50), narra a subida e a atividade itinerante de Jesus em direção a Jerusalém (Lc 9,51–19,28) para finalmente mostrar Jesus como justo perseguido ou profeta rejeitado que segue até o fim amando e perdoando (Lc 22,1–24,53).Porém, os escritos lucanos não encerram aí a jornada do Ungido (Lc 4); estendem-se na ação da Igreja que, partindo de Jerusalém, onde o fim pareceu ter palavra definitiva na morte de Jesus, deve levar aos confins do mundo a salvação do Cristo (Atos dos Apóstolos). Em toda a obra, perpassa a misericórdia de Deus revelada em Cristo, que cumpre a promessa feita aos nossos antepassados e, na ação do Espírito, faz essa promessa sempre atual para todos os povos, sem exceção.
O evangelista se mostra um escritor organizado, com ideias concatenadas, fineza na escrita e de sensibilidade indiscutível. Preocupa-se, como bom pastoralista, com a práxis da fé, que se efetiva no amor aos rejeitados, aos excluídos, aos mais frágeis e esquecidos do sistema religioso convencional. Provavelmente, judeu da diáspora3, Lucas mostra grande preocupação com a universalidade da salvação. Por isso o anúncio da palavra — que é fruto da ação do Espírito — extrapola os limites do judaísmo e,no decorrer de toda a obra lucana, Jesus vai sendo revelado como boa-nova universal de Deus.
Escrito por volta do ano 80 dC (CASALEGNO, 2003, p. 241-422), o texto de Lucas pode receber muitos epítetos. Podemos chamá-lo de “Evangelho dos pobres” — não porque os outros não o sejam, mas por seu especial destaque a todas as categorias de pobres como destinatários de uma grande alegria, que chega com a visita de Deus na pessoa de seu Filho. Podemos, igualmente, chamá-lo de “Evangelho da visita”, pois o grande projeto de Lucas é identificado como a visita de Deus ao seu povo e, de modo mais amplo, a todos, a partir do anúncio dos apóstolos. Essa visita é fonte de alegria, contagiante e verdadeira, o que nos permite chamá-lo também de “Evangelho da alegria” (CASALEGNO, 2003, p. 74). Porque na pessoa de Jesus, a semente da palavra de Deus é semeada com prodigalidade a todos os povos, a começar nos cafundós da Galileia até chegar em Jerusalém (Evangelho de Lucas) e, depois, de Jerusalém aos confins da terra (Atos dos Apóstolos), esse Evangelho pode também ser intitulado “Evangelho da palavra”. Nele, Jesus, o semeador, semeia a boa notícia do cumprimento da promessa. Em Atos, ele, o semeador, torna-se semente que os discípulos pela ação do Espírito fazem chegar a todos os povos, representados em Roma, a capital do império. Como uma das partes do Evangelho é certamente sua caminhada para Jerusalém, rumo à morte e a caminho da glória, podemos identificá-lo também como o “Evangelho do caminho”. E, por fim, porque uma das grandes preocupações de Lucas é mostrar a misericórdia de Jesus, pois para isso Jesus é ungido—para proclamar o ano da graça do Senhor (Lc 4,19) —, podemos chamar essa narrativa de “Evangelho da misericórdia”.
Evidentemente poderíamos encontrar muitos epítetos também para os outros Evangelhos, a partir de uma leitura temática. Isso só nos mostra que as narrativas bíblicas são ricas em profundidade e que a leitura bíblica é infinita4, enquanto infinitos forem os leitores e seus anseios mais profundos. Os epítetos atribuídos à narrativa lucana só mostram o quanto a delicadeza do escritor realmente tem alcance e atinge os leitores exatamente lá onde o autor parece ter tido a intenção: ao coração dos homens e das mulheres de todos os tempos.
Poeta da compaixão
Segundo o teólogo José Antônio Pagola (2010), Jesus é o poeta da compaixão. Com uma linguagem inconfundível, clara e simples, Jesus se vale de imagens recorrentes e conhecidas, próprias da vida, a fim de alcançar seus ouvintes.
Ele não precisa recorrer a ideias abstratas ou frases complicadas; comunica o que vive. Sua palavra se transfigura ao falar de Deus àquelas pessoas do campo. Precisa ensiná-las a olhar a vida de outra maneira: “Deus é bom; sua bondade tudo enche; sua misericórdia já está irrompendo na vida”. É toda a Galileia que se reflete em sua linguagem, com seus trabalhos e suas festas, seu céu e suas estações, com seus rebanhos e suas vinhas, com suas semeaduras e colheitas, com seu formoso lago e com sua população de pescadores e camponeses (2010, p. 145).
Nos relatos dos evangelistas, destacam-se as parábolas5. Elas revelam, sem dúvidas, um modo próprio de Jesus comunicar o mistério da Vida, o mistério de Deus e de seu reinado. Cheias de estranhezas, as parábolas visam a intrigar os simpatizantes curiosos6, movendo-os a sair da multidão para entrar na intimidade dos discípulos, que a sós podem perguntar ao Mestre o verdadeiro sentido das parábolas.
José González-Faus (1984) afirma que o binômio Reino-Abbá é inseparável na pregação de Jesus. Jesus não prega a si mesmo; ele nunca é matéria de seu próprio anúncio, segundo o teólogo espanhol. O que Jesus procura fazer é revelar o seu Pai, torná-lo dizível sem espremê-lo em conceitos enrijecidos, em afirmações cristalizadas. Deus não tem nada a ver com as afirmações endurecidas, e as parábolas não são uma postulação de assertivas, mas são imagens que apontam para outra realidade, para um ainda-não e para um poder-ser adormecidos na profundidade do presente. Se elas perdem em precisão, ganham em significado, graças à plasticidade de suas imagens. Suas figuras, que sinalizam uma compreensão que excede e ultrapassa toda tematização doutrinária, contém aquilo que nem as palavras podem conter. Por isso, as parábolas são apropriadas para falar de Deus. E por isso também falam de seu reinado; não do Reino como lugar, como espaço, mas como modalidade de vida, como acontecimento que irrompe das relações e das atitudes.
Os evangelistas deram, cada um à sua maneira, um tratamento especial para as parábolas na composição de seu próprio Evangelho. São elaborações atribuídas a Jesus; ou seja, são imagens que a comunidade de fé conservou como algo que genuinamente comunica a fé; não são —é claro — palavras ipsis litteris de Jesus, como acontece também com todos os relatos bíblicos, que se caracterizam bem mais como narrativas de fé pós-pascal do que como crônica da vida de Jesus. Tendo conservado uma tradição de fé que não deveria jamais se perder a não ser sob o risco da identidade da comunidade eclesial, os autores consignaram em forma de texto aquilo que a memória amou e jamais se permitiu esquecer. Logo, os relatos dos Evangelhos são construções dos próprios evangelistas ou de sua comunidade de fé, ao mesmo tempo em que são de Jesus. Alguns estudiosos da bíblia, como Joaquim Jeremias, dedicaram sua vida à tentativa de distinguir quais palavras são verdadeiramente de Jesus e quais são a ele atribuídas, para depois se render ao mistério do texto como relato que nasce da fé dos primeiros cristãos. Porém, as interpretações bíblicas têm cada vez mais se afastado dessa preocupação de saber as palavras genuinamente jesuânicas, pois o que temos como fonte são as páginas das Escrituras e é isso que interessa. O mais fundamental, no entanto, é que, mesmo não sendo propriamente de Jesus, as parábolas — como todos os relatos dos Evangelhos —traduzem quem ele foi, bem como sua missão: ele foi poeta da compaixão e profeta de um Deus que está às portas. Ele é a presença de Deus que nos ajuda a ver a vida verdadeira, escondida nas nervuras do real. Seu jeito de viver e de falar do Pai contagiava os seus, impregnando-os de fé e fazendo-os crer num Deus que é amor, muito para além da imagem do Deus terrível e tremendo, ensinado pelos representantes da religião de seu tempo. Como afirma Xabier Pikaza (2019), a Igreja dos primeiros séculos ousou falar em parábolas como Jesus falava, soube contar histórias para traduzir e dizer o mistério. Ou seja: Jesus não só ensinou aos discípulos a beleza da comunhão com Deus, como também os ensinou a ensinar esse mesmo mistério.
Embora os cristãos do alvorecer do cristianismo tenham sido valentes, os das gerações vindouras esqueceram-se de como contar parábolas. Das imagens ricas em simbolismo, a fé cristã passou a formulações fechadas no desejo de preservar a ortodoxia. Dizer a fé de modo ortodoxo, ou o “dizer reto”, dizer preciso, determinado, com limites estabelecidos, pode trazer precisão nas fórmulas, mas perde em estética, em grandeza e em diálogo.
As parábolas, ao contrário, exigem a coragem da fé, aquele parrhesia da qual Lucas não se cansa de falar e que é relatada na pregação dos primeiros apóstolos (At 4,13.29.31; 9,27-28; 14,3; 18,26; 26,26). As parábolas tocam ainda hoje na intimidade do crente, levando-o a enfrentar a intriga que ela provoca, intriga que está para além das exterioridades, mas que convida o crente a assumir sua verdade íntima mais profunda, ou seja, instiga a enfrentar o desafio de sua própria interioridade. Na sociedade atual, complexa e multirreferencial, muitas vezes também chamada de esfacelada e superficial, homens e mulheres não deixaram de ter sede de sentido e ainda enfrentam o desejo de encarara vida, de encarar o enigma que nós somos. Daí a atualidade das parábolas, sempre provocantes, inquietantes, estranhas e cheias de força, capazes de fazer o que é próprio da palavra de Deus: separar o osso da medula (Hb 4,12).
A parábola do bom samaritano (Lc 10,27-37)
A parábola do bom samaritano já apresenta de cara uma estranheza. Não é como as outras que falam diretamente de Deus e do seu Reinado; o faz somente de modo indireto. É uma parábola contada para responder à questão imposta pelo mestre da Lei: “Quem é meu próximo”? Mas, em verdade, a parábola não chega a ser uma exceção à regra, pois em sentido amplo tudo o que ela narra toca indiretamente no jeito mesmo de Deus agir para conosco e no que é propriamente o seu reinado.
Sua narrativa se localiza na segunda parte do Evangelho de Lucas, na grande subida para Jerusalém. Subida constantemente interrompida, pois a missão de Jesus não é só chegar em Jerusalém, mas mostrar a misericórdia do Pai de modo resoluto. Em toda a sua viagem de Nazaré a Jerusalém, Jesus estende sua misericórdia a todos, lança-a ao longo do caminho, faz dela mesma um caminho de vida, até irradiá-la definitivamente do alto da cruz, onde pede perdão para seus algozes (Lc 23,34a).
Tomemos a parábola, cercando seus contextos e suas compreensões vigentes, analisando seus personagens e fazendo as focalizações textuais necessárias para apresentar algumas discussões e, em seguida, propor uma possível atualização, a partir de duas pequenas considerações.
Jesus conflitivo e perigoso: um contexto recolhido dos Evangelhos
Jesus não morreu à toa. A liberdade de seu anúncio, bem como o conteúdo do que ele anunciava, incomodou o sistema. As reações diante dele são diversas. Enquanto as multidões, movidas por interesses distintos, se aproximavam do Mestre de Nazaré, os que viam nele uma ameaça ao poder estabelecido— as autoridades religiosas e políticas — começaram a tramar sua morte.
Um dos grupos incomodados é certamente o grupo dos fariseus. Em reposta a esse desconforto, não é raro encontrar nos evangelhos relatos em que os fariseus fazem perguntas traiçoeiras a Jesus, armam-lhe ciladas ou procuram desacreditá-lo em meio à multidão (Lc 10,25; 20,19-20 etc.). Jesus, igualmente, aparece sempre a contrariá-los, chamando-os de guias cegos, hipócritas, sepulcros caiados... São eles o alvo das críticas mais ferozes que os evangelistas atribuem a Jesus (Mt 15,14; 23,13-32; Lc 11,37-54; 20,45-47 etc.).
Sabemos que o grupo dos fariseus é mais misto do que parece, à primeira vista. Os Evangelhos não recobrem essa diversidade, mas nos dão pistas. Segundo as pesquisas atuais, especialmente as de Sanders (2004) e Saldarini (2005), o grupo misto dos fariseus, de maneira geral, é menos um grupo religioso dedicado ao estudo da Torah, menos uma escola de caráter acadêmico e muito mais uma seita obcecada com suas refeições e os rituais em torno delas (SANDERS, 2004 apud PAGOLA, 2010, p. 401; SALDARINI, 2005).
É possível que os Evangelhos reflitam muito mais as disputas da Igreja nascente com os setores judaicos, do que os conflitos entre Jesus e os fariseus no ano 30. Mas, sem sombra de dúvida, o anúncio de Jesus que revelava o Deus da vida, Deus não aficionado a um seguimento estrito da Lei nem a intepretações estritas das Escrituras, deve ter incomodado os setores fariseus. Para Jesus, o fundamental era ouvir o convite de Deus para entrar em seu reinado, que é o reinado da graça, da humanidade que se fraterniza. Por isso, os próprios relatos evangélicos, fazendo ecoar os textos proféticos, não se cansam de mostrar Jesus interpretando a Lei, retomando-a em seu verdadeiro sentido, radicalizando-a ao recuperar seu espírito ou eliminando disposições mosaicas para preservar a vida, como é o caso do Sermão da Montanha (Mt 5,20-48). A relação de Jesus com a Lei se evidencia, em muitos textos evangélicos, como uma preocupação com a vida e não com a prescrição. Esse modo de ler a Torah tornou-se fonte de incômodo para os fariseus e doutores da Lei, apegados às suas prescrições muito mais que ao Deus que supostamente as teria prescrito.
Para os doutores da Lei, Jesus devia ser considerado um liberal ou até mesmo uma laxista. Os mestres da Lei eram grandes conhecedores das Escrituras e procuravam nas narrativas regras para o agir. Eles pensavam saber exatamente quem Deus é e qual o seu modo de agir, pois Deus mesmo se revelava e, por que não, se presentificava na Torah. Seguir a Lei significava precisamente viver segundo a vontade de Deus, que abençoava os justos com riqueza, muitos filhos e vida longa, e amaldiçoava os pecadores com toda sorte de castigos. Mas Jesus parece ter desautorizado a Torah, não raras vezes, especialmente quando esta tornava o agir de Deus mecanicizado e pré-fixado pela ordem da retribuição. Jesus se mostra nos Evangelhos como aquele que instaura uma espécie de surpresa diante de um Deus que faz brilhar o sol sobre bons e maus e cair a chuva sobre justos e injustos (Mt 5,45)e que veio para os pecadores muito mais que para os justos (Mc 2,17) como criam os fariseus. Ele desautorizou a literalidade da Lei, que leva à morte, exclui e separa. Ao contrário, inseriu sua reflexão no âmbito da inclusão e da gratuidade do amor de seu Pai. Alargou sentidos estritos para não deixar o cumprimento da Lei se tornar um modo cômodo de relacionar-se com Deus, enquanto os fariseus resumiam-nano cumprimento da norma e em consequente consciência tranquila.
Entre os saduceus, Jesus também enfrentou oposições. A associação mesquinha do sacerdócio ao governo com intenções de lucro, através do esquema de sacrifícios, taxas, dízimos; a regulação da relação do povo com Deus a partir de uma hierarquização religiosa; o engendramento de um Deus do medo, da separação baseada na imposição da distinção puro-impuro, tudo isso se mostra incomodando Jesus. Em contrapartida a essas práticas, Jesus criticou a corrupção do Templo (Mc 11,15-19), relativizou a liturgia (Jo 4,21-24) e democratizou Deus(Mc 9,38-40), fazendo-o próximo do povo e da vida muito mais que do culto e do lugar sagrado. Jesus eliminou as imagens do Deus amedrontador e afeito aos rituais, evocando a imagem do Deus que quer misericórdia e não sacrifícios (Mt 12,7).
Os sacerdotes não cuidavam só do Templo e do exercício sagrado; cuidavam também do tesouro. Jesus provavelmente tinha contato com eles apenas por ocasião da Páscoa (Jo 2,23; 6,4; 11,55-56; Lc 22,7-20 etc.) ou de outras festas religiosas (Jo 5,1; 7,2.14; 10,22), quando subia para Jerusalém. Mas os Evangelhos mostram como a sua fama chegou logo aos ouvidos da casta religiosa, já que ele se punha à margem não só do esquema de sacrifícios, mas também acolhia os pecadores de forma amigável, oferecia-lhes o perdão, rompendo com os esquemas de expiação, chegando a absurdidade de afirmar que prostitutas, cobradores de impostos nos precederão no Reino de Deus (Mt 21,31). O Templo não representava assim um centro religioso indispensável para Jesus, experiência que João faz questão de relatar quando, no diálogo com a Samaritana, afirma que os verdadeiros adoradores adorarão em espírito e em verdade não num templo ou em outro (Jo 4,22-24). Sem pertencer a nenhuma linhagem sacerdotal7, mesmo assim Jesus agia como sacerdote quando curava e purificava os doentes, perdoava os pecadores, manifestava a salvação aos que estavam perdidos. Os sacerdotes de sua época não teriam se incomodado com essa relativização de seu presunçoso papel mediador?
Os samaritanos versus os judeus: o eterno nós-contra-eles.
Os samaritanos eram detestados pelos judeus. Os judeus sempre se identificaram como o povo da aliança, povo escolhido. A compreensão de sua missão como luz para as nações, de serviço aos outros povos, não foi facilmente alcançada, apesar de anunciada pelo profeta Isaías (49,6; 60,3). A expressão povo de Deus rapidamente conheceu seu paralelo Deus do povo. Em vez de fazer do povo uma propriedade de Deus, essa relação Deus-povo fazia de Deus uma propriedade particular daquela gente. Numa espécie de henoteísmo ou mesmo monolatria, o Deus de Abraão fora convertido no maior dos deuses, o Deus que elimina os inimigos de Israel e o protege. Não demorou muito para que Deus se tornasse propriedade das lideranças religiosas que se entendiam como legítimas representantes do Senhor e arautos da vontade divina. Em outras palavras, a particularização de Deus como Deus-do-povo também justificou a xenofobia de Israel contra os povos circunvizinhos, vistos como inimigos.
Os samaritanos eram alvo dessa xenofobia. Eram simplesmente insuportáveis para os judeus, pois eram vistos como mestiços, idólatras, hereges8. A propósito disso, vale lembrar o Evangelho de João quanto à controvérsia entre Jesus e os “filhos de Abraão”, que não admitem a palavra de Cristo e o chamam de samaritano (“Não temos razão de dizer que és um samaritano e que tens um demônio?” – Jo 8,48).
É impossível dizer que Jesus não seja judeu ou que ele não pertencesse ao povo da aliança. A acusação de ser samaritano é uma tentativa de desacreditar Jesus atribuindo-lhe poderes satânicos. Na realidade, chamar um judeu de samaritano era uma das piores ofensas que se lhe podia fazer, bem como dizer que um judeu estava com um demônio, pois tal afirmação correspondia a dizer que esta pessoa era louca, totalmente insana e insensata. É interessante notar como os samaritanos são detestados: até o nome do povo virara xingamento na boca dos judeus. Jesus, nesse texto de João é, segundo seus opositores, inimigo de Deus (tem um demônio) e inimigo do povo (é um samaritano), porque pretende com sua pregação desmantelar a ordem, sobretudo a religiosa.
Está aqui o frequente nós-contra-eles presente em todas as sociedades. O ideal de identidade como distinção, separação, a determinação de quem está fora e quem está dentro, quem é próximo e quem não é.
O mestre da Lei como diabolos
A parábola do bom samaritano é uma resposta à pergunta de um mestre da Lei que, segundo Lucas, quer experimentar Jesus: “Mestre, que devo fazer para ter a vida eterna?”. A pergunta poderia ter nascido da curiosidade ou do desejo. No fundo, essa é uma grande questão que poderia ser traduzida para nosso tempo com muitos matizes: “O que podemos fazer para recobrar a largueza de espírito? O que podemos fazer para que a vida tenha sentido? Como podemos agir para que ela não seja vã?”. Uma questão, portanto, que toca o enigma da existência: Haverá algo de inequívoco que nos permita sentir que vale a pena, de fato, viver? Afinal, a vida eterna não é uma referência à vida depois da morte, formulação ainda precária naquele contexto, mas um modo de dizer a vida plena que se esperava com a chegada do Reino de Deus.
A pergunta, portanto, não é má. É a questão de um discípulo dirigida a um rabino (GOURGUES, 2005, p. 19). Os mestres da Lei deviam mesmo se preocupar com o fundamental, com aquilo que é mais central em relação ao mais periférico, afinal não eram poucas as leis que já tinham sido descravadas das Escrituras. Eram 613 normas! Em meio a essa série de regras, deveria haver uma hierarquia.
Tratar-se-ia de uma inocente questão, não fosse o evangelista usar a palavra ekpeirazô, um verbo em grego que significa tentar. O mesmo verbo usado para falar das tentações que Jesus sofreu no deserto (4,12). Assim, com essa expressão, o evangelista focaliza internamente as intenções do personagem, mostrando que sua pergunta não chega a ser a pergunta do desejo, mas uma armadilha astuta. Aqui, o mestre da Lei é como um diabolos, querendo pôr Jesus em dificuldade, com uma pergunta que parece ser anseio de vida.
As contraperguntas de Jesus
Ao astuto mestre da Lei, Jesus devolve a questão. Os comentadores, em geral, comparam Jesus aqui a um rabino que não dá respostas prontas, mas leva o discípulo a pensar (LEVINE, 2016, p. 83). Jesus lhe pergunta: “O que está escrito na Lei? Como lês”. Com essas interrogações, Jesus devolvia o mestre da Lei ao patrimônio cultural de que ele era representante: na Torah, entendia-se, já estava contida a vontade de Deus. Como, pois, o mestre da Lei não a conhecia?
As perguntas de Jesus, muitas vezes lidas como sinônimas uma da outra, trazem questões diferentes. É importante separá-las: 1) “O que está escrito na lei? 2)Como lês? As duas são fundamentalmente distintas, embora associadas. Se o mestre da Lei é reconhecidamente alguém que estuda as Escrituras noite e dia, o que o leva a saber o que está escrito, mais importante talvez seja saber como ele as lê. Uma pergunta assim ultrapassa definitivamente o campo da letra e, atravessando-o, questiona a interpretação do doutor da Lei. Se a primeira diz respeito à memória e à capacidade de arquivar os preceitos escritos na Torah, a segunda diz respeito ao modo como a Escritura é lida, ou seja, à hermenêutica necessária a todo texto, especialmente aos que trazem o atributo “sagrado”. Trata-se de algo bem mais profundo: de saber como a Torah se inscreve no coração e na vida do mestre da Lei bem mais que na sua memória. Com isso, Jesus nos indica que ficar no que está escrito não é suficiente. No entanto, é assim que os homens do sagrado aparecem nos Evangelhos tratando a Lei: menos como uma instrução de Deus para a vida (instrução que não está nas alturas do céu nem do outro lado do mar, mas dentro do coração, conforme escrito em Deuteronômio 30,14) e muito mais como uma letra impessoal e genérica, cravada em pedras frias.
“Faze isso e viverás”
O mestre da Lei respondeu Jesus recordando o grande princípio do amor a Deus (Dt 6,5) calcado na oração diária do shemá (Escuta, Israel). A esse princípio, sabiamente, o doutor da Lei unirá o do amor ao próximo, amor esse direcionado ao compatriota (Lv 19,18) formando assim o núcleo da vida de fé de todo judeu9.
O doutor sabe que respondeu bem10: conservar a inseparabilidade do amor a Deus e do amor ao próximo é o cerne da Torah. A supremacia do amor a Deus, imposta pelo primeiro mandamento do decálogo, ficara garantida. A obrigação ingente de cuidar do compatriota também.
Se o mestre da Lei se mostrava contente com sua resposta, Jesus então também se dá por satisfeito: “Faze isso e viverás”. O acento é colocado no “faze”, na práxis, grande característica do pensamento bíblico e judaico. Desta forma, as três camadas da leitura judaica aparecem demarcadas no texto: saber o que a Torah diz (a literalidade do texto), saber interpretá-la (a hermenêutica) e comprometer-se a vivê-la (a pragmática) (SCARDELAI, 2012, p. 109-110).
Para Jesus, é no fazer que as pessoas se fazem —e se desvelam. Esse agir é a fonte da vida: 1) amar a Deus, ou seja, mantê-lo como absoluto, não deixando nada recair para esse lugar de negatividade existencial, não permitir que nada cubra o infinito desejo humano e só Deus, como absoluto, poderá manter a chama do desejo aberto. 2) amar o próximo como a nós mesmos, ou seja, questionar o amor a si no amor ao outro, ver-se no rosto do outro, sofrido e desfigurado. Pois todo amor, no fundo, é também uma pergunta pelo nosso mistério em conjunção com o mistério do próximo.
“Quem é o meu próximo?”: uma pergunta que não se faz
É com essa questão que o mestre da Lei deflagra sua própria experiência religiosa: ele é capaz de responder corretamente (a ortodoxia), mas tal resposta mascara uma dificuldade para agir de acordo com esse princípio fundamental (a ortopraxia). Conforme Kunz, “este homem tinha a teologia certa, mas a questão é: Estava disposto a agir de acordo com ela? O seu estado intelectual era excelente; o seu desempenho ainda estava em dúvida” (KUNZ, 2016, p. 63). O amor a Deus mostra-se fácil de inculcar e recomendar, mas o amor ao próximo (sem o qual o anterior é mentira— cf. Jo 4,20), esse é alvo de muitas confusões e questionamentos, e os judeus se perguntavam, com frequência, sobre quem é o próximo11. No Antigo Testamento, o próximo era o compatriota, ou o migrante que tinha sido incluído na comunidade. Já no tempo de Jesus, o próximo era alguém do grupo religioso ou da família e, em raríssimas exceções, o estrangeiro. Mas o próximo não poderia ser alguém dos povos pagãos, que eram tidos como inimigos dos judeus. Segundo Kunz, “a palavra próximo tinha um sentido de reciprocidade: ‘ele é meu irmão e eu sou irmão dele’”, fechando um círculo de egoísmo e etnocentrismo (2016, p. 63). No Antigo Testamento, retrato desse descaso e desprezo ao estrangeiro é relatado no livro de Jonas, o profeta às avessas, que não compreendeu que o amor de Deus se destina também aos estrangeiros, seus inimigos ninivitas. Tal dificuldade de aceitação dos gentios como foco do amor divino fez com que a Torah fosse interpretada no âmbito do “amar o próximo e odiar os inimigos”, como lembra Mateus 5,43. A Lei, regulamentando o amor ao compatriota, deixava brecha para o desprezo e o ódio a outros povos, ou seja, para uma hermenêutica interesseira que justificava a práxis de exclusão, ao mesmo tempo que mantinha intocável o que estava escrito.
A pergunta “Quem é o meu próximo?” indica algo mais além. Se a pergunta é totalmente pertinente do ponto de vista jurídico (LEVINE, 2016, p. 88), ela é impertinente do ponto de vista existencial, pois se perguntamos quem é o próximo é porque já nos esquecemos do mais óbvio. Fechamo-nos ao exercício da gratuidade e nos colocamos no círculo restrito do dever (KUNZ, 2016, p. 66).
A resposta de Jesus a essa questão será uma belíssima parábola.
Sacerdote e levita: homens da religião
A parábola lucana tem qualquer verossimilhança com a realidade: Jerusalém está a 750 metros de altura, enquanto Jericó está a 300 metros abaixo do nível do mar, cobrindo um desnível de aproximadamente 1000 metros (MCKENZE, 1983, p. 472). A estrada de um lugar a outro é desértica e cheia de escarpas. O caminho era feito somente por caravanas, por grupos acompanhados, nunca individualmente, pois o risco de cair na mão de salteadores era muito grande.
Pois é justamente isso o que acontece com o primeiro personagem da parábola de Jesus. Um peregrino vindo de Jerusalém cai nas mãos de ladrões. Mas a cena é mais dramática: ele não só fora assaltado, como também despojado (alguns dizem desnudo), espancado e deixado à beira da morte. São roubados não apenas seus bens, mas sua dignidade (LEVINE, 2016, p. 92). A cena, assim descrita, é digna de compaixão. O homem precisa de ajuda.
Como afirma o teólogo belga Adolphe Gesché (2005, p. 49-51), a parábola não procura culpados, não se pergunta pelos assaltantes, mas se ocupa da vítima que precisa ser socorrida. Já sabemos que a intenção da parábola é responder à pergunta “Quem é o meu próximo?”. Uma leitura mais atenta, porém, leva o leitor a perceber que a parábola tem também outra intenção: mostrar que misericórdia, em primeira mão,é cuidar das vítimas da violência e do descaso.
Jesus inclui, então, outro personagem. É um sacerdote. Ele desce de Jerusalém para Jericó. Certamente, se vem de Jerusalém, já participou do culto e está no auge da pureza. Jericó, de fato, é uma cidadezinha que hospeda os sacerdotes que voltam para casa, depois do turno de afazeres no Templo. Ao ver o homem à beira do caminho, o homem do culto passa ao largo.
Visto o homem estar “semimorto”, o sacerdote provavelmente não poderia ter a certeza se estava morto ou não, sem tocá-lo. Mas se o tocasse, e o homem realmente estivesse morto, então teria incorrido a contaminação cerimonial que a Lei proibia (Lv 21.1ss). Poderia ter a certeza de conservar sua pureza cerimonial somente por meio de deixar o homem como estava. Poderia ter certeza de que não omitia ajuda a um necessitado somente por meio de ir até ele. Neste conflito, a pureza cerimonial ganhou a batalha (KUNZ, 2016, p. 64).
Assim, o sacerdote, “movido por uma força centrífuga, descreve em sua passagem um arco de círculo em torno do ferido, centro de gemidos e sangue, e deixa atrás de si a sombra de sua indiferença criminosa” (CAMARGO, 1970. p. 105).
Vem o terceiro personagem que, ao que tudo indica, também faz a descida de Jerusalém para Jericó; dessa vez é um levita, um servidor do Templo, que também se desvia do estropiado. A parábola não explica o porquê do comportamento dos dois homens do Templo, tampouco os condena. Os ouvidos sensíveis provavelmente já os acusaram de omissão, enquanto, provavelmente o ouvinte de Jesus, o mestre da Lei, já justificou a ambos: eles não tinham obrigação para com aquele caído; tocar um impuro poderia torná-los impuros também, inaptos para o culto. Obrigá-los-ia à expiação e aos sacrifícios. Não seria conveniente essa atitude, a não ser sob o risco de se expor aos interditos da Lei.
Podemos dizer que estes homens erraram? Certamente, lembraram-se do risco de se tornar impuros, mas esqueceram-se da obrigação ética que a fé monoteísta impunha. “O culto oficial, representado pelo sacerdote e pelo levita, deveria custodiar a Lei, promovendo seu pleno cumprimento” (BARRETO, 2019, p. 154), mas, segundo a impostação da parábola lucana, acontecia exatamente o movimento contrário. Teriam os representantes religiosos se esquecido que o Deus dos judeus não era como Baal, a quem bastavam o culto e os ritos litúrgicos? O Deus monoteísta odiava as luas novas, as festas e o jejum daqueles que se descuidavam da justiça social, dita como cuidado com os órfãos, as viúvas e os estrangeiros residentes em terras de Israel (Is 1,14; 58,6-9; Am 5,21). Tiago, já no Novo testamento, lembra a seus leitores qual é a verdadeira religião: cuidar dos órfãos e das viúvas (1,27). Mas, como a parábola não está procurando culpados, Jesus não profere uma única palavra de repreensão a esses homens religiosos. Eles seguem adiante sentindo-se corretíssimos segundo a Lei que proibia aos sacerdotes a aproximação de qualquer cadáver, a não ser um parente muito próximo(Lv 21,1-2). Parecera-lhes melhor não se arriscar à impureza12, apesar de Lucas deixar claro que o caído estava “semimorto” e não morto. Fizeram como mandava o figurino, agiram de acordo com a letra, podiam permanecer de consciência tranquila. Não maltrataram ninguém, não agiram com violência. Não fizeram o bem, mas também não fizeram o mal, e isso bastava-lhes. Mas será?
Um samaritano desconcertante
Entra em cena um último personagem: um samaritano13 que passava pelo caminho. Último personagem não só na apresentação cronológica, mas também em dignidade, em conceito, em merecimento de respeito. Um homem ignóbil, mestiço, herege, inimigo do povo e de Deus por causa de seu sincretismo religioso. A cena parece entrar em câmera lenta; os verbos recobrem o suspense: chegou junto dele, viu-o e moveu-se de compaixão14; aproximou-se e cuidou de suas chagas. Chegar junto coloca-se frontalmente em oposição a passar ao largo, expressão utilizada para falar da atitude do sacerdote e do levita. Ver e parar, em oposição a ver e prosseguir. Mover-se de compaixão, em oposição aagir conforme a Lei. Aproximar-se, em oposição a ir embora. Cuidar dele, em oposição a deixá-lo por sua própria conta, abandonado à sua triste sorte. A pergunta “Como lês?”, com que Jesus questionou o mestre da Lei, certamente apontava justamente para isto: é possível que haja uma leitura da Escritura que privilegie uns textos em detrimento de outros; é possível que ela recubra e até mesmo justifique a indiferença para com os outros em vez de favorecer o cuidado pela vida. Mas não para Jesus.
A cena ainda focaliza os cuidados que o samaritano pratica: o vinho e o óleo derramado nas feridas15, o transporte em sua própria montaria até um local de hospedagem, além do pagamento das despesas da hospedaria, com a promessa de compromisso futuro de pagar novas despesas. Tudo descrito com cuidado narrativo. Teria Lucas alguma intenção com isso? Essa descida da lente sobre a história pretende o quê, senão destacar o comportamento desse samaritano? É o clímax da narrativa, para o qual todo o suspense, toda a expectativa encaminhou o leitor: esperava-se que alguém fosse fazer algo, mas ninguém fez nada. Mas aquele de quem nada de bom podia ser esperado torna-se o autor e protagonista da cena. Um samaritano desconcertante. Um homem desprezado pela casta dos religiosos, mas que não despreza o sofredor. Um impuro segundo a Lei, mas capaz de purificar as feridas do caído. Um desumanizado aos olhos dos grandes, mas que não aceita a desumanização de ninguém, nem mesmo de um inimigo. Um maldito mestiço, mas que não olha a raça, não confere se o caído tem prepúcio ou não, se é ou não judeu. Um herege na teoria, mas ilibado na ortopraxia. Um homem longe de Deus, mas que possui um atributo divino: a compaixão.
Quando a pergunta é bem colocada
É nesse momento que Jesus inclui uma questão que inverte toda a expectativa do leitor. Ele poderia ter perguntado: “Quem é, então, o próximo?”. E a resposta do mestre da Lei, e também a nossa, a essa altura, seria: o homem caído, que necessita de cuidados. Mas a pergunta de Jesus é diferente. Tem uma nuance que vale a pena ser observada: “Qual dos três, em tua opinião, foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?”. A pergunta, note-se bem, não é mais por quem é o próximo, mas por quem se tornou próximo. No fundo, não se trata de colocar ninguém como objeto de nosso amor, mas de fazermo-nos sujeitos do amor, aproximando-nos dos outros com a generosidade que supera barreiras culturais e religiosas.
A pergunta de Jesus é bem colocada e não dá margem para respostas prontas. Ela nos lança para nós mesmos. Mesmo guardando certa distância do samaritano, evitando nomear sua origem, o mestre da Lei responde: “Aquele que agiu com misericórdia”. Agir com misericórdia é atitude atribuída apenas a Deus, no Antigo Testamento, e a Jesus, no Novo. Com isso, o Evangelho nos mostra que o agir do samaritano foi igual ao agir de Deus e que essa é a perfeição do Pai que devemos imitar: “Sede misericordiosos como o Pai do céu é misericordioso” (Lc 6,36).
Por isso, podemos dizer que, ainda que a parábola não toque diretamente no nome de Deus ou fale de seu reinado, à moda de outras que começam com a expressão “O Reino de Deus é como...”; a parábola do bom samaritano toca a essência de Deus mesmo e o modus operandi de Jesus Cristo, que fez seu caminho agindo com misericórdia, especialmente para com os mais desprezados, os mais pobres. Para Barreto,
ratifica-se, portanto, a nova antropologia inaugurada e defendida por Jesus. Nela, Deus e o ser humano aparecem sempre como realidades intrinsecamente unidas. É impossível prestar culto a Deus, se este não se faz realidade na solidariedade das relações humanizadas e humanizantes (BARRETO, 2019, p. 152).
Ao fim, depois de o mestre da Lei ter assumido que a ação do samaritano tem traços divinos, Jesus ordena que ele faça o mesmo. Parece ser esta a verdadeira Lei, a única lei que de fato importa.
Considerações finais: extensão da parábola
Toda parábola tem longa extensão. Nas duas considerações que se seguem, mostramos algumas possibilidades da parábola do bom samaritano.
O outro sempre será um problema?
A parábola de Jesus parece colocar um problema incontornável: não somos só nós que nos fazemos próximos dos outros, os outros também se acercam de nós e também se fazem próximos, com suas necessidades, dilemas, angústias e problemas. Nossos amores primevos não só nos cercaram de cuidados, na melhor das hipóteses, mas se dobraram sobre nós e se constituíram como outros-de-nós-mesmos. Nosso jeito de ver estará sempre, queiramos ou não, marcados pelo que conseguimos captar do outro, pela imagem do outro dobrada sobre nós. Assim, o outro jamais será apenas ele, mas também nós mesmos e vice-versa. O próximo em sua irredutibilidade só poderá ser ele mesmo, é óbvio, mas sempre haverá algo do outro debruçado sobre nós, a partir da relação, do encontro, das alterações que a alteridade provoca, até que o próprio outro apareça, na intimidade, impresso dentro, não internalizado como memória apenas, mas aprendido e apreendido como parte de nossa própria identidade, como alteridade-íntima, um não-eu-em-nós.
O outro sempre foi uma temática filosófica. Se antes o foco era sobre a possibilidade de coincidir com ele, colocando-o na posição de objeto do meu conhecimento, objeto do meu querer, objeto de minhas representações e, se passamos pela compreensão do outro como incômodo, como inferno, como impedimento para nossa liberdade, hoje chegamos à reflexão de que o outro nos estabelece, nos constitui, a partir de seu olhar e de seu desejo. Mesmo que possamos acusar a nossa sociedade de narcisista, individualista ou, por outro lado de aldeia global, sociedade globalizada, apontando ora para o fechamento ora para intensa abertura, o outro sempre será uma questão, um problema incontornável.
Algumas correntes filosóficas e até mesmo psicológicas apresentam, com alguma razão, que não há exterioridade pura16. Que a exterioridade é uma ilusão, que nossos mundos estão muito mais amalgamados do que parece. Que a nossa identidade não é pura e que nossa individualidade não é indivisa. O outro não é o mesmo que nós, evidentemente, embora muitos o queiram, mas também se trata de uma ilusão crer numa distinção absoluta. Constituir-se autêntico e único passa por ouvir o próprio desejo, é verdade, mas também por compreender o que do outro se fez como outro-de-nós e fazer saber o que fazer com isso.
É bem verdade que também gostaríamos de escolher de quem seremos próximo. Decidir a quem vamos dirigir cuidados e a quem não devemos nossa responsabilidade, como pensava o mestre da Lei que interrogou Jesus. Mas para quem queira ser cristão, a exigência é a de reconhecer que o outro é uma responsabilidade tanto interna quanto externa no seu (des)enlace com nosso próprio desejo. Talvez por isso o princípio inviolável da fé cristã seja justamente este: amar o outro como a si mesmo.
Uma parábola antirreligiosa e anticlerical?
Será a parábola do bom samaritano antirreligiosa, quando implícita e indiretamente critica o sacerdote e o levita? Para quem conhece as controvérsias entre Jesus e os homens da religião de seu tempo, não fica difícil reconhecer uma crítica indireta a um sacerdócio muito atrelado ao culto e ao esquema sacrifical e pouco afeito à solidariedade e aos sofredores. Nas teologias dos evangelistas, vê-se uma intensa crítica a um sacerdócio que se corrompeu e a uma religião que não parece religar mais a Deus, mas separar as pessoas dele, graças às inalcançáveis condições de pureza.
A imagem de um Deus que não está preso ao Templo, a superação da lógica puro-impuro, o desmantelamento da ideia de salvação e misericórdia que passam pelos intermediários sacerdotes (ou seus ajudantes levitas) e pelo Templo, tudo isso está implícito na parábola do samaritano. Neste aparece o rosto de Deus que age com misericórdia. Mesmo sendo impuro, ele vê, se aproxima e cuida. Ele age movido de compaixão, a mesma capacidade empática que leva Deus a agir em favor de seu povo. Por isso, em sentido estrito, a parábola é antirreligiosa. Em sentido amplo, porém, ela revela como alguém está verdadeiramente ligado a Deus: fazendo-se próximo dos outros. Assim, exatamente porque mostra como podemos estar ligados a Deus e porque relê (religere) a realidade a partir de uma ótica divina (agir com compaixão), podemos afirmar que se trata de uma parábola profundamente religiosa. Mas, apesar de religiosa, a parábola do bom samaritano certamente é anticlerical, pois Lucas revela como os homens do sagrado conhecem bem a Lei, mas não dão conta de humanidades. Para eles, o cumprimento da Lei deixou de ser uma maneira de relacionar-se com Deus e com o outro, tornando-se um modo de controlar o divino. Ao agir conforme a letra, os homens do sagrado não esperavam outra reposta de Deus, senão seus benefícios.
Além disso, a pretensa ideia de poder sagrado, de distinção e separação em relação aos outros num grau hierarquicamente mais elevado, a espiritualidade de ser intermediário, de poder acessar o lugar sagrado, de reservar-se ao culto guardando seu próprio corpo e sua mente, mantendo puras as mãos e o coração, a ideia de que ao prestar um serviço religioso estamos mais próximos, mais íntimos de Deus e que, ao cumprir normas e seguir estritamente mandamentos, ficamos mais verdadeiramente do agrado de Deus, tudo isso pode não ter nada a ver com Deus mesmo. Os riscos de o ministério ordenado ser chamado de sacerdócio, além do equívoco nominal, é também o de recuperar essa mesma compreensão: a de que são ontologicamente distintos, mais especiais, mais próximos do divino e que Deus se curva aos seus intentos preferindo-os em demérito dos demais, desde que eles se mantenham puros e guardem todas as normas eclesiásticas, cuidando além disso de dedicar-se ao culto como exercício central de sua missão. Assim, podem se esquecer de modo radical do sacerdócio a que todos somos realmente chamados: o do samaritano, o do serviço17 e do cuidado do outro. A esse sacerdócio Jesus dedicou sua vida, quando Jesus se fez próximo de nós, viu nossa miséria, encheu-se de compaixão de cada ser humano caído e ferido na sua dignidade, deitando sobre nossas feridas o óleo e o vinho de seu amor salvador.
Este é, enfim, um dos escândalos dos Evangelhos e dessa parábola: um anticlericalismo absoluto, a certeza de que Deus é encontrado no rosto do outro e nas diversas situações da vida. Deus é um acontecimento que se dá nas relações diárias, quando essas são a vivência da generosidade e do amor. Deus é aquele que visita nossa vida e quer fazer irromper nela a alegria. Deus é a misericórdia derramada em nossos corações. Longe dos templos, sem precisar de mãos ungidas, sem necessitar de fazer sua salvação passar por esquemas religiosos, ele pode aparecer no rosto do mestiço, do herege, do impuro.
Notas:
1. Faculdade Pitágoras em Uberlândia. Graduado em teologia, e-mail: sem.eduardocesar@hotmail.com
2. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), Poço de Caldas, MG, Brasil; Instituto Santo Tomás de Aquino-BH (ISTA), Belo Horizonte, MG, Brasil. Doutora em teologia catequética, e-mail: carmosolange@gmail.com
3. Sobre a origem do autor do Terceiro Evangelho, cf. CASALEGNO, 2003. p. 235-240.
4. Expressão que dá título à obra de Mendonça (2014).
5. Utilizamos a expressão parábola (parabolé), que no NT aparece exatamente 50 vezes no seu sentido amplo, mais ou menos como acontece com mashál, no AT, que pode designar provérbios, ditos de sabedoria, símbolos etc. Cf. VERMES, 2006, p. 143-145. É importante observar que, quanto ao estilo rabínico, há uma continuidade no estilo da técnica parabólica nas primeiras comunidades cristãs; no entanto, é estranho ver que há uma descontinuidade do uso da técnica, por exemplo, em Paulo e em outros escritos neotestamentários, diferentemente dos evangelhos.
6. Sobre as parábolas e a intriga, cf. RICOEUR, 2006.
7. Não estamos levando em conta aqui a bonita interpretação do texto de Hebreus, mas uma aproximação histórica.
8. Sobre a rixa entre samaritanos e judeus, cf. KUNZ, 2016. p. 60-61.
9. Os dois mandamentos aqui reunidos pelo escriba já tinham histórico de união entre os judeus, especialmente registrado no Testamento dos Doze Patriarcas (5,2-3) (LEVINE, 2016, p. 84).
10. Para LEVINE, se o escriba acerta na resposta, no entanto não fez o mesmo com a pergunta (2016, p. 85).
11. Citando Jeremias, Kunz afirma: “A contrapergunta, sobre o que se entende por ‘próximo’ era justificada porque a resposta era discutível. De fato reinava acordo de que significava o membro do povo de Israel incluindo o prosélito pleno, mas não estava de acordo sobre as exceções: os fariseus se inclinavam a excluir os não-fariseus; os essênios exigiam que se odiasse “todos os filhos das trevas”; etc. (JEREMIAS, 1970. p. 202)” (KUNZ, 2016, p. 63).
12. Sobre as regras de purezas quanto aos cadáveres, leia LEVINE, 2016, p. 93-95.
13. Para Levine (2016, p. 97), pela lógica, entraria em cena um israelita, que compõe a tríade com sacerdote e levita conforme Esd 105, Ne 11,6. Mas, como as parábolas não têm um desfecho esperado, entra em cena a figura do samaritano. Afirmação confirmada também por Morris (1996, p. 179).
14. Segundo Barreto, a expressão esplanchínsthe remeteà atitude de Jesus em Lc 7,13-14. A compaixão do samaritano diante do homem caído é a mesma que Jesus sentiu diante da viúva de Naim, que levava seu filho para ser enterrado (BARRETO, 2019,p. 151).
15. Elementos que, normalmente, não eram usados para primeiros socorros, mas para fazer sacrifícios. Além disso, o verbo derramar leva a pensar em atos litúrgicos, como pode ser conferido em Os 6,6 e Mq 6,7-8 (BAILEY, 1995, p. 93).
16. O filósofo René Descartes quase chegou a essa conclusão quando propôs sua máxima “je pense, je suis” (eu penso, logo existo), pois o pensamento surgia, aí, como resultado de uma dúvida enquanto método, que, posta como causa, quase consistia em negar a realidade exterior, não fosse a presença de um Deus que garantia a realidade objetal. Já Kant propôs um deslocamento do objeto como centro para o sujeito e, com sua filosofia transcendental, pôs a realidade objetal circundando o sujeito, possível de ser conhecida por ele, mas apenas enquanto fenômeno. A realidade exterior ficava assim garantida e fechada em si mesma como coisa-em-si, e possível de conhecer apenas em suas condições específicas de aparecimento. É com os filósofos contemporâneas que a exterioridade vai ser questionada como realidade pura, porque dependente da percepção e seus recortes, ou dos dados imediatos da consciência, ou do perspectivismo, ou mesmo dos atravessamentos que ela provoca nos sujeitos tornando-se realidade êxtima (exterior ao mesmo tempo que interior, e vice-versa). Vemos isso especialmente em Merleau-Ponty, Henri Bergson, Nietzsche e Jacques Lacan, respectivamente.
17. O sacerdócio do serviço aparece bem descrito por João no seu Evangelho quando, na noite da última ceia, o evangelista abdica de relatar a instituição da eucaristia para relatar a desconcertante cena do lava-pés. Para João, a verdadeira eucaristia acontece não nos templos com liturgias que têm suas rubricas cumpridas por seus ministros, mas no serviço diário do amor ao irmão-menor (Jo 13,1-17).
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