28. O CREDO: Donde há de vir a julgar os vivos e os mortos


De onde há de vir
De onde vem Jesus? Mais uma vez, o “onde” deste artigo do credo não se refere a um lugar. O credo não alude a verdades geográficas. Jesus vem do Pai que o exaltou à sua direita. Jesus, o Filho, só pode vir do Pai, que o gera desde toda a eternidade. O Pai enviou ao mundo seu Filho (cf. Jo 5,36-37; 8,18; 12,49; 14,24) que expressou a onipotência do amor do Pai. Portanto o Filho não vem de um lugar, mas do seio do Pai. Mas Jesus já não veio ao se encarnar e ao se manifestar ressuscitado? Ele não está presente no mundo através do Espírito Santo? Por que, então, ele há de vir?
Jesus cumpriu a missão de pregar e inaugurar o Reino de Deus. Sua vida, morte, ressurreição e ascensão possuem caráter escatológico definitivo para o mundo e a história. Mas os primeiros cristãos, a partir de sua experiência com Jesus, perceberam que há um intervalo entre o Reino que se realiza na história, do qual a Igreja é sacramento, e a consumação final desse Reino. Assim, o Reino tem dois momentos: o “já” e “ainda não”. “Já” está presente, mas “ainda não” se realizou plenamente. Jesus veio na condição humilde do servo, mas voltará na sua condição gloriosa.
De um lado, há a convicção de o que Senhor virá; por outro, tal volta não se pode datar. Como afirma Pedro: “O dia do Senhor chegará como um ladrão” (2Pd 3,10). E Paulo diz o mesmo: “Quanto aos tempos e aos momentos, não precisais que eu vos escreva; sabeis muito bem que o dia do Senhor vem como um ladrão de noite” (1 Ts 5,1-2). O ladrão chega de surpresa. Assim se torna impossível prever quando se dará a segunda vinda de Jesus; por causa disso, Paulo propõe a vigilância como atitude fundamental do cristão que espera a vinda do Senhor (cf. 1Ts 5,4-11). Estão enganados os profetas que proclamarem aos quatro ventos que Jesus está voltando, que os acontecimentos presentes (guerras, doenças, terremotos, enchentes, imoralidades) estão previstos na Bíblia. A Bíblia não faz crônicas jornalísticas sobre acontecimentos futuros.
O Novo Testamento apenas afirma que a história humana e do universo não termina no absurdo; ela tem uma meta. Como vimos em outro artigo, o universo e o ser humano são criação de Deus, ou seja, vêm de Deus e terminam nele. A história tal qual a conhecemos terá um fim. E essa história não exclui o mundo. Segundo Paulo, a própria criação encontra em Cristo suas raízes mais profundas. Ele é o mediador da criação. Nele tudo foi criado (cf. 1Cor 8,6; Cl 1,15-20); ele emerge como princípio e finalidade da criação (cf. Cl 1,15-20). Nele, o mundo e a história humana encontram uma unidade de origem e de destino. Se tudo foi criado em e para Cristo, deve-se afirmar que ele é o fundamento último da realidade, aquele que lhe dá harmonia, unidade, coesão. O destino da criação inteira se desvenda a partir de Cristo para o qual ela tende, porque Deus quer, “na plenitude dos tempos,reunir todas as coisas – as que estão no céu e as que estão na terra – sob uma só cabeça, o Cristo” (Ef 1,10).
O cosmos (o universo) não se nos apresenta como um palco no qual se desenvolve o teatro da história. Ele, ao ser criado, já é história e passa a fazer história com a humanidade quando essa surge. A única história do mundo envolve todo o criado, natureza e humanidade, natureza e espírito, que um dia se reunificarão definitivamente em Cristo. A vitória final, portanto, não será fruto das ideologias humanas ou das tecnologias. Como será a vitória da verdade, da liberdade, do amor e da justiça, ela se dará a partir de um rosto, o rosto de Jesus. O fim do mundo será o impacto final da vida, morte, ressurreição e ascensão de Jesus sobre o cosmos e a história, que os unificará no mesmo destino. O Credo niceno acrescenta a esse artigo: “E seu Reino não terá fim”. Quando Cristo for tudo em todos, será, enfim, o Reino definitivo. Por mais complexa que seja a realidade do mundo – e ela se torna cada vez mais complexa – não é movimento sem destino, mas percurso linear cuja meta se encontra na unificação final em Cristo, “para que todos sejam um, assim como vós, ó Pai, estais em mim e eu em vós” (Jo 17,21).
A julgar os vivos e os mortos
A vinda de Jesus traz consigo um julgamento. Ele vem julgar “os vivos e os mortos”. Alguns cristãos da Igreja primitiva acreditaram que, ainda vivos, participariam do juízo final (cf. 1 4,17). Só mais tarde compreenderam que o fim não seria logo e que a história se estenderia. A expressão “vivos e mortos”, presente no Credo, não afirma que alguns estarão vivos e outros mortos no momento do julgamento final. Ela é um binômio próprio do mundo hebraico para dizer “julgamento universal”.
O juízo que ocorrerá com a vinda gloriosa de Jesus evidencia que o final da história não coincide simplesmente com um decreto da parte de Deus que torna tudo automaticamente perfeito. A história humana é história de liberdade, ou seja, ela se identifica com aquilo que o ser humano faz de si mesmo frente ao apelo de Deus em Cristo. Deus não impõe a salvação de modo arbitrário. Ela também é resultado da liberdade vivida com responsabilidade. A graça da salvação brota da absoluta gratuidade de Deus; nada podemos fazer para merecê-la. Nosso mérito será sempre o dom de Deus. Mas o dom precisa ser acolhido; a graça de Deus não suprime a liberdade. O destino final do ser humano tem a ver também com sua conduta e se dará “segundo suas obras”. O mesmo Paulo que afirma com veemência a gratuidade da salvação acentua a importância das obras, que manifestam a acolhida ou não da graça de Deus. Para ele, os cristãos estão reconciliados com Deus, introduzidos numa relação de paz com Deus, libertados da escravidão do pecado, justificados e santificados pela graça de Cristo e são capazes de agradar a Deus (cf. Rm 3,24-25; 1Cor 1,30; Ef 2,14-18; Cl 1,13-14; 1Ts 4,1; Tt 3,4-7), porém devem ainda se apresentar diante de Deus para prestar conta das próprias ações (cf. 1Cor 4,4-5; 2Cor 5,10; Rm 2,16).
E qual o critério do julgamento final? Não parece que será propriamente a religiosidade. “Nem todo aquele que diz: Senhor, Senhor, entrará no Reino dos Céus, mas o que põe em prática a vontade de meu Pai que está nos céus” (Mt 7,21). Segundo Mt 25,31-46, o critério será o amor traduzido em solidariedade, sobretudo com os mais abandonados: “Estive com fome e me destes de comer, estive com sede e me destes de beber”. Deus não quer a injustiça. Ele se opõe a tudo o que destrói a dignidade humana. Está do lado dos que sofrem e a injustiça do mundo encontrará nele uma solução. A vitória final pertence, antes de tudo, às vítimas da história, porque são os que mais têm direito à justiça. A ressurreição de Jesus foi a vitória de um injustiçado. Tal vitória se imporá na história.
Não nos esqueçamos, no entanto, de que Deus quer que todos sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade (cf. 1Tm 2,4). E “mesmo que o ser humano saiba de seu terrível poder de destruição, que é imensamente superior ao seu pode de construção, ele sabe, ao mesmo tempo, que, em Cristo, o poder de construir se mostrou infinitamente maior” (Ratzinger). O Papa Francisco se pergunta por que o nosso julgamento não pode ser como o de Deus. E responde: não é porque Deus é Todo-Poderoso e nós não, mas é “porque em nosso julgamento falta a misericórdia. E, quando Deus julga, julga com misericórdia”. Por isso o ensinamento de Jesus precisa ser levado a sério: “Não julgueis os outros e Deus não vos julgará; não condeneis, e Deus não vos condenará; perdoai, e Deus vos perdoará” (Mt 6,37). Não temos o direito de excluir ninguém da salvação. “Amai vossos inimigos! Fazei o bem aos que vos odeiam” (Lc 6,27). O cristão que deseja para alguém a condenação se torna incoerente com o preceito do amor aos inimigos.
O juiz do juízo final é Jesus, ou seja, um de nós, alguém que conhece a existência humana e seus limites. Aquele que disse: “De Deus recebi todo poder no céu e na terra” (Mt 28,18) se tornou nosso companheiro de caminhada. E é também aquele que, segundo João, afirma: “não vim para julgar o mundo, mas para salvá-lo” (Jo 12,47). E ainda: “E eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim” (Jo 12,32). Se ao cristão perguntassem se todos serão salvos no juízo final, a resposta só poderia ser: “Não sei, espero que sim”.
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