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45. Espiritualidade do Advento – IV Domingo

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22.12.2019 | 14 minutos de leitura
Pe. Paulo Sérgio Carrara- C.Ss.R
Para Pensar
45. Espiritualidade do Advento – IV Domingo

A ESPERANÇA COMO EXPERIÊNCIA DISRUPTIVA, ou


“E seu nome será Emanuel!” (Is 7, 14)


Estamos encerrando este tempo de esperas. Com ele, demo-nos conta de que a esperança cristã não é uma fuga para fora deste mundo nem tampouco significa esperar tudo das mãos de Deus. Nossa esperança nos põe, isso sim, em êxodo, ajuda-nos a transpor as fronteiras estabelecidas e aparentemente irresolutas da realidade, põe-nos num caminho de liberdade.


A fé não se pode converter num sonhar com outra vida, enquanto renunciamos à única existência que possuímos, a que recebemos como dom de Deus. Ela nos deve encher com coragem para transformar a realidade e para assumir essa vida. Não podemos fazer voltar o conta-giros de nossa história, entretanto, podemos construir juntos um futuro mais digno e humano. “A fé pode e deve alargar-se em esperança. Assim, ela se torna ousadia” (Moltman).


A esperança cristã também não é um tipo de encantação do presente, fazendo-nos aguardar utopias irrealizáveis. Antes, ela deve ser “uma paixão pelo possível” (Kierkegaard) e por aquilo que se torna possível quando falamos de um Deus que visita o ser humano, fazendo-se Deus conosco e profetizando com essa vinda a divindade escondida em nós e a humanidade amorosa de Deus.


Nosso tempo parece desfavorecer a esperança em nome de um amor pelo presente. Nada contra a valorização do hoje, pois, de fato, corremos o grave risco de habitar no passado ou no futuro, esquecendo-nos do “único (tempo) que nos pertence” (Pascal). Mas a vida encerrada no presente, sem projeto, sem perspectiva, sem sonho, sem metas ou objetivos, redunda em conflito. Não é possível viver sem futuro, pois ele está saltando a todo instante, do bojo do agora. Seria um inferno, portanto, não poder ter esperanças e, talvez por isso, Dante estivesse certo ao escrever na porta de entrada de seu Inferno; “Abandonem toda esperança os que entram aqui”.


Antes de perguntarmo-nos “o que nos é permitido esperar” (Kant), a nossa fé aponta para o já, questionando-se: o que podemos fazer com nossas esperanças, para transformar a nossa história? Não foi à toa que tratamos a esperança como vigilância (1º. Domingo), que não é outra coisa, senão atenção e cuidado para com a vida. Tratamo-la também como predestinação (2º. Domingo), mostrando como em nós ainda está para se revelar o que, contudo, já deve aparecer no nosso rosto e nas nossas ações: a nossa filiação a Deus, em Cristo. Lembramo-nos também que a esperança é fonte de alegria, graças à possibilidade de encontrar em Cristo, uma fonte de sentido que nos faz viver “plantando o Reino” (3º. Domingo).


Agora, neste quarto domingo, a esperança nos aparece como experiência disruptiva. Parece no mínimo provocativo que um dos grandes instrumentos de poder e opressão, hoje, seja justamente incutir desesperos, fragilizar esperanças. Isso, porque, se não se converte em uma ilusão, a esperança é a grande força motriz para a mudança, para a saída de paradigmas caducos, para a transformação.


A primeira leitura desse fim de semana não tem um contexto simples, apesar de ser bastante conhecida. Ouvimos falar de um rei chamado Acaz que se vê num impasse. Diante das investidas imperialistas do tirano Tiglat-Pileser III, rei da Assíria, os reis da costa siro-palestinense, comandados pelos chefes de Damasco e da Síria, quiseram armar um cerco. Conclamaram, assim, a ajuda dos povos vizinhos, inclusive de Judá. Mas Acaz não quis se aliar aos interesses desses chefes. Antes, preferiu cogitar a possibilidade de aliar-se com a própria Assíria, por reconhecê-la provavelmente como nação mais forte. Uma colisão dessas, garantiria assim a salvaguarda do povo na guerra. Mas a custa de quê? Quantos quinhões de carne humana seria preciso pagar para garantir essa suposta aliança?


É nesse entretempo que aparece a figura do profeta. De dentro de sua esperança, ele entende que se aliar aos povos inimigos e colocar a confiança nas armas não parece ser uma boa ideia. Antes, o que lhe parece prudente é colocar a confiança em Deus. Para falar dessa confiança, apesar da resistência do rei, o profeta lhe revela um sinal: o de que uma jovem conceberá e dará à luz um menino e que ele será chamado de Emanuel, Deus conosco. Não parece absurdo? Totalmente. E por dois motivos, no mínimo. Em primeiro lugar, porque um rei deve ser um homem versado na arte da guerra; deve entender de estratégias, deve preparar os exércitos que morrerão em sua defesa, deve fortalecer as muralhas, defender as costas marítimas e, para isso, deve ouvir não um ou dois homens, mas vários. Todos nós conhecemos as histórias em que um profeta, ou sacerdote está ao lado de um rei para fazer seus presságios, mas eles são mais valorizados, quanto mais forem otimistas. Esse profeta é uma voz única nesse texto, uma voz apenas, em frente aos intentos de um rei. Além disso, trata-se de uma voz não muito otimista, mas cheia de preocupação,que não quer massagear o ego desse chefe, mas tenta convencê-lo de ouvir a Deus. O segundo motivo é que não faz muito sentido como uma criança pode ser um sinal, frente à iminência da guerra.


Por isso é preciso recordar que o texto é uma narrativa pouco preocupada em fazer história e mais preocupada em dar o que pensar. O que o texto se preocupa em revelar é: é esta a história dos homens; história de guerras e opressão. É isto o que fazem os reis: cultuam as armas e sua lei é a violência. Para firmarem-se como poderosos, dizimam milhares; para fazerem-se fortes, eliminam os mais fracos. O imperialismo Assírio não é muito diferente dos imperialismos de hoje, as alianças que propõem são também semelhantes; nunca uma aliança com equidade e justiça, mas sempre em benefício dos mais poderosos e em detrimento dos mais frágeis.


Contra a violência dos reis, a opressão do mais forte, o profeta aponta para o Deus da paz, cuja palavra é vida. Confiar em Deus, aqui nesse texto, não é esperar que ele crie uma redoma contra as armas, mas construir a paz que nasce do diálogo e da justiça e não dos intentos militares que, por sinal, sempre redundam na perpetuação da violência. Ao prometer como sinal que uma jovem dará à luz um menino, essa profecia se refere a Ezequias, filho de Abia. O nascimento desse bebê é a promessa de que o trono de Davi se perpetuará e de que Deus continuará ao lado de seu povo. Contudo, prestemos atenção a essa imagem tão eloquente:  a reação antibélica de Deus é uma mulher que dá à luz um bebê? O que pode significar essa imagem?  Chamado de retorno à vida fundante? Que Deus é como uma mulher dando vida aos seus filhos (que preferem as armas)? Que a insubmissão que a esperança promove é sempre criadora (como dar à luz)? Tudo isso é verdade! Onde só há quem defenda a guerra e as armas, nossa esperança é também uma experiência disruptiva: Deus é Deus da paz. Ele é a vida. Ele dá a vida (mulher).


Essa leitura servirá de matriz para falar de Jesus Cristo, nascido de uma jovem. A tradução que a bíblia grega fez do texto hebraico repassou a palavra jovem, traduzindo-a por virgem. Manter esse conflito linguístico serve ao projeto teológico de Mateus, que é mostrar bem claramente que José é apenas o pai nutrício de Jesus, não pai biológico, garantindo, assim, sua descendência davidida. Mas, sobretudo, serve para dizer que Jesus não é filho da carne, mas da ação do Espírito.


O texto que antecede o trecho que recebemos neste fim de semana (Mt 1, 1-17) já nos apresenta uma árvore genealógica que não é resultado da pesquisa histórico-científica. Ao contrário, faz parte de um projeto narrativo e teológico. Em outras palavras: é uma catequese sobre Jesus, que busca referências no passado, como tipologias, para afirmar a realidade do Cristo. O texto já deixa entrever, portanto, no exemplo de mulheres mal afamadas, a estranheza diante da concepção de Maria, a situação a que ela está exposta por sua gravidez imprevista e inexplicável. E, sobretudo, que José não é o pai desse menino. As quatro mulheres anteriores põem em relevo a ruptura feminina na origem da vida; em Maria essa ruptura é radical: “Jacó gerou José, o esposo de Maria, do qual nasceu Jesus, o chamado Cristo (Mt 1, 16). Na realidade, pouco importa se Jesus é filho de José ou não. O que interessa é que ele é filho de Deus e que a ação de Deus, na narrativa, é estranhável, no mínimo escandalosa.


O texto desse domingo (Mt 1, 18-25) mostra, então, que Maria concebeu por ação do Espírito. E a coloca no fundo da cena. É interessante esse recurso da narração. O autor não privilegia José em detrimento de Maria, mas usa um recurso narrativo de focalização. A oposição que diz que Lucas valoriza mais Maria e Mateus valoriza mais José é ilusória. A propósito, o que o evangelista desse domingo está fazendo com José é o mesmo que Lucas fez em seu projeto teológico com Maria: desmantelar a lógica patriarcal, fazer aparecer o protagonismo da mulher e seu filho, por meio dos quais Deus (que faz história conspirando com o humano) se liga não só a um povo com suas expectativas messiânicas, mas à humanidade inteira.


A genealogia de Jesus se mostra como alheia à ordem patriarcal (José não gerou Jesus). O que pensariam dela? Que ela cometera adultério! Por isso, José pretende deixá-la em segredo, porque se a denunciar, Maria correrá o risco de ser apedrejada. O texto, para justificar essa bonita atitude de José, utiliza-se de um adjetivo; diz que ele era um homem justo. Ora, qual o sentido de justiça aqui? Porque, certamente, para um bom judeu, ser justo é cumprir com a lei e a lei é clara. Mas a justiça de José transcende o legalismo, o apego à lei e,aqui, está ligada à compaixão. A lógica patriarcal continua sendo desmantelada, porque ela é sustentada pela lei que defende a superioridade do varão sobre a varoa e, nesse texto, seguir estritamente a lei não é o que define a justiça de José.


Mas deixar Maria será o bastante? O que ela fará da vida? O texto, então, continua. Aparece a José, em sonho, um anjo do Senhor. Não estranhemos essa “revelação” e como ela se dá. Não nos enganemos pensando que os sonhos são revelações do futuro, porque muito mais do que falar do que está à frente, eles falam do que já está depositado dentro de nós. De novo, os símbolos aí são ricos. Vejamos.


Sonhar e dormir. Todos nós sabemos que não é raro que os autores bíblicos usem esse recurso: Deus se revela para os seus servos em sonhos. Também sabemos que na cultura judaica (e também na cultura grega), dormir tem forte parentesco com a morte e seus mistérios. O autor mostra como José se torna discípulo: ele sonha os sonhos de Deus. Mas notem também o simbolismo de dormir e morrer para a lei (e o que ela exige), a fim de acordar (ressurgir) para aquilo que é fundamental, que é acolher a graça, a salvação, o Deus conosco. E é esse o conteúdo do sonho: “não temas receber Maria, tua esposa, porque ela concebeu pela ação do Espírito Santo”. O discipulado que se revela na figura de José exige sair da lógica patriarcal, deixar para trás a lei como fonte de justiça e acolher o estranhável da vida dessa mulher, que é trazer Deus entranhado em si.


Colocar o nome. Pôr o nome em Jesus é garantir que ele seja de uma estirpe, que ele é da casa de Davi. Permanece a esperança antiga, o messianismo davidida, já prometido pelo profeta a Acaz. Mas agora já sabemos: a ação de Deus se sobrepõe ao nível legal-patriarcal de Israel. Recebendo Maria em sua casa, José supera o nível da carne, aparecendo como crente, discípulo, que acolhe e cumpre a obra de Deus, não como patriarca que atua segundo suas forças. Entra, assim, na lógica da graça e da gratuidade e sai da lógica da lei. Mateus,com essa figura, parece dizer que é preciso que morra a ordem patriarcal com seu sistema de lei e que de dentro dela seja possível sonhar com outro mundo. Desse modo, ele nos ensina que a compaixão é a verdadeira lei. Acolher a vontade de Deus deve ser nosso desejo/sonho e, esse sonho não pode ser de olhos fechados. Bem despertos, como o José que acorda, é preciso acordar; colocar-se disposto para a vida, para o amor. José é a demonstração da superação da justiça da carne e testemunha a necessidade de aceitar a ação do Espírito.


Jesus é o Emanuel. A experiência de um Deus que se aproxima do humano e faz aí sua habitação é altamente disruptiva. Ela chega contrariando o esperado, expondo-nos aos riscos de uma nova história, de uma nova vida, onde a lei que gera morte e os sistemas que geram superiores e inferiores sejam vencidos. Por isso, o mundo dos machos fica abalado com a vinda de Jesus na carne. Mesmo José se faz discípulo vencendo esse mundo de machos, para aparecer como homem de Deus, servo que acolhe sua vontade. Deus vem se avizinhar de nós e sua descida para nosso meio ajuda-nos a superar, desde o início de sua vinda, toda caducidade.


Tudo isso que dissemos até aqui a respeito da filiação de Jesus não parece muito divergente do que Paulo afirma à comunidade dos romanos (Rm 1, 1-7). Segundo ele, Jesus é “nascido da descendência de Davi, segundo a carne, mas pelo Espírito que santifica, constituído filho de Deus em todo seu poder, pela sua ressurreição de entre os mortos: Ele é Jesus Cristo, nosso Senhor”. Paulo sabe que Jesus não pertence à ordem da lei, sabe que ele é nascido nesse contexto legal judaico, é um davidida, mas sabe que Jesus é Filho de Deus, segundo a ação do Espírito e isso se prova na ressurreição de Cristo. Por isso, vale à pena ser, por causa desse Cristo, sentido de sua vida, servo, apóstolo, escolhido por causa do evangelho. No fundo, também para nós deveria ser assim: ao fazer experiência do filho de Deus, somos também chamados a servi-lo e anunciá-lo. Pois, judeus ou gentios, não interessa, Deus se fez humano e por isso, se irmana de todos os homens e mulheres, de todas as nações e povos. Essa experiência de unidade é altamente disruptiva para um mundo que privilegia, sobretudo, aquilo que nos diferencia, aquilo que nos separa e não o que nos une. Ser apóstolo do evangelho requer esta coragem: a de romper com todo sistema legal, religioso ou não, que ao invés de nos unir, nos divide.


Portanto, que parece, de fato nossa esperança não tem nada a ver com encantações ou ilusões. Ela é bem encarnada e tem nome: Jesus de Nazaré, o Emanuel, Deus conosco. Nossa esperança é uma pessoa. O seu nome é uma promessa que se cumpre, pelo qual vale a pena dar a vida. Seu nome nos compromete e, se comprometer com ele, não pode significar acomodação, paralisia, medo, desistência. Antes, deve significar superar justiças estreitas, ouvir sua palavra, sonhar os seus sonhos, acolhê-lo, servi-lo. Quando lhe abrimos as portas (Sl 23), sua entrada em nossa história só pode ser transformadora e sinal definitivo de que Deus nos salva (Jesus).





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