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16. Marcos, Lucas e o querigma da salvação universal

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31.03.2015 | 21 minutos de leitura
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Acadêmicos
16. Marcos, Lucas e o querigma da salvação universal




Solange Maria do Carmo



Johan Konings




Chama a atenção o fato de se encontrar, na pregação de Pedro em Atos 10,37-43, um apanhado do ministério, morte e ressurreição de Jesus que corresponde ao arcabouço do evangelho de Marcos, quanto ao início, e ao evangelho de Lucas, quanto ao fim. Este fato constitui o ponto de partida para uma reflexão sobre o caráter do querigma que Lucas parece resumir nesses versos dos Atos dos Apóstolos.



1. A narrativa de Jesus como elemento da primeira pregação cristã


O fato de At 10,37-43 parecer um resumo do evangelho de Marcos não surpreende quem admite a dependência literária de Lucas, autor de Atos, em relação a Marcos. Mas isso não significa necessariamente que Lucas tenha simplesmente resumido o Evangelho marcano, pois a fórmula de 1Cor 15,3-5 mostra que semelhante querigma ou pregação é anterior à composição marcana. Dizemos “querigma ou pregação”, porque não se deve imaginar o querigma como uma fórmula breve semelhante à (com aspas ou sem aspas?) que encontramos em 1Cor 15 ou At 10. Querigma significa anúncio ou pregação, e isso não se fazia em duas palavras. Para fazer o anúncio era preciso contar e recontar a história do mestre, seus feitos, seus ensinamentos, a trajetória de sua vida. O querigma era uma autêntica narrativa, com tudo quanto isso exige: a arte de reconstruir os fatos, dentro do gênero literário próprio; a capacidade de articular os dados em vista da finalidade teológica; o artifício da retórica com suas consequências, tudo o que constitui a tradição primitiva em torno do anúncio do Mestre morto e Ressuscitado.


Para captar a índole dessa tradição da atuação pública, fim violento e ressurreição de Jesus é preciso perceber-lhe o gênero literário. É a crônica de uma pregação. Os Evangelhos não nasceram do propósito de escrever uma biografia ou de relatar fatos acontecidos com Jesus e os seus, mas são compêndios daquilo que os missionários cristãos apregoavam a respeito da pregação do Nazareno. A pregação de Jesus em segunda potência, por assim dizer[1].


Convém corrigir a impressão que se tem ao ler alguns estudos do século XX sobre o “querigma”. Sob a influência da theologia crucis, certos autores dão a impressão de que o querigma se referiria somente ao paradoxo da morte e ressurreição de Jesus. Mas o esquema de Marcos e dos demais Evangelhos canônicos nos mostra que, para a pregação desse paradoxo, são indispensáveis os antecedentes dessa morte. Tal correção tem, inclusive, consequências para a teologia sistemática, a catequese e a piedade. A morte de Jesus não é o ponto inicial do ato salvador, mas a conclusão de toda a obra salvífica de Jesus, que é rememorada e transmitida na pregação apostólica e cristã. A morte de Jesus não revela seu significado verdadeiro a não ser como consequência de sua atividade pregadora. Sua morte é o sinal de sua fidelidade à missão que o Pai lhe confiou, de sua coerência total com seu anúncio e com as obras que realizou. Portanto, a morte e ressurreição de Jesus devem ser vistas na totalidade da obra de Jesus como anúncio da salvação.


Mais. Se Bultmann opinou que “o anunciador se tornou o anunciado” – o que não se pode negar –, não se deve esquecer que o que Jesus anunciou foi assumido e continuado na pregação de seus discípulos. Não há hiato, mas continuidade entre a boa-nova do Reino pregada por Jesus (segundo Mc 1,14-15) e a boa-nova a respeito de Jesus (anunciada em Mc 1,1), pois a prática de Jesus é o Reino. Se Loisy disse que “Jesus esperava o Reino, mas o que veio foi a Igreja”, devemos completar que a Igreja veio para continuar o Reino que Jesus esperava, pregava, trazia à cena e assim inaugurava na prática comunitária que legou à comunidade que o sucedeu e que chamamos a Igreja.


Uma consideração do esquema seguido pelos Evangelhos canônicos e Atos nos parece, portanto, oportuna para corrigir a ideia de que o Pai teria “encomendado” a morte do Filho para reparar o pecado de Adão e de todos nós. Decerto, a metáfora do sacrifício aplacador era significativa para a cultura judaica nas origens cristãs, que convivia diariamente com os sacrifícios de expiação. Depois, esta metáfora foi por Anselmo “inculturada” na cultura medieval de reparação da honra lesada. Mas importa compreendê-la como metáfora, subordinada ao que ela quer apontar: a realidade transbordante e inefável da obra de Jesus. Por ser inefável, por não se esgotar numa única proclamação, foi preciso continuar narrando essa obra. Por isso, a forma fundamental da mensagem cristã é a narrativa. Mas até o Diretório Nacional da Catequese, em vez de ver a narratividade como o modo próprio de fazer catequese e de transmitir a mensagem cristã, parece entendê-la como um assunto a mais, um tema a ser acrescentado ao antigo modelo catequético de Trento: Símbolo dos Apóstolos, mandamentos, sacramentos e orações do cristão[2]. Parece que a catequese atual, apesar de toda a renovação pela qual já passou, ainda não despertou para o caráter narrativo que lhe é próprio: continuar narrando o evento Jesus de Nazaré, como fizeram os evangelistas.


Continuar narrando[3], de modo sempre renovado: foi o que fizeram Marcos e aqueles de quem recebeu a tradição. Isso relativiza a ideia de que a transmissão dos ditos de Jesus (por exemplo na fonte Q) seria mais primitiva, em termos de história traditiva, que a transmissão da narrativa de sua pregação. Decerto, foi mostrado, com argumentos literários convincentes, que Marcos emoldurou os ditos e fatos transmitidos pela pregação cristã do jeito próprio dele[4]. Mas quem pregava já havia concebido a pintura antes que Marcos a emoldurasse!


Ora, se a narrativa de Marcos organiza fatos e ditos referentes a Jesus, verdade é que os ditos que Mt e Lc hauriram de Q para completar a narrativa marcana talvez apresentem Jesus mais como sábio popular do que como o Servo Padecente prestes a dar sua vida. Mas os ditos desse sábio foram recordados por causa da radical fidelidade com que ele anunciou o Reino de Deus em tudo quanto fazia — fidelidade que o levou à morte. O que o querigma ou a pregação transmite é essa atuação, esse ministério de radical fidelidade: uma vida inteira de fidelidade, e fidelidade inconteste à vida. Não um querigma só de morte e ressurreição, como 1Cor 15,3-5 pode sugerir[5], mas um querigma que evoca o profeta escatológico, recriador do povo na perspectiva do reino escatológico, assim como é apresentado pelos Evangelhos.



2. O discurso de At 10,37-43 e seus paralelos em Marcos e Lucas


Com grande probabilidade, o Evangelho de Marcos ou o esquema pré-marcano foi o modelo que Lucas tinha diante dos olhos ao criar o discurso paradigmático de At 10,37-43. Este discurso ensina o pregador cristão a apresentar Jesus por meio da narrativa de sua obra.



37 Vós sabeis o que aconteceu por toda a Judeia, depois de ter começado na Galileia, após o batismo que João pregou:
38 como Deus ungiu a Jesus de Nazaré com Espírito Santo e com o poder, como ele andou fazendo o bem e curando todos os subjugados do diabo, porque Deus estava com ele.
39 E nós somos testemunhas de tudo o que fez na região dos judeus e em Jerusalém. Eles o eliminaram, suspendendo-o num madeiro.
40 A este, Deus o ressuscitou ao terceiro dia e deu-lhe manifestar-se,
41 não a todo o povo, mas às testemunhas que Deus havia escolhidos de antemão, a nós que comemos e bebemos com ele, depois que ressuscitou dentre os mortos.
42 Ele nos mandou pregar ao povo e testemunhar que é ele quem foi constituído por Deus juiz dos vivos e dos mortos.
43 Dele todos os profetas dão testemunho, [anunciando] que todo o que nele crê recebe o perdão dos pecados por meio de seu nome (At 10,37-40).


Podemos focalizar neste discurso três dimensões: a dimensão narrativa, ou seja, o relato da obra anunciadora, morte e ressurreição de Jesus; a dimensão cristológica, ou seja, a confissão messiânica, com a alusão à “unção”; a dimensão soteriológica, ou seja, o anúncio de perdão e salvação. Mostraremos a presença destas dimensões no Evangelho modelo de Marcos, no resumo de At 10,37-43 e na narrativa do Evangelho de Lucas, que é também o autor dos Atos dos Apóstolos.



2.1 A dimensão narrativa


O ponto de partida é a dimensão narrativa, pois antes de tudo deve-se tomar conhecimento dos fatos (cf. Lc 1,1-4; At 1,1-2).



37 Vós sabeis o que aconteceu por toda a Judeia, depois de ter começado na Galileia, após o batismo que João pregou.

Este motivo coincide com a solene abertura de Marcos (Mc 1,1-6), copiada em Lc 3,1-6 com ênfase maior, pois Lucas introduz uma nota cronológica situando o fato na história mundial (“no décimo quinto ano do governo do imperador Tibério”) e na história do povo judeu (mediante a menção aos regentes herodianos e aos sumos sacerdotes). Assim, a notoriedade mencionada em At 10,37 é salientada pelo redator lucano também em Lc 3,1. Aqui cabe observar que, pela solenidade da nota cronológica, Lc 3,1 se destaca de Lc 1—2, o “evangelho da infância”. Em 3,1 se encontra a verdadeira abertura da narrativa querigmática da obra pregadora de Jesus. Os capítulos 1—2 devem ser considerados como preâmbulo teológico.



38 como Deus ungiu a Jesus de Nazaré com Espírito Santo e com o poder,

O primeiro elemento da narrativa querigmática coincide com Mc 1,7-11. Este episódio de Marcos é um relato cifrado da unção de Jesus com o Espírito de Deus. Cifrado, porque evita o termo “ungir”, correspondente ao hebraico mashah, de onde “messias”. Todo o Evangelho de Marcos serve, de fato, para mostrar que Jesus não é o ungido esperado, mas o agente escatológico inesperado, que realiza a vocação do Servo Padecente e do Filho do Homem, agente humano do reino de Deus. Para Marcos, esse agente só pode ser identificado como “o ungido” de modo misterioso: não ungido como os reis e os sacerdotes, mas ungido com o Espírito de Deus assim como o profeta escatológico de Is 61,1. É o que Marcos sugere pelo relato do batismo de Jesus (Mc 1,9-11). Lucas o entendeu muito bem. Onde Marcos descreve, logo depois do batismo, a primeira atuação pública de Jesus na sinagoga de Cafarnaum (Mc 1,21), Lucas situa tal cena em Nazaré e faz Jesus proclamar exatamente o texto que fala de sua unção pelo Espírito (Lc 4,18). Observe-se ainda que tanto em Lc 4,18 como em At 10,38 ocorre o termo chriein, “ungir”, do qual é derivado o substantivo christos, “ungido” (= messias).



como ele andou fazendo o bem e curando todos os subjugados do diabo,

Tanto em Mc como em Lc — à diferença de Mateus, que acentua o ensino — a pregação de Jesus é caracterizada pelas expulsões dos espíritos impuros (demônios, diabo). Na fonte Q, a expulsão dos demônios “pelo dedo de Deus” é um sinal de que, com Jesus, o reino de Deus se torna presente (Lc 11,20//Mt 12,28). Isso, porque assinala a chegada do “mais forte”, aquele que vence as forças mais impenetráveis e que superam qualquer compreensão humana. Também a parábola do homem forte em Mc 3,27 aponta nessa direção. Pouco importa a explicação médica ou psiquiátrica de tais fenômenos, a expulsão dessas forças humanamente inatingíveis é um sinal da chegada do reino de Deus.


A expressão “fazendo o bem” remete ao mesmo tempo aos resumos dos diversos tipos de milagres operados por Jesus e às subsequentes aclamações do povo. O paralelo mais próximo desta fórmula de At 10,38 no evangelho de Marcos é a exclamação depois da cura do surdo e gago, Mc 7,37: “Ele fez tudo bem”. Em Lc 7,16, esse tipo de aclamação é relacionada com o “grande profeta” (= Elias) e com a “visita” de Deus a seu povo, da qual o Elias redivivo seria o precursor.


A frase seguinte, porque Deus estava com ele, aponta para a presença do “Deus que age”, da qual o profeta é a testemunha. Essa presença atuante é o que Moisés, em Ex 33,12-17, pede a Deus depois da ruptura causada pela adoração do bezerro. A presença atuante de Deus é também o critério para se reconhecer se o profeta é verdadeiro: a obra de Deus que acompanha a palavra do profeta é a garantia de sua autenticidade (Dt 18,15-21). Isso corresponde ao perfil de Jesus caracterizado em Lc 24,19 e outros textos lucanos. Para essa presença atuante de Deus remetem também as expressões “filho de Deus”, “santo de Deus” e outras semelhantes que ocorrem em Mc por ocasião das obras de Jesus.



39 E nós somos testemunhas de tudo o que fez na região dos judeus e em Jerusalém.

No v. 39a Lucas se refere aos “apóstolos” como aos que acompanharam a obra de Jesus desde o começo na “terra dos judeus” (incluindo, conforme a terminologia civil, a Galileia) até o fim em Jerusalém. O começo é o batismo administrado por João (cf. Lc 3,23 e At 1,21). O fim é a morte em Jerusalém (cf. At 1,22 e Lc 9,31), como é resumido na frase seguinte:



Eles o eliminaram, suspendendo-o num madeiro.

A expressão “suspender no madeiro” não provém de Marcos, mas parece um eco da terminologia usada por Paulo em Gl 3,13, que, por sua vez, é uma citação de Dt 21,23, a maldição de quem é suspenso no madeiro. Como Paulo, Lucas caracteriza a morte de Jesus como paradoxo: aquele que o mundo transformou em maldição, Deus o transforma em bênção (cf. Gl 3,14).


Sem conjunção — caracterizando, pois, uma ruptura na ação — é mencionada agora a ação de Deus:



40 A este, Deus o ressuscitou ao terceiro dia

A ressurreição “ao terceiro dia” é a fórmula que exprime o “pronto agir” de Deus (cf. Os 6,2). Deus, que está com seu profeta, não tarda em agir. Como ele agiu na vida do profeta Moisés, sua ação se faz sentir na vida do Nazareno. A ação de Deus o faz ressurgir dos mortos. Assim como Deus ficou presente junto a Moisés, ele ficou presente junto ao novo profeta no “êxodo que ele ia consumar em Jerusalém” (Lc 9,31). Mais uma vez a ação de Deus marca a história, e o povo encontra na ressurreição de Cristo um novo evento fundante. Passa a ser comemorada uma páscoa diferente: assim como a passagem pelo Mar Vermelho tornou-se referência central da narrativa antiga, a passagem de Jesus da morte à vida torna-se o ponto articulador da pregação nova, testemunhada nos discursos querigmáticos e nos Evangelhos.



e deu-lhe manifestar-se, 41 não a todo o povo, mas às testemunhas que Deus havia escolhido de antemão, a nós que comemos e bebemos com ele, depois que ressuscitou dentre os mortos.

As aparições do Ressuscitado não são interpretadas como um feito poderoso que por si mesmo suscitasse a fé em Jesus. Elas estão em função do testemunho a ser dado ao mundo. Os que foram testemunhas desde o começo na Galileia até em Jerusalém serão agora as “testemunhas escolhidas de antemão” (assim como os profetas de antigamente). São os que participaram das aparições pascais, caracterizadas como “comer e beber com ele”, sem dúvida uma referência a Lc 24,36-48, episódio que termina exatamente na instituição dos apóstolos como testemunhas (Lc 24,48). O “comer e beber com ele” tem sabor escatológico, pois evoca a realização da comunhão de mesa com Jesus na realidade do Reino (cf. Lc 22,15-16, e também a citação de Q em Lc 22,30).



42 Ele nos mandou pregar ao povo e testemunhar que é ele quem foi constituído por Deus juiz dos vivos e dos mortos.

O testemunho – a pregação ou querigma dos apóstolos – consiste na proclamação da constituição de Jesus como “juiz de vivos e mortos”, juiz universal, função atribuída pelo judaísmo daquele tempo ao Filho do Homem. Mas o pensamento de Lucas não fica parado no tema do juízo como tal. Se, em Dn 12,2, o juízo evoca um duplo julgamento, quer para a vida, quer para a condenação eterna, Lucas acentua somente a dimensão salvífica, pois importa anunciar a salvação, afinal “o Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido” (Lc 19, 10).



43 Dele todos os profetas dão testemunho, [anunciando] que todo o que nele crê recebe o perdão dos pecados por meio de seu nome (At 10,37-40).

O testemunho dos apóstolos é o prolongamento do testemunho de todos os profetas, isto é, da profecia em sua totalidade. Pensa-se no texto que o próprio Paulo cita em Gl 3,11 e Rm 1,17: “o justo viverá pela fé” (Hab 2,4). Para Paulo e Lucas, tal é o teor decisivo de toda a profecia: o “segundo as Escrituras” de 1Cor 15,3-5 é entendido em direção à salvação, o perdão concedido por Deus em virtude da obra de Cristo, levada a termo em sua morte e reconhecida em sua ressurreição (“por meio de seu nome”). Salvação universal, com base na fé: todo o que nele crê. Esse crer é a adesão a Jesus como Cristo-Messias (ungido pelo Espírito), rejeitado pelos homens, mas confirmado por Deus na ressurreição e testemunhado como tal pelos que conheceram não só sua obra terrestre, mas também sua presença pascal e escatológica.


E logo a seguir, enquanto Pedro ainda está falando, essa fé é atestada pela efusão do Espírito sobre os gentios que ouvem a palavra anunciada, o querigma (At 10,44-48)[6].



2.2 A cristologia


Tendo contemplado o resumo da narrativa querigmática segundo At 10,37-43, convém destilar o perfil cristológico do anunciado, ou seja, como Lucas vê realizado em Jesus aquilo que o imaginário messiânico esperava. Quanto à cristologia, Lucas parece aprofundar e pôr às claras o que Marcos expressou como presença não reconhecida.


Na cristologia de Marcos, Jesus não corresponde à expectativa popular de um messias-ungido que fosse “filho de Davi”, ainda que essa expressão não remeta necessariamente ao Davi militar, mas antes ao rei justo ideal de que falam os salmos. Quanto ao termo “filho de Davi”, Lucas coincide estritamente com Marcos: usa-o somente na boca do cego de Jericó (Lc 18,38-39 = Mc 10,47-48)[7] e na controvérsia que ensina que o messias não é tanto “filho de Davi”, mas “Senhor de Davi” (Lc 20,41 = Mc 12,35). (Tampouco encontramos em Marcos qualquer alusão a um ungido sacerdotal, como o encontramos em alguns textos do Antigo Testamento, em Qumran e na carta aos Hebreus[8].)


Ora, explicitando o mistério deixado por Marcos (“o segredo messiânico”), Lucas apresenta Jesus abertamente como o messias profeta, e isso, num sentido universalista. Jesus se identifica com o profeta ungido com o Espírito de Deus que anuncia a boa-nova aos pobres (Lc 4,18 = Is 61,1), isto é, ao povo carente, espezinhado, oprimido, em todos os sentidos. Isso não é, para Lucas, uma proclamação do jubileu para Israel e menos ainda da revolução do proletariado[9], mas sim o cumprimento da promessa da salvação universal que ele reconhece nos textos proféticos, no terceiro Isaías aqui citado, em Hab 2,4 e muitos outros.


Em Lc 4,16-22ab, o público da sinagoga dá sua aprovação ao anúncio da boa-nova aos pobres, pensando que se trata dos tradicionais pobres do Israel oprimido. Mas, com uma reminiscência da rejeição de Jesus em Nazaré (Mc 6,1-6), Lucas 4,22c-30 introduz uma virada no relato. Quando Jesus estende sua mensagem a todos os excluídos, inclusive à população gentia (a viúva de Sarepta, o sírio Naamã), o povo da sinagoga manifesta sua oposição ameaçadora de morte.


Anuncia-se aqui a superação do quadro judaico em que, certamente, muitos dos primeiros cristãos entenderam a confissão cristológica de Jesus como Messias[10]. Lucas rompe com certa mentalidade judaica, que, apesar do tom universalista que transparece nos primeiros capítulos do Gênesis, se tinha centrado na eleição dos filhos de Israel. Lucas faz um retorno à eleição universal: toda a humanidade é eleita em Cristo. Por isso, faz remontar a genealogia de Jesus até Adão, filho de Deus (Lc 3,38)[11]. Mais. Na narrativa de Lucas, à diferença de Mateus (1,1-17), que se restringe aos filhos de Abraão, a genealogia não faz parte do evangelho da infância, mas está inserida logo depois do batismo de Jesus e da manifestação de Deus que atesta sua filiação divina. No Filho, todos os filhos de Adão se tornam filhos.


Quanto à universalidade da salvação podemos ainda apontar os traços de Elias/Eliseu na apresentação lucana de Jesus (inclusive no texto 4,16-30). Entretanto, Lucas, seguindo Marcos, evita qualquer identificação de Jesus com um profeta concreto ou “um dos antigos profetas”, pois Jesus é o “ungido de Deus” (Lc 9,19-20).



2.3 A soteriologia


Como convém a um discípulo de Paulo, o messianismo de Jesus é enfocado por Lucas no sentido da soteriologia. Jesus é o Salvador (cf. Lc 2,11, em contraste com o imperador romano). E essa salvação se realiza no perdão dos pecados (Lc 1,77).


Isso parece pouco revolucionário e muito intimista. Tal impressão, porém, é filha da Modernidade, que fez do pecado uma coisa individual e intimista. Na Bíblia, pecado é algo universal, desde Adão e Eva. Por isso mesmo, a verdadeira salvação tem que ser universal, resgatando os filhos do primeiro casal. Quem formulou isso teologicamente é Paulo, na carta aos Romanos (Rm 5). Jesus refez o que Adão desfez. O pecado é toda forma de injustiça. O Salvador vem tornar justo o injusto: a justificação que se dá pela fé.


E aqui, novamente, a Modernidade nos colocou no trilho errado. Por um mal-entendido da polêmica de Gálatas em torno da fé e das obras[12], a fé foi entendida como uma atitude interior. Ora, fé é fidelidade e autenticidade, manifestando-se na prática. Aquilo que Paulo, num outro contexto, escreveu sobre fé e obras deve ser completado pelo pensamento judaico-sapiencial que inspirou a carta de Tiago (Tg 2,14-26).


O que significa salvação para Lucas transparece no fim da subida de Jesus a Jerusalém, mais exatamente, no encontro de Jesus com Zaqueu (Lc 19,1-10). Este “pecador”, mancomunado com o império dos gentios que dominava a região, é também um “filho de Abraão” (19,9), e a “visita” que lhe traz a salvação se estende à sua casa (vv. 6-9). Assim como o filho pródigo, ele estava perdido (v. 10), mas foi reencontrado (cf. Lc 15,32).



3 A pregação de At 10 e o anúncio da salvação universal em Lc 4[13]


Para Lucas não há ruptura entre o Jesus anunciador e o Cristo anunciado pela Igreja. Aquele que pela Igreja lucana é anunciado como salvador universal é o mesmo que foi o anunciador da boa-nova universal da salvação. No Evangelho, os seus feitos se tornam o foco da catequese narrativa. Desde o “começo” (Lc 3,21), Jesus se apresenta como aquele que traz a boa-nova para quem crê. Lucas está consciente de que, em Jesus Cristo, “não há mais judeu nem grego, escravo nem livre, varão e mulher” (Gl 3,28), e essa certeza transparece no discurso programático de Jesus na sinagoga de Nazaré.


A pregação de Jesus na sinagoga, conforme Lc 4,16-30, ressaltando o anúncio da boa-nova aos pobres (4,18: “O Espírito do Senhor está sobre mim, pois ele me ungiu para anunciar a boa-nova aos pobres”), é sobretudo o anúncio da salvação universal, que se estende tanto à viúva fenícia quanto ao varão e militar Naamã, o sírio (vv. 24-27). Assim, é uma provocação àqueles que querem restringir as promessas a Israel.


Ao iniciar a narrativa do ministério de Jesus, Lucas proporciona a seus leitores um aperitivo do que virá logo à frente. No discurso de Jesus na sinagoga, o evangelista introduz o tema da salvação universal, que será assunto de sua predileção em sua obra, tendo como ponto máximo At 10,24-34, especialmente os versículos 24-26. Depois do discurso na casa de Cornélio, a salvação se estenderá a todos os povos – por meio da pregação paulina aos gentios –, já que neste episódio exemplar a acolhida dos gentios na comunidade cristã é legitimada por Pedro, para depois ser aprovada pela Igreja reunida (At 15). Desde então, a comunidade cristã dos Atos dos Apóstolos compreende que “também aos gentios Deus concedeu a conversão que leva à vida” (At 11,18). A Palavra de Deus, encarnada em Jesus Cristo, o querigma anunciado

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