38. Os milagres


Um tema que precisa ser bem esclarecido, para melhor compreensão da fé cristã, é a questão de saber como Deus age no mundo. Será que ele interfere em nossa vida, realizando os chamados milagres? Os Evangelhos estão cheios de relatos de milagres. Os evangelistas não se cansam de mostrar Jesus agindo, muitas vezes de modo inusitado, para comunicar que seu Pai é o Deus da vida. Essas ações de Jesus são verdadeiros sinais da bondade de Deus. Para compreender os chamados milagres, devemos sempre partir da ideia de que Jesus nos quer revelar um Deus bondoso, a favor da vida. Ele não quer mostrar bonito, sem ficar famoso como curandeiro; ele quer revelar que Deus se importa com a vida humana.
Os gestos de Jesus que chamamos milagres não são vistos por todos da mesma forma. Em João, por exemplo, não há milagres; só sinais que Jesus realiza para mostrar quem ele é: aquele que veio de Deus e para Deus vai voltar. Em alguns dos relatos, o povo vê esses sinais realizados por Jesus e crê nele (cf. Jo 2,11). Mas, em outros, o povo se irrita diante das ações de Cristo e quer afastá-lo e até matá-lo (cf. Mt 8,34; 9,34; 12,14; Jo 11,45-49 entre outros). Ou seja, uns se sentem tocados pelos sinais de Cristo, enquanto outros se irritam. Com isso, já vemos que os chamados milagres não são, de modo algum, um consenso, nem mesmo para o povo que testemunhou de perto as obras de Jesus.
Nos relatos dos Evangelhos, Jesus se sente incomodado com as multidões que o seguem só para alcançar algum milagre, sem verdadeiro interesse pelo seu seguimento. É o que vemos em Lc 11,29-31, por exemplo. As multidões seguem Jesus e querem milagres. Jesus fica bravo e diz que não vai fazer milagre para satisfazer a curiosidade do povo. Basta a eles o sinal de Jonas. Mas o que é o sinal de Jonas? A história de Jonas está em um pequeno livro do Antigo Testamento. Nele se relata que um profeta com esse nome teria convertido toda a cidade de Nínive – uma grande cidade – sem fazer nenhum milagre, apenas pela sua pregação. O profeta passou pela cidade pregando a conversão e todos ouviram e se converteram. Esse é o sinal de Jonas: a pregação. Jesus não quer fazer milagre; ele quer que as pessoas escutem a sua palavra.
Há outro texto em que Jesus também se incomoda com o povo que o segue, depois da multiplicação dos pães. Ele percebe que as pessoas estão atrás dele não pelos seus ensinamentos, mas por causa dos pães. Querem mais pão, querem um fazedor de milagres, alguém que resolva seus problemas (Jo 6,26-27). Jesus mostra que, mais importante que os pães, é o Pão, ele mesmo que serve de alimento para quem tem fé.
A Igreja, continuando a missão herdada de Jesus, também não é um povo que vive em busca de milagres, mas um povo que busca acolher os ensinamentos de Cristo e com eles se comprometer. O mais importante para nós é a pregação, a força da Palavra. Não seguimos Jesus em busca de milagres. E se alguém busca, há aí um equívoco. Buscamos a comunhão com o Deus bondoso que Jesus nos dá a conhecer. Essa comunhão é mais importante do que todo e qualquer milagre.
Mas há correntes religiosas que incentivam a busca de milagres. E há pessoas que ficam achando que Deus vai fazer coisas fora do comum o tempo todo, curando nossas doenças, protegendo-nos de todos os perigos, agindo, enfim, em nossas vidas para nos preservar de todo sofrimento. Essa tendência ao milagrismo pode ser, na verdade, uma tentativa de fugir da realidade da vida, que muitas vezes exige de nós a capacidade de enfrentar dificuldades. Convém lembrar que o próprio Jesus foi perseguido, preso, torturado e morreu na cruz. E não houve milagre para preservá-lo disso. Ao assumir a condição humana, Jesus assume também a realidade do sofrimento. Vejam que milagres não dependem da fé. No caso da cruz, ninguém tinha mais fé e comunhão com Deus que Jesus. E os que pediam um milagre, desafiando Jesus a descer da cruz, essas sim eram pessoas sem fé (cf. Lc 23,33-37). Às vezes, quando queremos milagres estamos demonstrando não nossa fé, mas nossa dificuldade de aceitar a vida como ela é, nossa preguiça de melhorar, nosso comodismo de querer receber tudo pronto. Para Jesus e para nós, nenhum milagre é mais importante do que a experiência da fidelidade a Deus. Foi isso que Jesus mostrou na cruz. Ficar pedindo milagre é sinal de fraqueza e não de força. Quem tem fé e está em comunhão com Deus compreende que o sofrimento e as dificuldades fazem parte da vida e que não podemos fazer de nossa religião um pretexto para sermos poupados de coisas que são próprias de nossa existência humana.
Por outro lado, não vamos nos acomodar. Vamos buscar as soluções próprias para cada realidade. Estamos doentes? Vamos buscar a ajuda da medicina. Estamos em dificuldade financeira? Vamos procurar emprego, trabalho e até mesmo a ajuda das pessoas que nos cercam. Estamos tristes? Vamos superar as tristezas e enxergar os motivos de alegria que a vida nos apresenta. Estamos diante da morte? Vamos aceitá-la em paz, porque sabemos que a morte é o começo de uma vida nova. Essa é a posição do católico.
Poderíamos ainda distinguir três sentidos para a palavra milagre: 1º) Em sentido poético, milagres são coisas admiráveis. Poderíamos falar da beleza do pôr-do-sol, da gota de orvalho na relva verde, do colorido e do perfume das flores, da beleza da generosidade e da amizade. Tudo são coisas admiráveis e, em sentido poético, são também milagres. Desses, a vida está cheia. É só olhar a vida com a generosidade de um poeta. 2º) Em sentido teológico, milagres são sinais da presença de Deus, defensor da vida. Um gesto de amor com um sofredor, uma amizade sincera capaz de assumir a dor do outro, uma pessoa que faz o bem ao próximo, um sorriso amigo capaz de alegrar quem está triste – tudo isso, aos olhos da fé, são coisas admiráveis que nos recordam o amor divino. Desses milagres, a vida também está cheia. É só olhar a vida com o olhar da fé. Na verdade, fé e poesia se complementam, comunicam a mesma verdade da vida. 3º) No campo da crença popular, milagres são coisas admiráveis que a ciência não sabe como explicar nem consegue repetir. Mas pode ser que hoje a ciência não tenha explicação para algo que amanhã será plenamente entendido e repetido nos laboratórios. A cura de certas doenças, por exemplo, no passado era desconhecida pela ciência. Hoje já existem remédios. Até doenças raras e complexas são curadas pela ciência. O milagre aqui, no sentido teológico, é a inteligência humana colocada a serviço do bem-estar das pessoas e não exatamente a cura. Milagres em sentido científico são poucos. E nem são os mais importantes. E vamos dizer claramente: eles não são exclusividade da fé cristã; estão em toda parte, inclusive entre os não-crentes.
Não estamos afirmando que Deus não possa fazer intervenções, que resultem em algo extraordinário, que não possa ser explicado pela ciência. “Deus pode tudo”, não é assim que diz o povo? Mas consideramos que esse não é o modo de agir de Deus. A fé madura nos leva a enxergar a beleza da vida, sem ficar esperando que Deus aja mudando as leis da natureza a nosso favor. Ficar pedindo exceções a Deus é sinal não de fé, mas de imaturidade.
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