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15.Instruções complementares I (Mt7,1-12)

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19.11.2014 | 13 minutos de leitura
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Curso Bíblico
15.Instruções complementares I (Mt7,1-12)

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1“Não julgueis, e não sereis julgados.
2Pois com o mesmo julgamento com que julgardes os outros sereis julgados; e a mesma medida que usardes para os outros servirá para vós.
3Por que observas o cisco no olho do teu irmão e não reparas na trave que está no teu próprio olho?
4Ou, como podes dizer ao teu irmão: ‘Deixa-me tirar o cisco do teu olho’, quando tu mesmo tens uma trave no teu?
5Hipócrita! Tira primeiro a trave do teu próprio olho, e então enxergarás bem para tirar o cisco do olho do teu irmão.
6Não deis aos cães o que é santo, nem jogueis vossas pérolas diante dos porcos. Pois estes, ao pisoteá-las se voltariam contra vós e vos estraçalhariam.
7“Pedi e vos será dado! Procurai e encontrareis! Batei e a porta vos será aberta!
8Pois todo aquele que pede recebe, quem procura encontra, e a quem bate, a porta será aberta.
9Quem de vós dá ao filho uma pedra, quando ele pede um pão?
10Ou lhe dá uma cobra, quando ele pede um peixe?
11Ora, se vós, que sois maus, sabeis dar coisas boas aos vossos filhos, quanto mais vosso Pai que está nos céus dará coisas boas aos que lhe pedirem!
12Tudo, portanto, quanto desejais que os outros vos façam, fazei-o, vós também, a eles. Isto é a Lei e os Profetas.

Situando


Como conclusão do ensinamento anterior, o evangelista reúne e costura diversas sentenças, que extrai tanto de Mc quanto da fonte Q (cf.  4. A questão das fontes). O resultado é um conjunto relativamente heterogêneo e, no entanto, significativo. Trata-se, de fato,das últimas instruções que o Mestre promulga antes de descer da montanha. Vejamos a primeira parte desta seção.


De novo, um caminho de mão dupla


“Não julgueis, e não sereis julgados” é o núcleo da primeira instrução (v. 1). O Mestre previne contra a tentação de sentar o irmão no banco dos réus, pois o discípulo, necessitado como está da misericórdia do Pai, não pode nem deve sentenciar a ninguém. A esta altura, a advertência talvez pareça desnecessária e até redundante, uma vez que o essencial da mensagem já foi dito na quinta bem-aventurança – “Felizes os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia” (Mt 5,7 – cf. estudo 11) – e na quinta petição do Pai-nosso– “Perdoai as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos que nos devem” (Mt 6,12 – cf. estudo 13). Mas Mateus, que conhece bem sua comunidade,faz questão de voltar ao assunto que, desse modo, é tratado no começo, no meio e no final do sermão inaugural.


Uma dupla afirmação reforça a advertência anterior: quem tiver a ousadia de condenar os outros será julgado e será medido com o mesmo critério e com a mesma medida que utilizou (v. 2). O passivo teológico – “sereis julgados... sereis medidos” – remete ao próprio Deus, que o evangelista imagina como um magistrado, ditando sentença no fórum ou como um comerciante, calculando a quantidade de cereal a ser vendido no mercado. Conforme frisamos em estudos prévios, o propósito de Mateus não é outro a não ser apresentar a misericórdia de Deus como uma estrada de mão dupla, que o discípulo precisa transitar, de ida e de volta, se pretende entrar na dinâmica do amor divino. Este, de resto, permanece inteiramente gratuito e para além de todo merecimento e retribuição (cf. estudos 11 e 13).


De novo, o “olho ruim”


Em seguida, duas perguntas evidenciam a insensatez de quem, cegado pela própria trave, observa o cisco no olho do irmão (v. 3) ou, mais perigoso ainda, pretende extrair-lhe uma pequena sujeira, apesar de ter a visão impedida por uma enorme trave (v. 4). Trata-se, na verdade, de uma hipérbole, ou seja, de uma imagem deliberadamente exagerada,cujo propósito é enfatizar a mensagem que está sendo transmitida. De fato, nenhum olho, por maior que seja, pode conter uma trave. E, no entanto, a imagem ilustra muito bem a situação de quem, incapaz de perceber a própria inconsistência, pretende julgar o irmão – o que Mateus já vetou no ensinamento anterior. Não se trata,é claro, de desanimar a correção fraterna, que, por inspirar-se na caridade, é também recomendada por Jesus (cf. Mt 18,15-18);trata-se, pois, de censurar a atitude de quem, motivado pela hipocrisia, denuncia as limitações do irmão, sem reparar nas próprias (v. 5). A sentença constitui, no fundo, um desdobramento do ensinamento a respeito do “olho ruim”, pois a pessoa que vive nas trevas mal poderá distinguir a própria trave e, muito menos, o cisco alheio (cf. Mt 6,22-23).


Bem-aventurados, sim; tolos, não!


Para penetrarmos o sentido da presente instrução (v.6), é absolutamente indispensável voltar o olhar, mais uma vez, para o contexto em que foi escrito o Primeiro Evangelho (cf. estudos 1-3). Mateus e a comunidade à qual o Evangelho é dirigido provinham do judaísmo e partilhavam, com esse, um vasto universo de significados. O mesmo pode dizer-se, aliás, de todas as comunidades primitivas, antes da abertura aos pagãos. Não é de se estranhar, pois, que o anúncio das primeiras comunidades – especialmente da mateana – tivesse por objetivo, ao menos num primeiro momento, o povo da Antiga Aliança. Mas o judaísmo oficial, que já tinha rejeitado Jesus, rejeitou também a pregação dos discípulos. Como puderam recusar Jesus – parece dizer o evangelista –, se tudo indicava que ele é o messias esperado? Só não vê – parece acrescentar – quem não quer ver!Daí a aspereza das palavras comentadas, sem dúvidas as mais duras de todo o Primeiro Evangelho: “Não deis aos cães o que é santo, nem jogueis vossas pérolas diante dos porcos” (v. 6a). Eis que tudo está invertido, pois os incircuncisos, que viviam à margem da Torah, acabam ficando com “o que é santo”, com as “pérolas”, ou seja, com o evangelho de Jesus Cristo (cf. Mt 13,45-46); enquanto os judeus, que se gabavam de pertencerem ao “povo eleito”,recebem a injuriosa denominação de “cães” – até então reservada aos pagãos (cf. Mt 15,26; Mc 7,27) – e de “porcos” – animal impuro por excelência (cf. Lv 11,7; Dt 14,8; 1Mc 1,47). Não precisamos dizer que a preocupação contemporânea com o diálogo inter-religioso era alheia à mentalidade mateana. Ninguém se escandalize, pois, ao constatar a rudeza de algumas expressões. Basta levar em conta o contexto e evitar extrapolações indevidas. De novo, estamos lidando com hipérboles, expressões que carregam no exagero para transmitir uma ideia. A segunda parte da instrução é questão de bom senso: não adianta pregar o evangelho a quem cismou de rejeitá-lo, pois a pregação será inútil e o pregador será pisoteado junto com as pérolas (v. 6b). Desse modo, Mateus, que já declarou bem-aventurados os perseguidos por causa do Reino (cf. Mt 5,10-12), procura expulsar a temeridade e a insensatez do coração dos seus, na hora de anunciar o evangelho.


Mais uma vez, pedir com confiança


A seguir, Jesus exorta o discípulo a pedir a Deus com confiança, na certeza de que sua súplica será atendida. Três pares de verbos introduzem a perícope, a saber: pedir e receber; buscar e encontrar; bater a porta e abrir (v. 7-8). A atitude recomendada por Jesus – convém observar – perpassa a tradição bíblica do começo ao fim. Assim, lê-se no Pentateuco: “Clamamos,então, ao Senhor, que ouviu o nosso clamor e enviou um anjo que nos libertou do Egito” (Nm20,16). Também os Profetasanunciam a fidelidade de Deus: “Quando me procurardes, vós me encontrareis; quando me seguirdes de todo coração, eu me deixarei encontrar por vós” (Jr 29,13-14). Igual confiança manifesta a tradição sapiencial: “Este pobre pediu socorro e o Senhor o ouviu, livrou-o de suas angústias todas” (Sl 34,7). O ensinamento, desse modo, não vai além do AT. Entretanto, é decisivo que a confiança do discípulo se alimente não dos próprios méritos, pois o amor não pode ser comprado, e sim da certeza de sermos amados pelo Pai do céu (cf. Mt 6,9-15 – estudo 13).


Como bom pedagogo, Jesus apela para uma realidade corriqueira e, no entanto,aprofunda-a, para ilustrar seu ensinamento: a experiência do amor paterno-filial. O discípulo é convidado a observar a seu redor e, sobretudo, a fazer memória da própria experiência(v. 9-10). O peixe e o pão eram habituais na mesa palestinense e significavam, portanto, o alimento que o filho, na sua indigência, espera do pai para subsistir. A pedra e a cobra, ao contrário, são imagens da fome e da miséria que o filho pequeno experimentaria se o pai lhe negasse o sustento. Ora, se um pai terreno não recusa o alimento que o filho lhe solicita, com maior razão, o Pai celeste, que é a fonte do amor e da vida, dará coisas boas aos que lhe pedirem! (v. 11). Nesse ponto, dois esclarecimentos devem ser feitos. O primeiro diz respeito à expressão “vós que sois maus”. Seria desacertado ver, nessas palavras, uma assertiva sobre a natureza humana ou sobre o assim chamado “pecado original”. Nada disso! Trata-se, apenas, de uma constatação: diferentemente do nosso amor, que é frágil e inconstante, o amor do Pai é infalível, isto é, sem fendas nem fissuras.Ou, conforme canta o salmista, “Ainda que pai e mãe me abandonem, o Senhor me acolhe” (Sl 27,10). O segundo esclarecimento diz respeito às “coisas boas” que o Pai dará aos que lhe pedirem. Que “coisas boas” são essas? A pergunta é grave e não pode ser omitida, uma vez que sabemos, por experiência, que nem sempre recebemos o que pedimos,mesmo tratando-se de “coisas boas”, como é o caso da saúde, do trabalho ou da unidade familiar. Parece insuficiente – e, falando sério, a poucos convence – dizer que as coisas podem ser “boas” desde a perspectiva humana e, contudo, não sê-lo desde a perspectiva de Deus, cuja sabedoria é sempre maior. Por outro lado, não devemos esquecer que Mateus já nos advertiu, no relato das tentações, que nem o Filho de Deus foi poupado da peleja de cada dia (cf. Mt 4,1-11 – estudo 9). Ora, se a filiação divina não supôs privilégios para Jesus, devemos concluir que a nossa filiação– chamamos a Deus de “Pai” – e o fato de sermos discípulos – seguimos o Crucificado – também não supõem privilégios para nós. Ninguém se iluda, pois, esperando encontrar, na oração, a solução de todos os problemas... Não é isso que o Mestre está dizendo! Como entender, pois, as “coisas boas” que o Pai nos dará? Apesar de cada Evangelho possuir sua própria perspectiva teológica – o que torna desaconselhável pular de um para outro, sem o devido discernimento –tudo indica que a versão lucana dessa perícope responde satisfatoriamente à pergunta que acabamos de levantar (cf. Lc 11,5-13). A variante de Lucas, de fato, possui características singulares, como são: uso de metáforas próprias – “peixe... cobra”, “ovo... escorpião”; inserção da perícope num contexto diferente; acento, mais que na oração confiante, na oração insistente... A máxima originalidade, entretanto, reside no remate do ensinamento, pois, onde Mateus diz “coisas boas”, Lucas diz, com maior precisão, “o Espírito Santo” (Lc 11,13). É isso – ao nosso ver – o cerne da questão. Afinal, não se trata de recebermos, sem mais, as “coisas boas” que pedimos, mas de recebermos o Espírito, ou seja, a força e o amor do Senhor, que nos capacitam para enfrentarmos, com confiança e jovialidade, a labuta do dia-a-dia e os desafios que a vida apresenta.


A Lei e os Profetas


Por fim, o Mestre entrega à comunidade messiânica a chamada Regra de Ouro: “Tudo, portanto, quanto desejais que os outros vos façam, fazei-o, vós também, a eles” (v. 12a).A fórmula coincide, no essencial, com a Regra de Ouro lucana, que o Terceiro Evangelista insere, contudo, num contexto diferente – o amor aos inimigos (cf. Lc 6,31). Todavia, a maior diferença se dá com relação ao Evangelho de João, uma vez que, enquanto nos Sinópticos, o amor é medido pelo bem que o discípulo anseia para si, no Quarto Evangelho, o discípulo é chamado a amar, no fundo, sem nenhuma medida: “Como eu vos amei, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros” (Jo 13,34). Em qualquer caso, Mateus propõe um amor totalizante – “tudo quanto desejais” – e operativo – “fazei-o vós também”.


Fazemos notar, de resto, que a Regra de Ouro dos Sinópticos não era alheia ao mundo judaico, que a formulava de modo negativo, como podemos constatar no testamento de Tobit: “Assim, o que não gostas, não faças a ninguém” (Tb 4,15). Jesus assume o ditado, reformula-o positivamente e identifica-o, sem mais, com o cerne das Escrituras: “Isto é a Lei e os Profetas” (v. 12b). Como dizemos num estudo anterior, a expressão “a Lei e os Profetas” designa o coração da TaNaK ou Bíblia Hebraica, composta pelo Pentateuco (Torah ou Lei), pelos livros Proféticos (Nebiim) e pelos outros livros, isto é, os escritos Sapienciais (Ketubim – cf. estudo 11). A fórmula remete ao início do Sermão da Montanha, onde Jesus explicita o propósito da sua missão – o cumprimento das Escrituras – valendo-se exatamente das mesmas palavras (cf. Mt 5,17). Desse modo, Mateus constrói uma cuidadosa inclusão, isto é, um recurso típico da literatura judaica, consistente na delimitação de um texto, mediante a estratégica repetição de uma mesma expressão – neste caso, “a Lei e os Profetas”. Mateus está esclarecendo, definitivamente, não somente o sentido último da Regra de Ouro, mas também o sentido pleno de toda a seção demarcada (cf. Mt 5,17–7,12). E, ao mesmo tempo, está nos avisando que o discurso inaugural, que abriu com as Bem-aventuranças (cf. Mt 5,1-12), está chegando ao final.


* * *


As instruções que o Mestre nos dá podem parecer numerosas... No entanto, todas se resumem numa só: “Tudo quanto desejais que os outros vos façam, fazei-o, vós também, a eles” (Mt 7,12). Isso é “a Lei e os Profetas”... Não nos esqueçamos.







Estudo anterior:     14. Coração indiviso e confiante (Mt 6,19-34)

Próximo estudo:    16. Instruções complementares II (Mt7,13-29)
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