61. A proclamação do texto bíblico


Que nossa gente anda com uma deficiência no campo da literatura, da linguística e da gramática não há como negar. Fica cada vez mais raro encontrar um aluno da graduação que saiba escrever bem, interpretar um texto, responder de forma sucinta e com precisão às questões levantadas em prova. Quase sempre, na hora da prova os alunos chamam os professores querendo entender o que a questão pede, ainda que ela seja clara como água da mais pura fonte. Parece que esses problemas têm todos a mesma origem: a literatura, ou seja, a falta que ela nos faz.
Os efeitos de tal defasagem repercutem nas liturgias católicas. Falo das católicas, pois são as que frequento e não me sinto apta a dar “pitaco” em liturgia alheia, mas creio que o problema seja universal. Coisa rara é encontrar uma pessoa que saiba ler bem, com boa entonação, com propriedade do que lê, sabendo comunicar o texto. Normalmente, os leitores das celebrações católicas não sabem proclamar o texto como ele exige. Tanto faz ler uma carta, um invectiva, um salmo, uma lista de leis... Todos os relatos ganham o mesmo tom, a mesma empolgação, a mesma impostação vocal, o mesmo olhar... Os leitores têm – no máximo – lido corretamente as palavras, as frases, o relato. Mas não se lê a mensagem; não se comunica o conteúdo.
Se dá tristeza ouvir algumas leituras onde nem as palavras são lidas corretamente, também dá tristeza ouvir uma leitura mal proclamada. Um texto cheio de ironia, por exemplo, do Evangelho de João ou do Livro de Jó, muitas vezes é lido como se fosse um texto piedoso e a ser obedecido sem levantar questões. As palavras – para dizer o que querem dizer – precisam ser ditas de forma correta. Vejamos um exemplo. O Livro de Jó é um relato muito curioso. Jó, um homem justo, está sendo acusado por seus amigos de algum pecado para justificar a teologia da retribuição que dizia que o mal sofrido é castigo de Deus pelos pecados cometidos. Todo mundo sabe que Jó é justo: o próprio Jó, o diabo, Deus e o mundo. Mesmo assim os amigos de Jó o acusam. Então cansado de discutir, Jó ironiza concordando com seus amigos-adversários. É como uma mãe, cujo filho lhe pede um sorvete, estando com garganta inflamada. Ela diz não pode, não pode, não pode... até se cansar de tanto negar. Não conseguindo fazer o filho parar de insistir no mesmo ponto, quando ele lhe diz: “vou tomar sorvete. Pode?”, ela ironicamente diz: “Pode, pode, já vou te dar um pote inteiro de sorvete!”. Ora, há mais negação nessa afirmação que em todas as negativas anteriores. É pura ironia da mãe dizer que o filho vai ganhar o sorvete pedido. No fundo, ela está negando com maior veemência ainda e não autorizando a vontade do filho. Mas, se a gente não saber ler o texto, no caso, as palavras da mãe, podemos entender que ela está afirmando. O tom de voz na leitura, o sorriso sarcástico, a malícia ao pronunciar as palavras é que vão dizer o sentido do relato.
Certamente não é culpa de nosso povo, sempre bom e pronto a servir, não saber proclamar o texto. Para além do problema da culpa, pois não resolve detectar culpados, mais importante é saber como vamos encontrar saídas para essas questões. Como treinar nossa gente já com deficiências crônicas na língua portuguesa e ainda com deficiências maiores no conhecimento das Escrituras Sagradas? Não tem outro caminho: formação paciente e acurada, de boa qualidade, feita com ternura e boa vontade. Nossa gente aprende.
Conheço um leitor que me surpreendeu profundamente com um pedido. É uma pessoa simples, mas com boa leitura e bom tom de voz, sabe usar o microfone e se posicionar para proclamar o texto. Logo, já faz parte de uma elite rara nas nossas pastorais. Mas, como se isso não bastasse, certo dia, procurou-me durante a semana pedindo explicações sobre um texto bíblico que deveria ser proclamado por ele no próximo domingo. Queria entender o que o texto diz para saber comunicá-lo. Fiquei feliz por poder ajudá-lo. Se nossa gente não sabe o que lê, logo não pode comunicar ao ler as palavras. O texto torna-se palavras ao vento, sem nenhum significado.
Para as paróquias, sugiro: primeiro, ter um grupo de leitores instituídos e não leitores escolhidos na porta da igreja na hora da missa; segundo, ensaiar os leitores ensinando como se lê, corrigindo as palavras pronunciadas equivocadamente etc; terceiro, dar formação bíblica para nossa gente. Fica aí a dica!
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