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6. Feira

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03.06.2020 | 3 minutos de leitura
Pe. Eduardo César Rodrigues Calil
Contos
6. Feira

A feira apertava a rua, uma subida que terminava numa grande catedral: um shopping center. A multidão se espremia, ali, se acotovelando. Um respirava no pescoço do outro. Não andavam, trombavam-se. Mas, curiosamente, apesar das outras vielas que permitiam o acesso à catedral, era a rua da feira a preferida. Dizia-se não haver nada melhor que poder se acotovelar sem pedir desculpas, ou suspirar no cangote alheio sem pedir permissão.


Lá vinha o jovem fazer suas compras. Parou na tenda de sapatos. E embora tivesse apenas um par de pés, serenamente, pediu dez pares. Perguntou o preço. Dez dedos, respondeu o vendedor. O jovem pôs as mãos na balança ensanguentada, virou o rosto e o vendedor-açougueiro passou a lâmina. E lá foi o jovem com as mãos minando sangue, sujando a rua, sujando as pessoas, se banhando de púrpura e lágrima.


Parou mais uma vez noutra tenda. Uma banca de frutas, verduras e legumes peculiares. Não eram os mais comuns, eram comidas muito requintadas. Pediu tâmaras, doces refinados e escutou o preço: quatro dentes. Sentou-se na cadeira improvisada em que se abria a boca e se soltava o berro mudo. E esqueceu a dor das mãos pela dor dos dentes. Desfaleceu.


Acordou logo em seguida. Alguém misericordioso enfaixou suas mãos, mas a boca tinha gosto de morte. Levantou outra vez e terminando de subir rua acima parou, finalmente, numa loja de roupas caras. Pediu as mais pedidas, as mais belas, e elas lhe custavam dois olhos. Tentou pechinchar por apenas um. O vendedor aceitou. Viu apenas o fórceps, como garra, vindo em sua direção. E sem olho, sem dentes e sem dedos, chorou.


Mas o choro não durou muito. No fim da rua, sob o brilho do sol e do céu azul, lá estava a catedral. Seus sinos tocavam, suas paredes despertavam os sonhos mais íntimos. Os desejos mais recônditos. Entrou. Os cheiros, a luz, a beleza de tudo. O sangue de suas mãos caiu no chão imaculado e logo apareceram mil obreiros da imaculação. Tudo limpo de novo.


E lá estava a loja de perfumes. Tantas fragrâncias, graves e profundas, e tantas memórias incitando o nervo que liga a cabeça ao baixo ventre. E se comprar o perfume fosse comprar a memória, e se ao usá-lo fosse possível conquistar o inconquistável? Pediu um sinal aos céus e, ao olhar pro lado viu o valor; uma vida inteira. Ele não tinha uma vida como moeda. Ele não era inteiro, mas mutilado. Saiu da loja. Saiu da catedral. As compras ensanguentadas não faziam sentido. Mais valia o perfume que faltava do que aquilo que ele possuía. Desceu a rua como se morresse aos poucos. Para trás a catedral com seus sinos, para trás a feira e seu restos, consigo, as compras e seu nada.

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