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496. REFLEXÃO PARA O 19º DOMINGO DO TEMPO COMUM – Jo 6,41-51 (Ano B)

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10.08.2024 | 13 minutos de leitura
Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues
Evangelho Dominical
496. REFLEXÃO PARA O 19º DOMINGO DO TEMPO COMUM – Jo 6,41-51 (Ano B)
A liturgia do décimo nono domingo do tempo comum continua a leitura do capítulo sexto do Evangelho de João, iniciada há dois domingos. O trecho lido hoje é Jo 6,41-51. Apesar de saltar alguns versículos, é clara a continuidade entre o texto de hoje e aquele do domingo passado (Jo 6,24-35). É a sequência do discurso de autoapresentação de Jesus como pão vido descido do céu e alimento para a vida eterna, proferido na sinagoga de Cafarnaum. Esse discurso é a resposta de Jesus à multidão que, alimentada pelo pão partilhado na outra margem do mar – ou do lago –, e maravilhada por causa do sinal cumprido, quis logo proclamá-lo rei, imaginando tirar cada vez mais proveito de suas ações prodigiosas (Jo 6,1-15). Diante disso, Jesus refugiou-se (Jo 6,15b-21), ao perceber a interpretação equivocada e as pretensões interesseiras, mas a multidão o encontrou novamente querendo pão gratuito com fartura (Jo 6,22-25). Conhecendo as intenções da multidão, Jesus aproveitou a oportunidade para apresentar uma ampla catequese, chamando a atenção para a importância de um alimento duradouro e essencial: a sua própria pessoa, pão vivo descido do céu, enviado pelo Pai para dar vida ao mundo. Por tratar-se de uma realidade difícil de ser assimilada, o evangelista organizou essa catequese em forma de um longo discurso de revelação, e a liturgia do “ciclo B” o distribuiu na sequência de domingos que estamos celebrando. O contexto, brevemente recordado acima, é o mesmo dos últimos domingos, o que torna desnecessário recordá-lo de modo mais pormenorizado.

A autoapresentação de Jesus como pão descido do céu e alimento para a vida eterna foi duramente criticada e questionada pelos seus ouvintes, praticantes da religião tradicional. Para eles, a única referência de pão descido céu era o maná do deserto, mas aquele era um alimento perecível, tanto é que os antepassados que dele se alimentaram, morreram todos. Portanto, a afirmação de Jesus soava como pretensiosa e uma verdadeira afronta aos parâmetros da religião judaica. Por isso, o protesto questionador: «Os judeus começaram a murmurar a respeito de Jesus, porque havia dito: ‘Eu sou o pão que desceu do céu» (v. 41). Geralmente, quando o evangelista João menciona “os judeus”, não se refere ao povo judeu propriamente, mas às autoridades religiosas, que eram bastante hostis aos ensinamentos e à pessoa de Jesus. Contudo, neste caso, quase excepcionalmente, a expressão “os judeus” designa o povo mesmo, a multidão que estava ao redor de Jesus, que tinha se alimentado fartamente com o pão multiplicado, mas era manipulada ideologicamente pelas classes dirigentes de Israel. Ora, Jesus com sua mensagem libertadora era visto como uma verdadeira ameaça para aquela religião, pois ele abria caminho para a humanidade encontrar-se diretamente com Deus, através da sua pessoa, dispensando a mediação dos líderes religiosos. Por isso, era frequente o murmúrio diante da sua mensagem, tanto da parte das lideranças quanto do povo por elas manipulado, como neste caso. A proposta humanizadora de Jesus soava altamente desestabilizadora para a religião e todo o sistema vigente.

Na linguagem bíblica, o verbo murmurar (em grego: γογγύζω – gonghýzo) não significa uma simples crítica ou discordância. Trata-se de um lamento que afronta, negando a autoridade. Por isso, é um pecado, pois nega a graça e o poder de Deus. É a atitude de um povo rebelde e fechado que rejeita a libertação oferecida por Deus, como acontecera no deserto: «Murmuraram contra Moisés e contra Aarão todos os filhos de Israel, dizendo consigo toda a assembleia: antes tivéssemos morrido na terra do Egito! Estamos morrendo neste deserto!» (Nm 14,2). Portanto, o murmúrio do povo contra Jesus é a confirmação do fechamento de Israel, desde o antigo êxodo, à proposta libertadora de Deus, levada a cumprimento em Jesus de Nazaré. Ao se autoapresentar como pão descido do céu, Jesus quis mostrar o fim da distância entre o humano e o divino; decretou a proximidade de Deus com a humanidade, mas foi rejeitado pelo povo que estava manipulado por uma religião que imaginava ter o monopólio de Deus. Por isso, o discurso se prolonga bastante, pois Jesus insiste na emancipação do povo, mesmo que não alcance o objetivo, pois o murmúrio indica o fechamento de perspectiva e mentalidade, o que impede a necessária conversão.

Para desqualificar Jesus e negar a sua condição de enviado de Deus, seus contestadores alegam a sua origem humana e simples: «Eles comentavam: “Não é este Jesus, o filho de José? Não conhecemos seu pai e sua mãe? Como então pode dizer que desceu do céu?”» (v. 42). Vale lembrar que o fato de seus interlocutores conhecerem seus familiares por nome é mais uma demonstração de que, neste caso, os judeus são mesmo o povo simples da Galileia, e não as autoridades de Jerusalém. Como a religião oficial tinha caricaturado Deus como um soberano distante da terra, inacessível ao ser humano, as afirmações de Jesus soavam como absurdas. Segundo aquela mentalidade, era impossível que um Deus tão grande pudesse ser manifestar na pessoa de um simples carpinteiro. Sendo habitante da região, com pai e mãe conhecidos, Jesus não tinha credencial de revelador de Deus, segundo a imagem de Deus difundida por aquela religião. Como ser imensamente superior, Deus só poderia se manifestar através de sinais extraordinários, jamais em um homem pobre e ousado como Jesus. Se aceitassem Jesus como revelador do Pai, os judeus do seu tempo estariam desconstruindo um discurso sustentado há séculos e colocando em risco os privilégios dos poderosos. Ao associar Jesus a seus pais terrenos, os judeus afirmavam que ele não poderia ter descido do céu, pois possuía origem comum a todos os homens.

Jesus não entra diretamente na discussão, pois não sente necessidade de reafirmar a sua origem divina para aquele povo duro de coração. Apenas interrompe o comentário, repreendendo às murmurações: «Jesus respondeu: “Não murmureis entre vós”» (v. 43). Jesus não quer a perpetuação dos erros de Israel que, historicamente, tem interpretado mal a presença de Deus em seu meio, rejeitando-o inúmeras vezes. Ele combate o murmúrio porque deseja que Deus, o seu Pai, quer que todos o reconheçam e o aceitem como ele realmente é: um Pai doador de vida, por amor. E tudo o que um pai realmente necessita é de filhos sintam-se amados e se amem reciprocamente. Por isso, com muita tranquilidade e consciência, Jesus deixa claro que é preciso deixar-se atrair pelo Pai para chegar até ele e sentir-se filhos e filhas: «Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou não o atrai. E eu o ressuscitarei no último dia» (v. 44). Não obstante as rejeições sofridas, Jesus reforça sua confiança no Pai e a relação intrínseca entre os dois. Se foi o Pai quem o enviou, é também o Pai quem atrairá cada pessoa ele. Na história da salvação, a iniciativa é sempre de Deus, o Pai. Quem se deixa atrair pelo Pai e vai a Jesus, terá a plenitude da vida, não como prêmio, mas como consequência. Ao reconhecer o Pai como agente de atração, Jesus dispensa qualquer forma de proselitismo e fundamentalismo no seu seguimento. A atração do Pai se dá por uma espécie de contágio, cujo elemento determinante é o amor. Quem faz a experiência de encontro com um Deus que é essencialmente amor, sente-se atraído por ele. E muitas vezes o que desperta para esse encontro é a maneira de viver das pessoas que já se encontraram com ele. Por isso, na relação com Jesus, sobretudo na perspectiva do evangelista João, o testemunho é tão indispensável. Por isso, o proselitismo é, além de desnecessário, também nocivo.

Em Jesus, toda a humanidade tem a oportunidade de unir-se a Deus, através do discipulado gerado pela escuta do Pai (v. 45). Ora, escuta o Pai quem se deixa conduzir pela sua Palavra eterna, o seu filho Jesus, cujo convite já ressoava desde os tempos dos profetas (Hb 1,1ss). O Evangelho de Jesus é, portanto, a voz do Pai ecoante no mundo e acessível a toda a humanidade. Por Evangelho, aqui, compreende-se a vida e a mensagem de Jesus. Assim como Jesus é o Reino em pessoa, ele é também o Evangelho em pessoa, pois é melhor de todas as boas notícias que o Pai já comunicou ao mundo. Por isso, ainda como resposta ao murmúrio dos seus adversários, Jesus reforça sua condição de único mediador entre o Pai e a humanidade: «Só aquele que vem de junto de Deus viu o Pai» (v. 46). Somente pode revelar com clareza o rosto amoroso do Pai quem vive em comunhão plena com ele e dele foi gerado. Enquanto a religião oficial comercializava um personagem distante, violento e vingativo, caricaturado de Deus, Jesus em sua simples condição humana revelava de modo claro a identidade do Pai, o qual não exige sacrifícios nem ofertas, mas apenas uma adesão de fé, pois é ele mesmo quem se oferece à humanidade.

E Jesus continua sua catequese como resposta às incompreensões e murmúrio da multidão que lhe cercava, expondo agora o resultado direto para quem, atraído pelo Pai, lhe der adesão pela fé: «Em verdade, em verdade, vos digo, quem crê, possui a vida eterna» (v. 47). O verbo crer (em grego: πιστεύω – pistêuo) é um dos mais relevantes para a comunidade do evangelista João, sendo utilizado noventa e oito vezes no seu Evangelho, enquanto Marcos o emprega doze vezes, Mateus trezes vezes e Lucas apenas nove vezes. Significa dar plena adesão a Jesus, deixando-se conduzir pelo seu Evangelho, aceitando-o como único programa de vida. Como consequência, quem faz essa adesão se torna possuidor da vida eterna, a qual não é uma vida para o além, como prêmio para quem praticou boas obras, mas um dom oferecido já nesta vida a quem conduz a sua existência de acordo com o Evangelho. O evangelista faz questão de empregar o verbo possuir no tempo presente: quem crê já é possuidor da vida eterna. Essa, a vida eterna (em grego: ζωὴν αἰώνιον – zoén aiónion) é a vida conduzida conforme a de Jesus, a qual nem a morte foi capaz de destruí-la. A eternidade dessa vida não significa a duração, mas a qualidade: é a vida em abundância, que já começa neste mundo; é uma vida tão autêntica, tão cheia de sentido, que nem a morte destrui-la-á.

Mais uma vez se apresentando como pão da vida e alimento perene (v. 48), Jesus põe em questão o maná comido pelos antepassados no deserto, mostrando a ineficácia daquele alimento: «Os vossos pais comeram o maná no deserto e, no entanto, morreram» (v. 49). Aqui, Jesus dá mais um sinal de ruptura com aquela tradição ao falar de “vossos pais” ao invés de “nossos pais”, pois ele também era judeu de origem. Ele quer se distanciar de uma tradição ultrapassada, fechada em seus próprios conceitos e incapaz de abrir-se ao novo. O apego aos “pais” encobria o rosto paterno de Deus. Essa tradição impedia o povo de viver uma relação filial com Deus. Eles colocavam personagens do passado no lugar do Pai, colocando Deus num trono imaginário inacessível. Jesus quer que todos tenham Deus como único Pai; para isso, é preciso sentir-se filhos e filhas dele. Seus interlocutores, pelo contrário, sentiam-se clientes de Deus, no máximo servos, devido à manipulação da religião. Na referência ao maná está implícita a referência à Lei. Assim como o maná não evitou a morte dos antepassados, também a observância da Lei não garante a vida em abundância. Mesmo assim, os judeus continuavam “devotos” do maná, considerando-o como o único alimento descido do céu. Jesus se contrapõe a essa mentalidade: está sendo dada a oportunidade de provarem um alimento verdadeiramente descido do céu, que é ele mesmo, como disse: «Eis aqui o pão que desce do céu: quem dele comer, nunca morrerá» (v. 50).

Apresentando-se como pão, Jesus garante a sua eficácia como alimento e deixa ainda mais clara a oferta total de si para a vida do mundo: «Eu sou o pão vivo descido do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente. E o pão que eu darei é a minha carne dada para a vida do mundo» (v. 51). Ora, o maná no deserto fora dado a um povo específico e privilegiado que, mesmo assim, murmurava constantemente. A oferta de Jesus é universal, não é mais para a vida de um povo, mas para a vida do mundo. Toda a humanidade é destinatária: é uma oferta universal e plena, porque é a inteireza do seu ser, é carne e espírito, é sua vida e mensagem dadas plenamente. Aceitar essa oferta é condição para viver eternamente. O evangelista usa a palavra carne (em grego: σάρξ – sarx), um hebraísmo que exprime a totalidade da pessoa, ao invés de corpo, que poderia ser facilmente interpretado a partir da dicotomia grega corpo-espírito. É, portanto, pelo dom da carne de Jesus que é dada vida ao mundo. Logo, é também na condição carnal que o ser humano é chamado a acolher a salvação, quer dizer, na concretude da existência terrena, mesmo marcada por contradições. Do pão enquanto palavra, passa-se ao pão enquanto carne, abrindo assim o discurso para uma perspectiva ainda mais eucarística, mas não no sentido ritual, ainda, mas enquanto vida que se doa. A expressão «carne dada para a vida do mundo» indica, acima de tudo, a entrega de Jesus na cruz, consequência de seu amor infinito e sua fidelidade ao Pai. Se foi na carne que ele veio ao mundo, enquanto Palavra eterna, é também na carne que ele dá vida ao mundo.

Acolher Jesus como pão descido do céu é aceitá-lo como único mediador e revelador do Pai. Recebê-lo como alimento perene é aceitar o Evangelho como único programa de vida. A insuficiência e ineficácia do maná está ficando cada vez mais clara no discurso de Jesus, assim como o pão partilhado para a multidão no outro lado do mar. Com isso, se torna cada vez mais claro que o único alimento, realmente duradouro e capaz de gerar vida eterna é o próprio Jesus na inteireza do seu ser. Comê-lo é assimilar o Evangelho com todas as consequências que dele emanam.