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495. REFLEXÃO PARA 18º DOMINGO DO TEMPO COMUM – Jo 6,24-35 (Ano B)

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03.08.2024 | 13 minutos de leitura
Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues
Evangelho Dominical
495. REFLEXÃO PARA 18º DOMINGO DO TEMPO COMUM – Jo 6,24-35 (Ano B)
Neste décimo oitavo domingo do tempo comum, continuamos a leitura do capítulo sexto do Evangelho segundo João. Embora a liturgia salte alguns versículos (Jo 6,16-23), o texto proposto para hoje – Jo 6,24-35 – está em perfeita continuidade com aquele do domingo passado (Jo 6,1-15). Após o sinal da partilha ou multiplicação dos pães, a multidão, saciada e impressionada com o sinal cumprido por Jesus, teve a tentação de querer proclamá-lo rei, o que fez com que ele se afastasse, pois, aquela ideia era uma distorção do sinal cumprido e da sua própria missão de enviado de Deus. Ora, uma interpretação equivocada dos sinais cumpridos por Jesus e da sua identidade de messias servidor colocava em risco a eficácia do seu projeto de libertação e vida plena para a humanidade inteira. Por isso, João mostra Jesus mesmo corrigindo as incompreensões da multidão e explicando o verdadeiro sentido do sinal realizado, como mostram o evangelho de hoje e dos próximos três domingos. Isso faz de Jesus o exegeta de si mesmo no Quarto Evangelho, pois é ele quem explica sua identidade e seu agir.

Enquanto Jesus se refugiou para não alimentar os anseios triunfalistas e interesseiros da multidão, essa o procurou até encontrá-lo, já na outra margem do mar ou lago, na cidade de Cafarnaum, como mostra o texto: «Quando a multidão viu que Jesus não estava ali, nem os seus discípulos, subiram às barcas e foram à procura de Jesus, em Cafarnaum» (v. 24). Embora Jesus mesmo tenha se afastado, era compreensível a ânsia da multidão querendo estar ao seu redor, uma vez que essa é a mesma multidão que padecia, abandonada como ovelha sem pastor, de quem ele sentiu compaixão, provendo-a da necessidade mais urgente: o pão (Mc 6,34). Diante da multidão abandonada, Jesus agiu como pastor e guia, ensinando o dom da partilha como primeiro meio de superação da principal crise concreta pela qual passava. Porém, ele se preocupava com as reais intenções da multidão à sua procura e não queria alimentar falsas e ilusórias expectativas, tendo em vista a natureza do seu reino e da sua missão no mundo enquanto Palavra incarnada.

Ao encontrar Jesus, a multidão interage com ele, pela primeira vez, em forma de diálogo: «Quando o encontraram no outro lado do mar, perguntaram-lhe: “Rabi, quando chegaste aqui?”» (v. 25). Convém recordar que, no episódio da partilha dos pães propriamente, não houve uma interação direta; Jesus simplesmente percebeu a fome da multidão, se preocupou com a situação e providenciou a solução, por meio da partilha dos pães e dos peixes, a partir do que o menininho trazia. Agora, há um verdadeiro diálogo. A pergunta em si é pouco significativa e carente de profundidade, mas muito importante porque abre caminho para uma interação cada vez maior entre o Mestre – Rabi, em hebraico – e o povo. Ao dirigir essa pergunta, a multidão consegue ver Jesus como alguém acessível, o que poderia ser o início de uma nova compreensão a seu respeito, pois os mestres convencionais da época não eram acessíveis às multidões, mas apenas aos seletos grupos de discípulos. Portanto, ao interagir com Jesus, as multidões se dão conta de tratar-se de um mestre diferente. Ao considerá-lo mestre, abre-se a possibilidade para o nascimento de um novo discipulado. De fato, fazia parte da pedagogia de Jesus gerar discípulos e discípulas a partir das multidões anônimas. Jesus não responde objetivamente à pergunta da multidão, ou seja, ele não diz quando chegou ali, conforme queriam saber. Sua resposta será muito mais profunda.

À pergunta da multidão, «Jesus respondeu: “Em verdade, em verdade, eu vos digo: estais me procurando não porque vistes os sinais, mas porque comestes pão e ficastes satisfeitos”» (v. 26). Como se vê, a resposta de Jesus não responde à pergunta que lhe fora dirigida. Com bastante clareza e objetividade, ele expõe as intenções que levaram a multidão a procurá-lo e nada diz a respeito de quando chegou na outra margem do mar, como tinha sido perguntado. Em sua resposta, ele escancara a verdade sobre as motivações da multidão: não estava interessada em reconhecê-lo e aceitá-lo como aquele que Deus enviou ao mundo para salvar e dar vida em abundância (Jo 3,16; 10,10), mas apenas queriam perto de si alguém que fornecesse pão gratuitamente. De fato, Jesus sabia que estava sendo procurado pelo que tinha feito, e não pelo que realmente era. Porém, não desperdiçou a ocasião, mas aproveitou para iniciar uma ampla e profunda catequese, recordada pelo evangelista João como essencial para a sua comunidade e para a comunidade cristã de todos os tempos.

Cercado por uma multidão saciada recentemente por poucos peixes e pães multiplicados pela partilha, mas já faminta de novo, Jesus a convida a buscar algo muito maior e mais eficaz: «Esforçai-vos não pelo alimento que se perde, mas pelo alimento que permanece até a vida eterna, e que o Filho do Homem vos dará. Pois este é que o Pai marcou com seu selo» (v. 27). Esse convite-imperativo se assemelha muito ao que Jesus já tinha feito à mulher samaritana que buscava água no poço de Jacó; ali, Jesus falara que a água daquele poço saciava por alguns momentos e, embora necessária, beber dela não era suficiente para o ser humano viver plenamente saciado. Por isso, ele falou de uma água que saciava para sempre (Jo 4,1-42). Aqui, com a multidão, ele faz praticamente o mesmo: convida-a a alimentar-se com um alimento que não se perde, mas que permanece até a vida eterna. Esse alimento só pode ser dado por ele mesmo, pois é ele o Filho do Homem, marcado pelo Pai com o seu selo, que é o Espírito Santo e o amor que os une. O pão que alimenta apenas o corpo pode ser dado por qualquer pessoa, basta o dinheiro necessário para comprá-lo ou os meios necessários para produzi-lo. Já o pão que não perece e, por isso, alimenta para a vida eterna, só pode ser dado por ele porque é a sua própria vida, a sua pessoa em plenitude.

Com o sinal da partilha dos pães, Jesus tinha ensinado a multidão a superar, por si mesma, as suas dificuldades, principalmente o problema da fome. Com os pães e peixes apresentados pelo menininho, ficou a lição da partilha e da solidariedade que brota dos pequenos. Aquele gesto poderia e pode ser feito sem a presença física de Jesus, por isso, ele via como desnecessária a busca da multidão por algo que ela mesma seria capaz de fazer, se tivesse aprendido a lição da partilha. Daí, o convite para buscar algo mais profundo e não menos necessário: o alimento para uma vida plena, com sentido e dignidade plenos, a vida eterna, imune até mesmo à morte. O pão que nutre para a vida eterna, de fato, só pode ser dado por Jesus, porque é ele mesmo na inteireza do seu ser. Alimentar-se desse pão é assumir na concretude da vida o estilo de Jesus, fazendo escolhas semelhantes às suas, amando com um amor à sua maneira. É isso o que gera eternidade de vida, pois, uma vida autêntica assim não pode ser destruída nem mesmo pela morte.

Parece que as palavras de Jesus geraram reflexão na multidão, e um desejo de aprofundamento, embora essa ainda estivesse presa à teologia retributiva da lei. É, pois, muito relevante a nova pergunta que a multidão lhe dirige, pois demonstra interesse por algo superior, como se vê: «Então perguntaram: “Que devemos fazer para realizar as obras de Deus?”» (v. 28). A pergunta sobre “o que fazer” é típica da mentalidade judaica, de quem foi educado para fazer e não para ser. Fazer obras para merecer algo é negar a salvação como dom de Deus e graça. É demonstração de quem está totalmente moldado pela teologia retributiva. Por isso, a resposta de Jesus é categórica: «A obra de Deus é que acrediteis naquele que ele enviou» (v. 29). Embora fosse uma característica das comunidades paulinas, parece que a dicotomia entre fé e obras estava presente também na comunidade joanina. Pelo menos é isso o que esse trecho revela. A resposta de Jesus esclarece que não se trata de um fazer, mas de acreditar nele. É claro que aquilo que se deve fazer é importante, mas isso deve ser consequência de uma adesão livre e consciente, e não de uma mera imposição legal. A vida cristã é marcada pelo agir, mas não porque há uma regra que determine esse agir, e sim porque quem dá adesão a Jesus, pela fé, é motivado a agir como ele, servindo e amando, sanando dores e feridas, estando sempre do lado das pessoas mais necessitadas, promovendo a humanização do mundo.

Na continuidade da interação entre Jesus e a multidão, da qual surgirá a grande catequese eucarística, que será continuada nos próximos domingos, percebemos a curiosidade e o desejo da multidão em aderir à proposta de Jesus, e ao mesmo tempo os entraves ideológicos de uma religião conservadora, ritualista e legalista, como era o judaísmo da época. Por isso, a exigência de sinais e prodígios, e a comparação com o passado: «Eles perguntaram: “Que sinal realizas, para que possamos ver e crer em ti? Que obra fazes? Nossos pais comeram o maná no deserto, como está na Escritura: ‘Pão do céu deu-lhes a comer’”» (vv. 30-31). O evangelista mostra, com isso, a sua preocupação com a comunidade que necessita ver a realização de sinais para crer. Isso é impor condições, o que faz tornar secundário aquilo que é essencial: o amor gratuito e incondicional de Deus, ou seja, a graça. Catequizados pelas narrativas portentosas do Pentateuco – a Lei/Torah – as quais exaltam exageradamente os atos de Moisés, as pessoas tinham dificuldades de assimilar e aceitar que Deus pudesse se revelar na simplicidade de Jesus. A menção à experiência do deserto e aos pais que lá comeram o pão – o maná – evidencia a denúncia que o evangelista mostra de como o apega às tradições podem bloquear a comunidade de sentir a graça e o amor vivificante e gratuito de Deus revelado em e por Jesus.

A isso, Jesus responde de modo categórico: «Em verdade, em verdade vos digo, não foi Moisés quem vos deu o pão que veio do céu. É meu Pai que vos dará o verdadeiro pão do céu, pois o pão de Deus é aquele que desce do céu e dá vida ao mundo» (v. 32-33). A fórmula “em verdade, em verdade” (em grego: ἀμὴν ἀμὴν – amén, amén) sempre introduz um ensinamento solene e irrevogável, um conteúdo de fundamental importância para a comunidade. E a distinção entre Jesus e todos os personagens do Antigo Testamento é muito importante e indispensável para a sobrevivência da comunidade cristã em todos os tempos. Jesus esclarece que, na verdade, até mesmo aquele pão comido no deserto pelos antepassados já era dom de Deus, e não obra de Moisés; e aproveita para apresentar a sua novidade, como o verdadeiro “pão de Deus”, o que continua despertando curiosidade e interesse na multidão que pediu: «Senhor, dá-nos sempre desse pão» (v. 34), assim como a samaritana tinha pedido a água eterna. Ora, os grandes prodígios realizados durante a longa travessia pelo deserto, no contexto do êxodo, eram atribuídos mais a Moisés do que ao próprio Deus, pelo povo. A associação do maná – o pão caído do céu no deserto – a Moisés comprometia sua identificação como prefiguração da Eucaristia, o pão verdadeiro descido do céu porque é o próprio Jesus, na plenitude da sua pessoa. É certo que Deus já tinha dado um pão, o maná, mas o pão verdadeiro que ele tem para dar à humanidade inteira é Jesus. É Deus, o Pai, quem o doa, mas ele é tão parecido com o Pai, que ele mesmo se doa livremente.

Jesus percebeu que o caminho estava preparado para iniciar a sua grande catequese eucarística: «Eu sou o pão da vida. Quem vem a mim não terá mais fome e quem crê em mim nunca mais terá sede» (v. 35). Com a fórmula “Eu sou” (em grego: ἐγώ εἰμι – egô eimí) ele afirma sua condição divina, pois essa é a fórmula clássica de revelação de Deus (Ex 3,6.14). com isso, ele reafirma também a sua superioridade em relação a Moisés. De provedor de pão que alimenta por poucas horas, ele se apresenta como o próprio pão que alimenta para a vida toda. Para a mentalidade semita, o pão significava a própria vida, era símbolo e síntese de todo o necessário para viver. Logo, ao apresentar-se como pão, Jesus se autorrevela fonte de vida em abundância. Aceitar essa revelação implica criar intimidade com ele, deixar-se alimentar pela sua vontade e, consequentemente, ter toda a vida conduzida conforme o seu modo de viver. Aqui está o início do grande discurso eucarístico de Jesus no Quarto Evangelho, o qual será continuado na liturgia dos próximos domingos. A verdadeira explicação do sinal da partilha dos pães começa aqui. É interessante recordar que, apesar de ser o sinal (milagre) mais recordado, pois é narrado seis vezes, o sinal da partilha dos pães é o mais incompreendido. Por isso, João dá a palavra a Jesus para explicá-lo com um longo discurso, o qual será distribuído na liturgia dos próximos três domingos.

Impressiona a pedagogia de Jesus: de uma realidade material e efêmera, o pão partilhado que alimentou a multidão, ele eleva o seu a multidão ao conhecimento de algo muito mais profundo, que é o dom da sua pessoa como enviado do Pai para, nele, o mundo todo ter vida em abundância. Para isso, a comunidade deve tê-lo como único centro e referência a ser seguida. Se a eucaristia dominical, e até diária, não leva a essa centralidade, não passa de uma versão nova do maná comido pelos antigos israelitas no deserto. A eucaristia alimenta para a vida eterna quando seus partícipes aderem à maneira de viver de Jesus. Para concluir, é importante salientar que a catequese eucarística de Jesus no Evangelho de João não é uma relativização da fome de pão material; tanto é que ela vem depois do sinal da partilha (multiplicação). Como necessidade urgente e concreta, o problema da fome foi resolvido primeiro; depois veio a catequese. Isso só reforça que a práxis de Jesus era marcada pelo “fazer e ensinar”, como deve ser na vida da comunidade cristã.