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489, REFLEXÃO PARA O 12º DOMINGO DO TEMPO COMUM – Mc 4,35-41 (Ano B)

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22.06.2024 | 13 minutos de leitura
Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues
Evangelho Dominical
489, REFLEXÃO PARA O 12º DOMINGO DO TEMPO COMUM – Mc 4,35-41 (Ano B)
A liturgia deste décimo segundo domingo do tempo comum prossegue com a leitura semi-contínua do Evangelho de Marcos, como é característico do ciclo litúrgico em curso (ano B). O texto lido hoje – Mc 4,35-41 – é precisamente a continuação daquele do domingo passado (Mc 4,26-34). Naquela ocasião, fora lida a parte conclusiva do discurso em parábolas sobre o Reino de Deus em Marcos, que corresponde ao primeiro ensinamento de Jesus após a constituição da sua nova família, composta por todas as pessoas com disposição para fazer a vontade de Deus, tornando-se, por consequência, mãe, irmãos e irmãs suas (Mc 3,35). Ora, no discurso em parábolas, Jesus evidenciou o mistério paradoxal e complexo do Reino; trata-se de uma realidade tímida, a princípio, mas com grande força transformadora, tanto é que a imagem predominante nas parábolas foi a da semente: o discurso começou com a parábola do semeador (Mc 4,3) e terminou com a do grão de mostarda (Mc 4,30).

A adesão ao projeto de Reino apresentado por Jesus, portanto, exige mudança de mentalidade, passando pela ruptura e emancipação das pessoas em relações às estruturas, esquemas e instituições tradicionais, a começar pela família patriarcal e a religião do templo (Mc 3,20-35). O evangelho de hoje mostra um passo importante dessa ruptura: a travessia do lago de Genesaré, chamado pelos evangelistas de mar da Galileia. Trata-se de um texto de grande importância para o conjunto do Evangelho de Marcos, pois inaugura uma nova fase no ministério libertador de Jesus. É o ponto de partida para a sua missão fora dos limites de Israel, já que a “outra margem”, na linguagem evangélica, significa o mundo pagão. Pode-se dizer, por isso, que é o lançamento das bases de uma verdadeira “Igreja em saída”. Além disso, a “tempestade acalmada” inaugura uma série de quatro milagres de Jesus, concluída com a ressurreição da filha de Jairo (Mc 5,21-43), mostrando que o centro de todo o seu projeto é o triunfo da vida, objetivo da instauração do Reino. Para isso, é necessário vencer todos os obstáculos e impedimentos. Convém recordar, como sempre, que o objetivo do evangelista com o seu relato é ajudar a manter viva a fé de comunidade(s) em crise, seja por perseguição externa seja por divisões ou falta de entusiasmo interno.

Feita a contextualização, olhemos para o texto: «“Naquele dia, ao cair da tarde, Jesus disse a seus discípulos: “Vamos para a outra margem!”» (v. 35). É muito importante quando a versão litúrgica preserva o indicativo temporal do próprio texto, como hoje, o que é raro, sem substituir pela vaga e genérica expressão “naquele tempo”. Portanto, “aquele dia” foi o dia mesmo do discurso em parábolas, proclamado à beira-mar (Mc 4,1). O cair da tarde significa o início; para a mentalidade semita, é também o início de um novo dia, mas não era o momento ideal para começar uma viagem. A noite evoca perigo, conforme a maneira de pensar nos tempos bíblicos, por isso, era o momento de recolher-se em casa, ainda mais para quem tinha passado o dia inteiro ensinando e, por isso, estava cansado, como era o caso de Jesus. Portanto, o mais logico seria esperar o dia amanhecer para recomeçar as atividades. Porém, Jesus faz o contrário, e convida seus discípulos para uma empreitada desafiadora: «Vamos para a outra margem!». Já temos, assim, dois sinais de perigo, logo no primeiro versículo: a noite e o mar, imagens que simbolizam trevas e caos, ao mesmo tempo. Certamente, os discípulos pescadores estavam acostumados a essa realidade, mas nem todos eram pescadores. Além disso, a atividade pesqueira exigia familiaridade com o mar, mas não necessariamente a chegada à outra margem, embora não fosse difícil em termos de praticidade, uma vez que a largura máxima do lago chamado de mar da Galileia era dezesseis quilômetros.

O mar simboliza o caos, como afirmado acima. Para a mentalidade bíblica, era o lugar onde residiam as forças do mal. A outra margem significa o mundo pagão, considerado impuro pela religião judaica. Para um judeu devoto, era um mundo a ser evitado, mas é para esse mundo que Jesus convoca seus discípulos a andarem com ele. O que era evitado pela religião da época, torna-se prioridade na missão de Jesus, como os últimos se tornam primeiro, como indica sua clara opção preferencial pelos pobres e marginalizados. O mar da Galileia representava, então, uma barreira de separação entre o judaísmo e o mundo pagão, mas quebrar barreiras faz parte da missão de Jesus e da comunidade de seus seguidores e seguidoras. Por isso, discípulos obedeceram: «Eles despediram a multidão e levaram Jesus consigo, assim como estava, na barca. Havia ainda outras barcas com ele» (v. 36). Os discípulos despedem a multidão que tinha se reunido para escutar Jesus, que já se encontrava na barca, uma vez que era da barca mesma que ele tinha ensinado durante todo o dia. Portanto, de púlpito improvisado, a barca (em grego: πλοῖον – ploion) se torna a outra imagem privilegiada da comunidade cristã no Evangelho de Marcos, junto com a casa. Enquanto a casa simboliza a vida fraterna, a irmandade, a barca simboliza a missão, o sair de si, a disposição e a coragem de correr perigos pelo Reino. Sem essas duas dimensões – irmandade e missão – não existe comunidade cristã. A menção a outras barcas que estavam com ele pode indicar que estavam num ponto de ancoragem às margens do lago e poderiam até terem sido usadas por pessoas que tinham vindo ao seu encontro, para ouvir seus ensinamentos.

A passagem para a outra margem não acontece sem riscos e perigos, mas é essencial para a comunidade manter-se fiel aos propósitos de Jesus. As turbulências são inevitáveis, pois essa passagem pressupõe um desestabilizar-se. É um sair de si, deixando de lado todo qualquer sinal de comodismo. E é isso o que mostra o texto: «Começou a soprar uma ventania muito forte e as ondas se lançavam dentro da barca, de modo que a barca já começava a se encher» (v. 37). A “ventania muito forte” é a síntese das principais dificuldades da comunidade do evangelista, na época da redação do Evangelho: a perseguição do império romano, sob o reinado de Nero (início dos anos 60 d.C.), a oposição das lideranças do judaísmo, e o medo/comodismo/desânimo dos próprios membros da comunidade. Tudo isso ameaçava a comunidade, tornando-a semelhante a uma barca em alto-mar durante uma tempestade. Surpreende que, durante a tempestade, «Jesus estava na parte de trás, dormindo sobre um travesseiro» (v. 38a). Isso quer dizer que as turbulências da vida, as tempestades pelas quais passa a comunidade cristã não significam ausência de Jesus, mas pode levar as pessoas a não sentirem e nem reconhecerem a sua presença, e o texto visa chamar a atenção dos ouvintes-leitores sobre isso. Ora, o caminhar da Igreja em saída jamais será tranquilo. Pelo contrário, quanto mais a Igreja sair de si mais encontrará oposição e obstáculos, ou seja, ventanias contrárias muito fortes, a começar pelos seus próprios membros que não aceitam passar para as outras margens, onde estão os pobres e as pessoas marginalizadas em todos sentidos. Portanto, a imagem de Jesus dormindo aqui é uma advertência para a comunidade de todos os tempos. Ela corre o risco de negligenciar a presença do Cristo Ressuscitado. Trata-se, portanto, de uma catequese pascal do evangelista para sua comunidade com dificuldade de encontrar o Ressuscitado e reconhecê-lo num momento histórico tão crítico como estavam vivendo.

O sono de Jesus lhe ocasiona uma repreensão pelos discípulos: «Os discípulos o acordaram e disseram: “Mestre, estamos perecendo e tu não te importas?”» (v. 38b). É interessante que, aqui em Marcos, os discípulos não pedem uma intervenção propriamente, mas apenas questionam a aparente indiferença de Jesus. Em Mateus e Lucas, por outro lado, eles fazem um pedido explícito de socorro: “Senhor, salva-nos!” (Mt 8,25; Lc 8,24). Ora, o sono de Jesus não significa indiferença diante dos obstáculos vividos pela comunidade, mas sim que esses são inevitáveis. Faz parte da missão mesma a exposição aos perigos, por isso, não quer dizer que ele esteja ausente quando surgem as adversidades. Não há travessia tranquila. As dificuldades só podem ser vencidas se forem enfrentadas, como Jesus estava ensinando aos discípulos, com a proposta de passar à outra margem. Aos discípulos, estava faltando coragem para enfrentar a travessia. Essa é a primeira vez que os discípulos chamam Jesus de mestre, no Evangelho de Marcos, um dado bastante significativo. Aos poucos os discípulos iam compreendendo a posição de Jesus na comunidade e na vida de cada um, mas de maneira muito tímida, ainda. Reconhecê-lo como mestre já é um passo, mesmo que a motivação tenha sido uma situação desesperadora. Nos momentos mais difíceis da vida, saber com quem se pode contar e a quem se dirigir, já é um meio caminho para a solução.

Diante da pressão dos discípulos, eis que «Ele se levantou e ordenou ao vento e ao mar: “Silêncio! Cala-te!” o vento cessou e houve uma grande calmaria» (v. 39). A intervenção de Jesus se dá unicamente por meio da palavra. O evangelista não relata nenhum gesto, além do levantar-se. A ordem dada é praticamente a mesma quando realiza exorcismos (Mc 1,25). Ao ordenar ao vento, ao mar ou a um espírito impuro que se calem, na verdade Jesus está é advertindo os seus discípulos para que não escutem outras palavras que não sejam as suas. A agitação do vento e do mar, neste episódio, simboliza todas as vozes e barulhos que se opõem ao Evangelho, impedindo-o de ser anunciado ou distorcendo-o. E o que fez o vento e o mar silenciarem foi a Palavra de Jesus, enquanto força humanizante. A comunidade precisa fazer essa Palavra ressoar no mundo, fazendo calar o mal. É claro que o evangelista está reforçando sua catequese de apresentação de Jesus como o Messias, o agente de Deus no mundo para destruir as forças do mal, pelo bem, pelo caminho do amor. De fato, no Antigo Testamento a capacidade de acalmar o mar e as tempestades era um sinal do poder de Deus (Sl 89,10; 106,9; Is 51,9-10). Jesus é, portanto, o agente autorizado de Deus para erradicar o mal do mundo e fazer a vida triunfar em plenitude, missão essa compartilhada com seus seguidores e seguidoras de todos os tempos.

Tendo acalmado a tempestade e o mar por meio de sua palavra que é força de vida, Jesus se dirige também aos discípulos em tom de reprovação: «Então Jesus perguntou aos discípulos: “Por que sois tao medrosos? Ainda não tendes fé?”» (v. 40). Trata-se de uma reprovação muito forte. Inclusive, a tradução mais adequada para o termo grego traduzido aqui como “medrosos” seria covardes (em grego: δειλοί – deiloi). Ora, os discípulos imaginavam que o seguimento e a fé em Jesus os isentassem dos perigos e dificuldades que a vida e a missão comportam. Jesus ensina o contrário; a fé e a confiança na sua Palavra dão forças para superar os obstáculos, ou seja, as tempestades, mas não isentam a comunidade e os discípulos de enfrentá-las. Por isso, o questionamento tão duro: «ainda não tendes fé?». Certamente, esse questionamento impactou a comunidade de Marcos. Tanto é que, para amenizar o tom, Mateus trocou “não tendes fé” por “pouca fé” (Mt 8,26). Para Marcos, no entanto, a fé não permite meios termos: ou se tem, ou não se tem. Aqui, é preciso considerar de novo o contexto literário do texto: segue de imediato ao discurso das parábolas do Reino. Os discípulos tinham acabado de ouvir, não apenas as parábolas, mas também as explicações exclusivas que Jesus dava a eles (Mc 4,10). A covardia, portanto, consistia em não levar a sério as palavras de Jesus, e sem a Palavra não há fé. A semente da Palavra não estava germinando no coração dos discípulos, e sem isso o Reino não se instaura. Daí a dureza de Jesus na correção aos discípulos. É importante recordar que a fé reivindicada por Jesus nesta passagem não significa a confiança em seu poder de operar milagres. Significa a confiança da sua presença na missão, fazendo vencer a covardia e, assim, manter a comunidade sempre alinhada ao seu projeto. Por isso, esta é uma das passagens que melhor demonstra que o contrário da fé, para Jesus, não é a incredulidade, mas a covardia e o medo de assumir as consequências que o Evangelho do Reino implica.

A conclusão, porém, mostra um avanço importante na fé dos discípulos, o que significa uma adesão progressiva ao projeto de Jesus: «Eles sentiram um grande medo e diziam uns aos outros: “Quem é este, a quem até o vento e o mar obedecem?”» (v. 41). Aqui, já não se trata de medo, propriamente, de modo que o termo mais justo para a tradução seria temor. Trata-se do temor reverencial, a postura adequada do ser humano quando reconhece o agir de Deus. Diferentemente do medo, o temor não é o oposto da fé; ele não paralisa a comunidade. Pelo contrário, o temor instiga o ser humano a fortalecer a fé, tornando-a mais convicta, estimula a pessoa a conhecer melhor a vontade de Deus, à medida em que gera espanto, admiração e curiosidade. Nesta passagem específica, o temor se torna um estímulo para os discípulos buscarem compreender melhor a identidade de Jesus, à medida em que se questionam. Ora, como sabemos, todo o Evangelho de Marcos gira em torno da clássica pergunta «Quem é Jesus?». E o questionamento final dos discípulos, «Quem é este…?» é uma das variantes dessa mesma pergunta que é constantemente repetida ao longo do Evangelho, tanto por adeptos quanto por opositores ao projeto de Jesus (Mc 1,27; 2,7; 4,41; 6,2.14; 8,27; 11,27; 14,61-62; 15,31-32). A resposta definitiva só será dada no final do livro, por incrível que pareça, por um centurião romano, o qual reconhecerá que Jesus “era mesmo o Filho de Deus” (Mc 15,39). Até lá, os ouvintes-leitores devem um rico caminho de descobertas. À medida em que se avança nesse percurso, pessoa se humaniza constantemente, liberta-se, emancipa-se, passando a fazer parte da família nova de Jesus, cuja exigência é escutar sua Palavra.

O evangelho de hoje, portanto, é um convite à Igreja para que assuma cada vez mais a sua identidade missionária, reconhecendo que sua razão de existir consiste em estar sempre em estado de saída, mesmo enfrentando obstáculos. É preciso romper barreiras e alcançar as outras margens, compreendendo todas as periferias, existenciais e geográficas. E isso só é possível superando os medos, saindo do comodismo e, acima de tudo, confiando na força da Palavra de Deus, cuja revelação plena é Jesus de Nazaré com sua vida e missão.