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488. REFLEXÃO PARA O 11º DOMINGO DO TEMPO COMUM – Mc 4,26-34 (Ano B)

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15.06.2024 | 14 minutos de leitura
Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues
Evangelho Dominical
488. REFLEXÃO PARA O 11º DOMINGO DO TEMPO COMUM – Mc 4,26-34 (Ano B)
A liturgia deste décimo primeiro domingo do tempo comum continua a leitura do Evangelho de Marcos, mesmo saltando alguns trechos em relação à passagem lida no domingo passado. De fato, o que o ciclo litúrgico propõe para os domingos não é exatamente a leitura dos evangelhos na íntegra, mas uma leitura semi-contínua de um evangelho a cada ano. Logo, ao longo do ano, tanto acontece continuidade imediata quanto alguns saltos, como se percebe entre o domingo passado e hoje. O texto proposto para este dia – Mc 4,26-34 – é composto de duas pequenas e importantes parábolas sobre a realidade misteriosa do Reino de Deus. A primeira parábola apresenta o Reino sendo comparado a uma semente, não especificada, que cresce sozinha; já a segunda compara o Reino a um grão de mostarda. Por conhecer bem a realidade de seus ouvintes, Jesus procurava imagens do cotidiano para ilustrar a sua mensagem, tornando-a acessível e, ao mesmo tempo, procurava diminuir as expectativas triunfalistas dos seus discípulos. Enquanto a primeira parábola é exclusiva do Evangelho de Marcos, a segunda consta também os outros evangelhos sinóticos (Mt 13,31-32; Lc 13,18-19), embora com pequenas modificações, uma vez que cada evangelista procura adaptar o material disponível às necessidades de suas respectivas comunidades.

O quarto capítulo do Evangelho de Marcos é marcado pela presença de uma série de parábolas sobre o Reino de Deus, que visam responder às situações de inquietação e crise vividas pela comunidade dos discípulos de primeira hora, inicialmente, e pela comunidade do próprio evangelista, mais tarde. Apesar de conter menos parábolas, é comparável ao capítulo treze de Mateus e, por isso, também pode ser chamado de “discurso parabólico”. Para compreendê-lo, é necessário recordar que o capítulo terceiro, como vimos no domingo passado (Mc 3,20-35), fora concluído com duas situações de desconforto para Jesus e, consequentemente, para os seus discípulos: a acusação caluniosa dos mestres da Lei (escribas) de que ele estava endemoniado (Mc 3,22-30), e a incompreensão dos seus próprios familiares, imaginando que ele estivesse fora de si, ou seja, louco e, por isso, queriam levá-lo à força, de volta para Nazaré (3,20.31-35). Sem dúvidas, essas situações repercutiram também na vida dos seus discípulos, gerando uma crise na comunidade, pois colocavam em xeque a credibilidade de Jesus como mestre e Messias. Ora, como poderiam levar a sério um Messias “excomungado” pela religião e menosprezado pela família? Tudo isso ocasionou a primeira crise do ministério de Jesus na Galileia, após o aparente sucesso inicial, sobretudo o êxito da “jornada de Cafarnaum (Mc 1,21-39).

Diante dessa situação, é certo que a credibilidade de Jesus e de sua mensagem foram postas em dúvidas pelos seus próprios discípulos. Ora, os primeiros discípulos tinham deixado família, trabalho e bens, pensando em algo melhor para suas vidas, inclusive, esperando sucesso, fama e poder. Aos poucos, iam percebendo que estavam seguindo a uma pessoa que a religião oficial condenava (os mestres da lei o acusaram de estar endemoniado) e nem os seus familiares o levavam a sério. Portannto, poderia não proporcionar o que eles esperavam. Após a empolgação inicial do chamado, as expectativas diminuíam, pois Jesus não apresentava o perfil do Messias esperado. Paralelo às desconfianças dos discípulos, também Jesus percebia as contradições e incompreensões neles: eles sonhavam com poder e força, queriam construir um sistema de dominação semelhante às grandes potências da terra, algo que nada tinha a ver com o seu projeto de Reino, ou seja, o Reino de Deus. A continuidade do Evangelho de Marcos irá mostrar com mais clareza o contraste entre as expectativas dos discípulos e a proposta de Jesus.

Algumas décadas mais tarde, também na comunidade de Marcos surgiram problemas semelhantes. A comunidade era perseguida por todos os lados: pela dominação romana e pelas lideranças do judaísmo, a ponto de parecer diminuir a cada dia, ao invés de crescer, como esperavam que acontecesse. Isso causava desânimo, desconfiança e impaciência, com fortes tendências à desistência, pois não se viam resultados. O anúncio do Evangelho e a forma de vida cristã pareciam não surtir efeitos em meio a tantas hostilidades. O evangelista respondeu à crise da sua comunidade recordando a resposta de Jesus, outrora, aos primeiros discípulos: é necessário ter paciência, humildade e confiança na força da Palavra para fazer o Reino de Deus crescer. As parábolas do Evangelho de hoje são introdução e síntese dessa resposta. É importante recordar que, mesmo tendo a multidão como auditório, o público-alvo das parábolas é sempre o grupo dos discípulos, os quais, no contexto específico do Evangelho de hoje, ainda, ainda confusos com os últimos acontecimentos, e a comunidade cristã de todos os tempos. Com última observação a nível de contexto, é importante recordar que, apesar da crise instalada entre os discípulos, as multidões continuavam se aglomerando em torno de Jesus. O discurso do qual as parábolas de hoje fazem parte foi preferido diante de uma multidão numerosa, e Jesus teve até que improvisar uma barca como púlpito, para poder ensinar (Mc 4,1).

Feitas as considerações a nível de introdução e contexto, iniciamos o estudo do texto propriamente, começando pela primeira parte da primeira parábola: «O Reino de Deus é como quando alguém espalha a semente na terra. Ele vai dormir e acorda, noite e dia, e a semente vai germinando e crescendo, mas ele não sabe como isso acontece» (vv. 26-27). Essa parábola é exclusiva do Evangelho de Marcos e é considerada uma das mais impressionantes do Novo Testamento. Ora, como o Reino de Deus não poderia ser comparado com nenhum sistema de organização social até então experimentado, todos marcados pelo poder e a dominação, Jesus o comparava com elementos da natureza, privilegiando a imagem da semente, também para valorizar as origens camponesas da maior parte do seu auditório. O Reino de Deus (em grego: ἡ βασιλεία τοῦ θεοῦ – hé basileia tú Theú) proposto por Jesus não é um espaço ou uma realidade para depois da morte, mas um projeto de vida e de sociedade para ser implantado já nesse mundo, com novas relações conduzidas pelo amor, a justiça, a solidariedade e a igualdade, sem nenhum sinal de grandeza ou poder. Por isso, requer a humanização do mundo, e é isso que Jesus propõe com sua vida e mensagem. Pode-se dizer, portanto, que o Reino proposto por Jesus é uma alternativa de mundo e sociedade baseado na fraternidade, onde todos são irmãos, irmãs e mães, conforme a conclusão do evangelho do domingo passado (Mc 3,35).

Os discípulos ainda cultivavam a ideologia nacionalista, sonhando com a restauração do reino davídico-salomônico, um projeto de poder que visava a dominação de Israel sobre as outras nações e, por isso, tinham muita dificuldade de aceitar a proposta inovadora de Jesus. Ao comparar com uma semente jogada na terra, Jesus mostra a simplicidade e, ao mesmo tempo, a complexidade do Reino de Deus. Por mais que os discípulos colaborem, afinal são eles que devem lançar a semente, o mérito nunca será deles, mas sempre da força da Palavra, a semente na parábola. Por isso, ele diz que «A terra, por si mesma, produz o fruto: primeiro aparecem as folhas, depois vem a espiga e, por fim, os grãos que enchem a espiga; quando as espigas estão maduras, o homem mete logo a foice, porque o tempo da colheita chegou» (vv. 28-29). A primeira iniciativa para a construção do Reino de Deus é lançar a semente na terra, sem grandes pretensões, o que não significa dar pouca importância. É claro que é importante pensar nos frutos. Mas a terra e a semente possuem dinâmicas próprias que independem do trabalho do agricultor. Assim é o Reino, ele também possui uma dinâmica própria que ultrapassa nossos esquemas. O processo de desenvolvimento da semente é próprio e autônomo, não pode ser manipulado por ninguém, como é pessoal a acolhida da Palavra em cada coração. É claro a parábola reflete as técnicas agrícolas da época, muito rudimentares em comparação às atuais. Na época, era inimaginável a manipulação das sementes e da terra.

E a terra na parábola é a consciência e o coração de cada pessoa que recebe o anúncio da Palavra. Se a semente é jogada na terra, essa produz fruto por si mesma. Há uma fase da semeadura que não está ao alcance do agricultor: o desenvolvimento da semente debaixo da terra. Trata-se de algo invisível e misterioso que requer paciência e cuidado. Por mais competente que seja o agricultor, a qualidade dos frutos será sempre mérito da semente. Assim é a Palavra na vida das pessoas: a comunidade não pode cobrar respostas imediatas, nem moldar as pessoas; cada um e cada uma tem seu jeito próprio de fazer a Palavra germinar dentro de si e frutificar depois. Por isso, é necessário respeitar as diversas etapas do processo. À comunidade, cabe a paciência e o discernimento para reconhecer o tempo de plantar e o tempo de colher. É importante recordar que a primeira parábola deste capítulo quarto de Marcos foi a parábola do semeador (Mc 4,1-9), saltada pela liturgia, mas bastante conhecida. Nela, é enfatizada a diversidade de terrenos. Portanto, mesmo sabendo que “a terra, por si mesma, produz fruto”, não se pode esquecer que cada terreno tem sua própria dinâmica. Os frutos colhidos não serão os mesmos em todos os terrenos. Por isso, nesta primeira parábola de hoje fala-se apenas de semente, sem especificar o tipo de fruto ou de grão que será colhido, tampouco sobre a diversidade de terrenos.

Ao continuar sua apresentação do Reino de Deus, Jesus interage com o seu auditório, com uma pergunta retórica para prender a atenção dos ouvintes. Talvez, tenha até percebido reações negativas diante da parábola anterior ou se sentido incompreendido. Eis então, a pergunta: «E Jesus continuou: “Com que mais poderemos comparar o Reino de Deus? Que parábola usaremos para representá-lo?”» (v. 30). A impressão é que ele parecia não saber mais o que dizer sobre o Reino, parecia estar até com sua imaginação esgotada, provavelmente como consequência da crise instalada, como foi recordado na introdução. É importante reforçar que o Reino de Deus é indescritível porque ainda não foi completamente experimentado, por isso, só pode ser comparado, jamais descrito. E o gênero literário da parábola (em grego: παραβολῇ – parabolê) significa exatamente isso: comparação, analogia; é a explicação de uma realidade desconhecida tomando uma imagem conhecida como comparação. O cuidado em comparar o Reino com realidades pequenas e insignificantes funciona como advertência aos discípulos para não alimentarem sonhos de grandeza. Também indica o quanto o Reino de Deus está ao alcance de todos; ele é construído no dia-a-dia, a partir de coisas simples e quase invisíveis, enquanto os “reinos deste mundo” eram edificados por meio de guerras, violência e exploração.  

Após a pergunta, eis que Jesus apresentou a parábola conclusiva da série: «O Reino de Deus é como um grão de mostarda que, ao ser semeado na terra, é a menor de todas as sementes da terra» (v. 31). Com essa parábola, Jesus responde aos projetos de grandeza e poder alimentados pelos seus discípulos de outrora e pela comunidade cristã em todos os tempos, a começar pela comunidade do evangelista. Ora, diante da força e poderio do império romano e da estrutura da religião judaica, com sinagogas espalhadas em todos os lugares, o projeto de Jesus era praticamente invisível e parecia não causar efeito algum no mundo. Para os discípulos, alguns movidos por ambições pessoais (Mc 10,35-45), era difícil compreender e aceitar aquela situação. Por isso, Jesus apresentou essa parábola, e o evangelista recordou à sua comunidade, lembrando a importância de aceitar e acreditar na força do que é pequeno. Ora, grão de mostarda era o menor grão conhecido até então. Com essa imagem, Jesus afirma que a comunidade precisa aceitar a condição de pequenez em que se encontra, e deve reconhecer essa pequenez como necessidade para compreender a dinâmica do Reino. Esse, o Reino, não pode impor-se por sinais de grandeza nem de espetáculo.

O importante é que seja cultivado, mesmo como uma semente pequena, e colocar-se no mundo para servir, como acontece com o grão de mostarda: «Quando é semeado, cresce e se torna maior do que todas as hortaliças, e estende ramos tão grandes, que os pássaros do céu podem abrigar-se à sua sombra» (v. 32). Mesmo em seu máximo crescimento, a planta que brota de um grão de mostarda é sempre uma hortaliça, alcançando no máximo três metros de altura; jamais será uma árvore imponente, nem atraente pela beleza. Contudo, apesar não chegar a ser uma grande árvore, é clara a diferença entre a pequena semente e o resultado final: a maior das hortaliças. É essa realidade paradoxal que o evangelista quer destacar. Por meio dele, ele ensina que a força transformadora da Palavra é incontestável. A comunidade cristã não pode almejar triunfos nem apoteoses; como embrião do Reino de Deus, ela deve ter somente a pretensão de servir: oferecer sombra e abrigo para quem necessitar, como o pé de mostarda abriga os pássaros com seus ninhos, apesar de ser pequena em relação a outras árvores. Mesmo em seu máximo desenvolvimento e cumprimento, o Reino de Deus será, aparentemente, sempre tímido, porque não pode ser edificado sob os mesmos alicerces dos “reinos deste mundo”. Ora, os reinos deste mundo se destacavam visivelmente pelo esplendor dos palácios, pelos carros de guerra, a multidão dos exércitos, etc. No Reino de Deus, o que menos importa é a aparência, e assim deve ser a comunidade cristã. O que deve preocupar os seguidores e seguidoras de Jesus é se, de fato, estão sendo sombra e abrigo para os mais necessitados, mesmo no anonimato e na simplicidade. Comparada aos decretos imperiais e às leis religiosas impostas pelos escribas, a pregação simples de Jesus parecia insignificante.

A sequência de parábolas é concluída com um importante e sintético enunciado: «Jesus anunciava a Palavra usando muitas parábolas como estas, conforme eles podiam compreender. E só lhes falava por meio de parábolas, mas, quando estava sozinho com os discípulos, explicava tudo» (vv. 33-34). A primeira informação relevante do enunciado é que os evangelhos escritos contêm apenas algumas das “muitas parábolas” contadas por Jesus. A pregação do Nazareno foi bem mais ampla, indo muito além daquilo que os evangelistas conseguiram resgatar. Como bom mestre, Jesus falava conforme a capacidade de entendimento das pessoas que estavam ao seu redor, seja para revelar os mistérios do Reino, seja para ocultá-los, a depender das circunstâncias. Ele sabia ler os sinais dos tempos e adaptar-se às diferentes realidades, como devem fazer as comunidades de hoje. O evangelista distingue os discípulos das multidões: «quando estava sozinho com os discípulos, explicava tudo». Com essa distinção, ele não pretende criar uma classe de privilegiados, mas acentua a responsabilidade de ser discípulo e discípula. Não basta ouvir uma vez aleatoriamente o anúncio; é necessário sentar com Jesus e ruminar a sua palavra para, de fato, ela frutificar na vida de cada um. O evangelista não via a multidão como uma massa excluída e anônima, em oposição ao privilégio dos discípulos, mas como uma primeira etapa do discipulado. A Palavra que ecoa no meio da multidão, de modo tímido e anônimo, é capaz de germinar, crescer e frutificar, gerando assim novos discípulos e discípulas para o Reino.

Com essas duas parábolas, de modo brilhante, Jesus respondeu aos questionamentos gerados pela crise entre os discípulos, e Marcos resgatou-as para responder também a uma situação semelhante de crise na sua comunidade. Certamente, essa resposta é válida para todos os momentos da história. O Reino de Deus, como um mundo de justiça, amor, solidariedade, fraternidade e igualdade, não surgirá repentinamente; é uma realidade misteriosa, dinâmica e lenta, que exige paciência e humildade em sua edificação. Além de paciência, humildade e discernimento, a sua construção exige, sobretudo, confiança na força transformadora da Palavra. O Evangelho de hoje é um convite ao resgate dessa confiança.