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203. Reflexão para o 3º Domingo da Quaresma – Jo 2,13-25 (Ano B)

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06.03.2021 | 10 minutos de leitura
Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues
Evangelho Dominical
203. Reflexão para o 3º Domingo da Quaresma – Jo 2,13-25 (Ano B)
A liturgia inicia hoje uma sequência de três domingos em que o texto evangélico será tirado do Evangelho segundo João. Para hoje, o primeiro domingo da sequência, o texto proposto é Jo 2,13-25, o relato do episódio conhecido como “purificação do templo”, um título considerado hoje como inadequado, tendo em vista o significado e os desdobramentos do gesto de Jesus. Ora, o texto indica que suas intenções não eram propriamente purificar, mas abolir aquele templo de pedras, suprimindo o culto mercantilizado que ali se praticava e, finalmente, edificar a morada permanente de Deus na terra: o próprio ser humano, com sua integridade e dignidade recuperadas. Isso é garantido pelo próprio Jesus com a doação plena de si, passando pela cruz e ressurreição, tornando a vida em abundância acessível a todo o gênero humano.

Alguns elementos do contexto são essenciais para uma boa compreensão do texto. De início, recordamos que esse é um dos poucos episódios da vida de Jesus narrado pelos quatro evangelistas. Não resta dúvidas de que esse dado atesta a importância do episódio e a alta probabilidade de corresponder a um fato real da vida de Jesus, o que não o isenta de ser revestido de elementos simbólicos pelos evangelistas, conforme as necessidades catequéticas de suas respectivas comunidades. Chama a atenção a localização do episódio no Quarto Evangelho: logo no começo do livro e, por conseguinte, no início do ministério de Jesus, enquanto nos sinóticos aparece já na parte final (Mt 21,12-16; Mc 11,15-19; Lc 19,45-46). Ora, João apresenta Jesus participando de três festas de Páscoa, em Jerusalém, enquanto nos sinóticos registra-se apenas uma participação, na qual ele fora condenado e morto.

A nível de contexto, o mais importante, porém, é associar este episódio ao relato que lhe precede no Evangelho: as bodas de Caná (Jo 2,1-12). A transformação da água em vinho, ali, representou a passagem da Lei para o amor, da letra para o Espírito, antecipando a substituição da antiga pela nova aliança. E assim como não combina “vinho novo em odres velhos” (Mt 9,14-17; Mc 2,18-22; Lc 5,33-39), também não combina aliança nova e culto antigo. Por isso, após inaugurar a nova aliança, Jesus parte para instaurar um novo culto, e isso exigia a supressão do antigo em sua máxima expressão visível: o magnífico templo de Jerusalém. Foi por causa dessa relação que João transferiu esse episódio para o início do ministério de Jesus, adequando as tradições recebidas às suas intenções teológicas e catequéticas, as quais refletem a necessidade da sua comunidade. Portanto, conforme a dinâmica narrativa e teológica do Evangelho de João, o texto de hoje é o complemento das bodas de Caná. Aquele culto mercantilizado e separado da vida não permitia que se sentisse o sabor do novo vinho: o amor do Pai manifestado no Filho. Logo, as bodas de Caná e o episódio lido hoje constituem a introdução síntese de todo o programa de Jesus, que visa estabelecer uma nova maneira de relacionamento entre Deus e a humanidade.

Olhemos, então para o texto: “Estava próxima a Páscoa dos judeus e Jesus subiu a Jerusalém” (v. 13).  Com a expressão “páscoa dos judeus” o evangelista já faz uma importante advertência: aquela Páscoa já não pertencia mais a Deus, tinha perdido a sua sacralidade; era uma Páscoa dos homens, era apenas uma festa religiosa, na qual Deus já não era mais o centro. É importante recordar que, ao longo do seu Evangelho, João usa o termo “judeus” para designar a hierarquia religiosa, e não o povo judeu em si, ao qual pertencia Jesus e as primeiras gerações de seus seguidores e seguidoras. Com isso ele diz que a classe dirigente da religião sediada no templo tinha se apoderado do que é de Deus e, portanto, a comunidade dos seguidores e seguidoras de Jesus deveria distanciar-se daquela instituição. A Páscoa do Senhor tinha sido desvirtuada, transformada em Páscoa dos sacerdotes, dos comerciantes e cambistas. Logo, não era mais de Deus.

Jesus se enfurece porque no espaço mais sagrado de Israel não encontrou o que deveria encontrar: “No Templo, encontrou os vendedores de bois, ovelhas e pombas e os cambistas que estavam aí sentados” (v. 14). O que deveria ser encontrado no templo era pessoas de coração sincero, adoradores e adoradoras de Deus. Nesse versículo está o retrato de uma religião degenerada, transformada em mercado. Os animais mencionados, bois, ovelhas e pombas, eram comercializados no recinto sagrado para serem oferecidos em sacrifícios pelos pecados do povo, que a própria religião determinava. A variedade de animais, de bois a pombas, quer dizer que nenhuma classe social escapava, ou seja, ricos e pobres, aproximando-se do templo, eram praticamente obrigados a compactuar com o sistema, comprando animais para oferecer em sacrifício. A presença dos cambistas evidencia, ainda mais, o completo desvirtuamento do templo: o sistema econômico funcionava sob as bênçãos da religião; banco e altar conviviam em harmonia no mesmo lugar.

A situação encontrada por Jesus no templo era inaceitável. Por isso, sua atitude foi bastante drástica: “Fez então um chicote de cordas e expulsou todos do Templo, junto com as ovelhas e os bois; espalhou as moedas e derrubou as mesas dos cambistas” (v. 15). João é o evangelista que mais enfatiza a postura furiosa de Jesus; somente ele faz referência ao chicote de cordas. Mais do que a descrição de um gesto, o evangelista quer evidenciar a postura e o sentimento de Jesus diante de uma religião exploradora. A comercialização do sagrado, independentemente da época e do lugar, deixa Jesus enfurecido, inconformado. Com esse gesto ele propõe que toda estrutura de exploração deve ser desestabilizada, destruída, ainda mais quando essa se apoia no nome de Deus. Esse gesto se configura também como uma ação simbólica típica dos profetas do Antigo Testamento. Porém, em relação ao culto, os profetas ousaram denunciar com palavras (Is 1,10-20; Am 5,21-23), enquanto Jesus foi muito além, passando das palavras à ação.

Das categorias de vendedores, o evangelista faz questão de destacar uma delas: “E disse aos que vendiam pombas: “Tirai isso daqui! Não façais da casa de meu Pai uma casa de comércio!”  (v. 16). Ora, as pombas eram a matéria do sacrifício que os pobres ofereciam; por isso, a ordem é severa “tirai isso daqui!”; como em qualquer sistema injusto, eram os pobres os mais afetados pela exploração. Quem comprava as ovelhas e bois eram os peregrinos mais abastados; também eles eram explorados, mas Jesus tem mais urgência em combater a exploração dos pobres. Por isso, os primeiros comerciantes denunciados diretamente foram aqueles que vendiam para os pobres. Custava para Jesus ver a casa do Pai transformada em comércio e, consequentemente, Deus transformado em mercadoria e, mais ainda, os pobres sendo as verdadeiras vítimas sacrificadas. Por isso, a solução ali não seria purificar o templo, mas suprimi-lo.

A motivação para Jesus agir dessa forma é muito clara: o zelo pela casa do Pai (v. 17), como diz o evangelista, e que seus discípulos se recordaram. De fato, toda a ação de Jesus em seu ministério, e mais ainda na perspectiva de João, será motivada pelo incansável zelo pelas coisas do Pai, sobretudo pelo ser humano que tinha sua dignidade roubada por um sistema injusto e explorador. O “zelo pela casa” significa muito mais do que uma preocupação cultual; expressa seu amor pelo ser humano, morada privilegiada de Deus. Ele foi tão “consumido” por esse zelo, a ponto de sido condenado por isso. De fato, o processo que será movido contra ele pelas autoridades políticas e religiosas da época, será consequência de suas opções radicais em favor daquilo que o Pai deseja: amor, justiça, fraternidade, dignidade, misericórdia e paz para todo o gênero humano.

Diante do que viam, e inconformados, “os judeus perguntaram a Jesus: “Que sinal nos mostras para agir assim?” (v.18). Aqui novamente a expressão “os judeus” significa os dirigentes, os quais não aceitavam ser questionados, pois isso implicava em perda de credibilidade e de privilégios. Pediam sinais, ou seja, credenciais que autorizassem Jesus a agir daquela maneira. Jesus poderia reivindicar a seu favor o pensamento de tantos profetas que ao longo da história já tinham identificado aquele culto como obstáculo para o encontro com o Pai (Is 1,10-20). Mas preferiu falar do futuro, das realidades novas que estavam para ser inauguradas: a supressão definitiva daquele falso culto, o qual estava com os dias contados, e sua ressurreição como instauração definitivo do novo culto, verdadeiro e sincero: “Destruí este Templo, e em três dias eu o levantarei” (v. 19).

O culto autêntico, compatível com a nova aliança celebrada no amor, já não necessita de templos de pedras, mas apenas de corações sinceros que busquem e adorem a Deus em espírito e em verdade, como Jesus dirá posteriormente, no encontro com a mulher samaritana (Jo 4,23). Aquele templo de pedras, imponente e faraônico, ao invés de aproximar, distanciava as pessoas de Deus; por isso, deveria ser destruído. Enquanto isso, um templo novo e definitivo estava para ser inaugurado, graças à ressurreição de Jesus (vv. 21-22), como vitória definitiva da vida sobre a morte. Com isso, a vida em plenitude, o culto por excelência agradável a Deus, se torna acessível a toda a humanidade, sem mais a necessidade de sangue de animais e ofertas, mas a partir do coração de cada um.

Os sinais e gestos proféticos de Jesus chamavam a atenção, obviamente, afinal muitos em Israel esperavam por um Messias corajoso para reformar a religião e a vida social do país. Por isso, muitos “creram nele” (v. 23); porém, não basta crer com palavras, é necessário viver à sua maneira, e como Jesus conhecia o ser humano por dentro, percebia quando havia conversão verdadeira ou não (vv. 24-25). Pelas exigências radicais para o seguimento de Jesus, o cristianismo não comporta adesão superficial. Por isso, as comunidades cristãs, em todas as épocas, não devem se entusiasmarem com multidões: “muitos creram no seu nome, mas Jesus nãos lhes dava crédito, pois ele conhecia a todos” (vv. 23-24). A religião da superficialidade era aquela que Jesus quis abolir.

A comunidade joanina compreendeu a novidade de Jesus porque soube associar as palavras aos fatos, os sinais realizados por ele às Escrituras. Era uma comunidade que lia os acontecimentos do cotidiano à luz do que Jesus dizia e fazia (vv. 21-22), por isso, tornou-se modelo para as comunidades de todos os tempos. Como cristãos de hoje, somos chamados a olhar o exemplo daquela comunidade em busca do devido equilíbrio entre a liturgia e a vida, de modo que reine o amor e, no amor entre os irmãos e irmãs, seja revelado o corpo do Ressuscitado e o rosto do Pai.