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516. REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DA SAGRADA FAMÍLIA – Lc 2,41-52 (Ano C)

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27.12.2024 | 14 minutos de leitura
Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues
Evangelho Dominical
516. REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DA SAGRADA FAMÍLIA – Lc 2,41-52 (Ano C)
Na continuidade da oitava de natal, a Igreja celebra hoje a festa da Sagrada Família: Jesus Maria e José. Por isso, o evangelho proposto pela liturgia é Lc 2,41-52, trecho que narra o episódio conhecido popularmente como “a perda e o reencontro de Jesus no templo de Jerusalém”, quando tinha doze anos. Esse é o último episódio da primeira parte do Evangelho segundo Lucas, conhecida como “Evangelho da Infância” (Lc 1 – 2), o que reforça ainda mais a sua importância, pois funciona como transição entre a infância e a vida pública de Jesus; nessa transição, o evangelista antecipa muitos aspectos importantes de sua teologia. Por isso, o objetivo de Lucas, ao narrar este episódio, não é apresentar um tratado sobre a família, mas mostrar elementos do cotidiano de Jesus, compreendendo seus costumes, o ambiente em que foi criado com suas tradições e, sobretudo, como ele sempre esteve atento “às coisas do Pai” sem, no entanto, negar a sua condição humana. Se o objetivo do evangelista fosse simplesmente apresentar o retrato de uma família perfeita, certamente teria contado a história de outra maneira, omitindo alguns elementos do relato atual.

Como se sabe, entre os evangelhos canônicos, o de Lucas é um dos mais tardios, escrito provavelmente fora da Palestina. O autor convivia com um cristianismo muito entusiasta do anúncio do Cristo Ressuscitado e glorioso, a ponto de quase esquecer que, mesmo sendo o Filho de Deus, Jesus de Nazaré foi um ser humano, nascido de uma mulher e crescido em uma família normal, conforme as condições e os costumes da época. Por isso, seu evangelho é aquele que mais fala da infância de Jesus e da convivência com seus pais, a fim de recordar aos seus leitores que ele viveu como uma pessoa normal, como, de fato, era. Para apresentá-lo inserido na cultura e na tradição do seu povo, o evangelista apresenta seus pais como fiéis devotos judeus; por isso, diz que «iam todos os anos a Jerusalém, para a festa da Páscoa» (v. 41). Conforme a Lei, os judeus adultos tinham a obrigação de ir a Jerusalém para as três grandes festas anuais: Páscoa, a festa das tendas e Pentecostes (Dt 16,16). Por causa disso, essas festas eram chamadas popularmente de “festas dos pés” porém, esse preceito era obrigatório apenas para as pessoas adultas e do sexo masculino. Também as mulheres com filhos pequenos tinham permissão de abster-se de participar. A afirmação sobe a peregrinação anual da família completa de Jesus  comporta, portanto, um certo exagero do evangelista, o que pode ser compreendido também como um atestado da sua carência de conhecimento de sobre alguns costumes judaicos, uma vez que se trata de um autor que viveu e estudou fora da Palestina. Além disso, quando escreveu o seu evangelho esses costumes já não existiam mais, pois Jerusalém e seu magnífico templo já tinha sido destruídos há mais de dez anos. De todo modo, ele quis mostrar o quanto pois os pais de Jesus eram fiéis observantes e cumpridores dos preceitos religiosos de então. 

E Lucas ainda mostra os pais de Jesus antecipando as obrigações do filho: «Quando ele completou doze anos, subiram para a festa, como de costume» (v. 42). Também aqui parece haver um pequeno equívoco da parte do evangelista, o que é bastante compreensível, devido ao desuso desse costume na sua época. Ora, a idade mínima exigida para que o filho homem começasse a participar publicamente da vida religiosa era treze anos; essa era a idade que um judeu do sexo masculino era considerado maior de idade e, por isso, recebia a obrigação de ler a Torá. Talvez, o evangelista apresenta a precocidade de Jesus até para contrastá-lo com as outras crianças da época, mostrando que ele era portador de traços diferenciados. A festa inteira da Páscoa durava uma semana, mas raramente os peregrinos pobres passavam todos os sete dias em Jerusalém; geralmente, passavam dois ou três dias e voltavam; o importante era passar pela cidade santa naquele período, independentemente da duração da estadia. Contudo, o  evangelista parece reforçar a piedade de José e Maria, fazendo supor que eles passaram todo o período da festa em Jerusalém, mas ao mesmo tempo mostra uma grande falta de atenção para com o filho: «Passados os dias da Páscoa, começaram a viagem de volta, mas o menino Jesus ficou em Jerusalém, sem que seus pais o notassem» (v. 43). É importante salientar que, se o objetivo do evangelista fosse apresentar uma crônica exata dos acontecimentos e a exemplaridade do casal, certamente teria omitido esse detalhe.

Durante a Páscoa, a população de Jerusalém praticamente triplicava com a grande quantidade de peregrinos que por lá passavam, tornando a cidade quase intransitável, o que exigia muito cuidado dos pais para com os filhos, para que não se perdessem. Somente pais muito desatentos iniciariam a viagem de volta sem dar-se conta do sumiço de um filho. E o evangelista ainda diz mais: «Pensando que ele estivesse na caravana, caminharam um dia inteiro. Depois começaram a procurá-lo entre os parentes e conhecidos» (v. 44). Aqui, o evangelista emprega uma palavra rara e de grande relevância para a reflexão teológica atual da palavra: synodia (συνοδίᾳ), traduzida como caravana. Trata-se do termo mais próximo a sínodo em todo o Novo Testamento, etimologicamente, e essa é a única ocorrência. A caravana, portanto, pode ser empregada como uma boa imagem da Igreja: pessoas que caminham juntas, na mesma direção, mantendo as diferenças que são peculiares a cada uma. Em caravana, o caminho se torna mais seguro; enquanto caminham, as pessoas interagem, se conhecem melhor, as crianças brincam. Era costume, nas caravanas, que as crianças e as mulheres caminhassem à frente dos homens; porém, qualquer mãe atenta se certificaria da presença de um filho antes de iniciar uma viagem longa e perigosa como aquela de Jerusalém para Nazaré. Somente depois de um dia inteiro de caminhada, foi que os pais de Jesus, «não o tendo encontrado, voltaram para Jerusalém à sua procura» (v. 45). Supõem-se que já estivessem bastante longe, após um dia inteiro de caminho; porém, o interesse do evangelista é teológico e catequético e, como sabemos, o movimento e o colocar-se em caminho é um tema muito caro para Lucas, do início ao fim de sua dupla obra (Evangelho e Atos dos Apóstolos). Assim, de um acontecimento aparentemente trágico, o evangelista aproveita para antecipar um dos temas prediletos de sua obra: o caminho, o movimento de ir e vir, como traço característica da sua teologia, prefigurando um ideal de Igreja.

O evangelista quer ensinar também que o encontro autêntico com Jesus é consequência de uma busca que todas as pessoas devem fazer, independente do grau de parentesco com ele. Nas comunidades do evangelista havia muitas pessoas seguras em si mesmas, fechadas em suas convicções, e outras muito vulneráveis e sem ânimo para acolher a boa nova; diante disso, Lucas insiste que é necessário buscar sempre o Senhor, pois ele não é posse de ninguém, como não foi sequer da sua família biológica. Até mesmo quem conviveu com ele, como seus pais, tiveram que procurá-lo e só o encontravam depois de um certo esforço: «Três dias depois, o encontraram no Templo. Estava sentado no meio dos mestres, escutando e fazendo perguntas» (v. 46). Com essa cena, o evangelista antecipa o drama da comunidade dos discípulos na próxima vez em que Jesus for a Jerusalém para celebrar também a Páscoa: após o drama da paixão, só o reencontrarão no terceiro dia, já ressuscitado, e isso depois de muita inquietação, como a das mulheres diante do sepulcro vazio (Lc 24,1-5) e dos discípulos de Emaús, no caminho (Lc 24,13ss). Assim, o evangelista reforça ainda mais, para a sua comunidade, a continuidade entre Jesus de Nazaré, o filho de Maria e José, e o Senhor ressuscitado. Também é importante recordar que a área do templo reservada para o ensinamento era o pórtico, precisamente o pórtico de Salomão, em homenagem ao grande rei e patrono da sabedoria em Israel. Certamente, era nesta área que Jesus se encontrava em meio aos mestres e doutores, escutando e fazendo perguntas. Ao dizer que Jesus estava no meio, o evangelista recorda que ele estava como protagonista. Mais tarde, Lucas vai situar o ensinamento dos apóstolos também no pórtico de Salomão, deixando clara a continuidade.

É claro que chama a atenção o local e o contexto em que os pais de Jesus o encontraram: no templo, interagindo com os mestres da Lei e conhecedores das Escrituras. Além dos mestres, os interlocutores diretos, supõem-se que havia também um público considerável, composto de peregrinos, assistindo ao debate entre o adolescente e os mestres: «Todos os que ouviam o menino estavam maravilhados com sua inteligência e suas respostas» (v. 47). Durante as festas, era normal que os mestres rabinos se apresentassem com seus discípulos, exibindo conhecimento e domínio da Lei entre as colunas do templo, muitas vezes apenas para chamar a atenção dos peregrinos; porém, eles iam com perguntas e respostas previamente ensaiadas entre os discípulos, para evitar constrangimentos. Como Jesus era muito novo e não fazia parte de nenhuma escola, a sua desenvoltura chamava a atenção de todos. Nesse aspecto também, há uma antecipação da sua futura atuação: o curto ministério em Jerusalém, na semana da paixão, será marcado por discussões doutrinais com os mestres da Lei, escribas e sacerdotes (Lc 20 – 21), tanto nos átrios quanto nos arredores do templo. Portanto, vai ficando cada vez mais claro que a ida de Jesus ainda adolescente para a festa da Páscoa antecipa a sua verdadeira Páscoa, aquela na qual ele se fez cordeiro, quando morreu na cruz e ressuscitou ao terceiro dia. Por sinal, a expressão “terceiro dia” ou “três dias depois”, em toda a Bíblia, é sempre um dado teológico, que indica o agir salvífico de Deus, muito mais do que uma anotação cronológica. 

Diante de uma cena como aquela: um menino de Nazaré, uma aldeia pobre e distante, discutindo com a elite intelectual do judaísmo, quem mais tinha motivos para se admirar eram os seus próprios pais, como afirma o evangelista: «Ao vê-lo, seus pais ficaram muito admirados e sua mãe lhe disse: “Meu filho, por que agiste assim conosco? Olha que teu pai e eu estávamos, angustiados, à tua procura”» (v. 48). Na perspectiva de Lucas, Maria é quem assume a liderança da família, dando protagonismo à mulher. Os pais se admiram, mas é a mulher, a mãe, quem intervém. Além da admiração com a cena inusitada, a mãe repreende o filho pela situação desagradável e preocupação que fez ela e o pai passarem. A admiração é acompanhada de vergonha, pois parecia tratar-se de um filho rebelde, fora dos padrões da época. Ao mostrar a incompreensão dos pais, aqui, o evangelista antecipa que não será fácil também para os discípulos compreenderem Jesus com suas opções e seu estilo de vido. Desde o início, bem antes mesmo de inaugurar o seu ministério, Jesus já provoca reviravolta na história, estabelecendo uma inversão de papeis. A aceitação e a compreensão da pessoa de Jesus e sua mensagem é sempre um processo longo. No início, os pais, durante a vida pública, os discípulos, todos têm dificuldade de compreender Jesus. Como se vê, na fala atribuída a Maria, revela-se uma quase não aceitação do jeito do filho se comportar: “por que agiste assim conosco?”. Era como se seus pais se sentissem traídos pelo filho. 

Em resposta à reação de seus pais e às repreensões da mãe, Lucas faz Jesus falar pela primeira vez em seu evangelho: «Jesus respondeu: “Por que me procuráveis? Não sabeis que devo estar na casa de meu Pai?”» (v. 49). Caso se tratasse da crônica descritiva de um modelo de família, certamente, também essa resposta de Jesus teria sido omitida. Em público, diante dos mestres e dos demais ouvintes, ele responde à mãe como um adolescente meio rebelde e malcriado. Uma criança obediente, apenas baixaria a cabeça e, se respondesse, seria com um pedido de desculpas aos pais pela preocupação e o constrangimento causados. Essa resposta, no entanto, consiste na primeira revelação que Jesus faz de sua identidade. Ora, até então, sua identidade divina tinha sido revelada pelo anjo (1,28-35; 2,10), por Isabel (1,42-43), por Zacarias (1,67-79) por Ana e Simeão (2,25-40); dessa vez, foi o próprio Jesus quem falou de si. É claro que ele não dispensa seus pais terrenos, certamente ele os amou intensamente, mas afirma que é a Deus que deve obedecer e fazer a sua vontade. Na verdade, Jesus não fala em “casa do Pai”, como consta na tradução litúrgica, mas em “coisas do Pai”; até porque, no futuro, ele defenderá a destruição do templo, ao constatar que fora transformado em casa de comércio e covil de bandidos. Em resposta à sua mãe, ele diz que deve estar tratando “do que é do Pai”, provavelmente contestando a doutrina dos mestres da Lei que ofuscava a identidade do seu Pai, marcada pelo amor e a misericórdia. É interessante notar que tanto nas primeiras quanto nas últimas falas de Jesus ele faz referências ao Pai, de quem é o verdadeiro revelador. Aqui, ele afirma seu dever de tratar das coisas do Pai; morrendo na cruz, ele entrega o espírito ao Pai (Lc 23,46); na ascensão, ele promete enviar o Espírito prometido pelo Pai (Lc 24,49). Toda a sua vida foi marcada pelo cuidado de revelar ao mundo o rosto do Pai misericordioso. Por isso, ele foi causa de contradição para muitos em Israel, como profetizou Simeão (Lc 2,34), inclusive para seu pais terrenos.

Em relação aos seus pais, Maria e José, é claro que «Eles, porém, não compreenderam as palavras que lhes dissera» (v. 50), mas Maria se antecipa, mais uma vez, como modelo de discípula, mesmo sem compreender. Eles não compreenderam apenas as palavras, mas todo o acontecimento, sobretudo, porque se trata de uma primeira antecipação da Páscoa de Jesus. Tudo o que estava acontecendo era novo, como será tudo novo no domingo da ressurreição, o que deixará as mulheres, os discípulos de Emaús e os Onze sem compreender, de início. Apesar de não compreender o jeito de ser de Jesus, «Sua mãe porém, conservava no coração todas estas coisas» (v. 51b). Para ser verdadeiro discípulo ou discípula, o mais importante não é a compreensão, mas a disposição e a capacidade de conservar no coração aquilo que é essencial: a fé, a confiança em Deus e a disponibilidade para o serviço, mesmo sem compreender. A compreensão se dá com o tempo. Por isso, Maria é sempre imagem e modelo de discípula e discípulo. O que ela não compreendia no momento, guardava no coração, o que significa meditar, refletir. As incompreensões de momento não faziam ela desistir. O que ela conservava não era apenas as palavras, mas todas as coisas: as palavras, os acontecimentos e o jeito de ser de Jesus, enfim, era o conjunto da obra. E, mais uma vez, o evangelista reforça a inserção e pertença de Jesus à sua família: «Jesus desceu então com seus pais para Nazaré, e era-lhes obediente» (v. 51a), mostrando que isso não o impedia de ser também o Filho de Deus; por isso, sintetiza o seu crescimento nas duas dimensões, a humana e a divina: «E Jesus crescia em sabedoria, estatura e graça, diante de Deus e diante dos homens» (v. 52). Uma dimensão, que mais tarde a teologia vai tratar como “natureza”, não anula a outra. Lucas quis mostrar para a sua comunidade que desde o início da sua vida, Jesus foi verdadeiro Deus e verdadeiro homem.

Que este tempo do natal e, sobretudo, esta solenidade nos ajude a aprender a cuidar e tratar somente das coisas do Pai, como Jesus, e a conservar tudo no coração, mesmo sem compreender tudo, como fez Maria, sua mãe e primeira discípula.
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