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515. REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DO ADVENTO – Lc 1,39-45 (Ano C)

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21.12.2024 | 12 minutos de leitura
Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues
Evangelho Dominical
515. REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DO ADVENTO – Lc 1,39-45 (Ano C)
À medida em que o Natal do Senhor se aproxima, a preparação para a sua plena vivência, proposta pelo tempo do advento, se torna mais intensa.. Nesse sentido, é importante evidenciar os personagens humanos que Deus escolheu para intermediarem a transição entre as duas etapas da história da salvação: a antiga, baseada na Lei e na expectativa do cumprimento de tantas promessas, e a nova, fundada em Jesus, o Cristo, nascido de Maria, ápice da comunicação entre Deus e a humanidade, e cumprimento das antigas promessas de salvação. Enquanto no domingo passado a liturgia destacava a figura de João – aquele que batizava – e os efeitos de sua pregação, o evangelho de hoje – Lucas 1,39-45 – destaca o encontro e o papel de duas mulheres na história da salvação – Maria e Isabel –, evidenciando cada vez mais as preferências e opções de Deus pelo que aparenta ser mais frágil e desprezado, como era vista a mulher na época da cena narrada no evangelho. Lucas quer mostrar que, para transformar o mundo, Deus não chama os grandes e poderosos, e sim os/as humildes e pequenos(a); a escolha de Maria para ser mãe de seu Filho, não por suas qualidades, e sim pela sua pequenez e simplicidade, é a maior demonstração, e o evangelho de hoje nos ajuda a perceber isso, ao colocar duas simples mulheres frente a frente, como as primeiras a compreender e perceber o início de uma nova história e de um mundo novo.

O texto – Lucas 1,39-45 – narra o episódio tradicionalmente chamado de “visitação”. Se trata de uma passagem bastante conhecida, muito utilizada nas solenidades e festas marianas. Muitas vezes, à leitura desse texto é acrescentado o Magnificat (Lc 1,46-56), que faz parte do mesmo episódio. Hoje, especificamente, a liturgia utiliza apenas os versículos que tratam da apressada viagem de Maria e o seu encontro com Isabel (vv. 39-45), omitindo o cântico. Esse é o episódio que sucede de imediato ao anúncio do anjo; é importante perceber a relação entre as duas cenas para melhor compreender o texto de hoje. Com o anúncio do anjo, Maria ficou espantada, e com razão (Lc 1,29), afinal, aquela história  parecia absurda: como ela poderia ser mãe sem ter ainda se relacionado com o prometido esposo? À primeira vista, o anúncio do anjo representou uma tragédia para Maria, colocando em risco seu futuro matrimônio, uma vez que ela já estava comprometida com José, e a gravidez precoce poderia acabar o relacionamento. Por isso, corajosamente, ela questionou o mensageiro divino, pedindo-lhe explicação (Lc 1,34). E o próprio anjo tratou de tranquilizá-la, mostrando que tudo aquilo que estava acontecendo era iniciativa do Deus que faz coisas impossíveis, agindo contra a lógica humana. E o anjo ainda lhe deu um exemplo: Isabel, uma mulher anciã e estéril já estava no sexto mês de gravidez (Lc 1,3-37). Esse exemplo parece ter ajudado a convencer Maria de que também nela poderia acontecer algo de maravilhoso e fora dos padrões e esquemas tradicionais; por isso, respondeu ela sim ao anjo, tomando uma decisão corajosa e ousada. Com efeito, na época, a mulher não tinha poder de decisão sobre nada; sendo solteira, deveria consultar o pai ou o irmão mais velho, antes de qualquer decisão; sendo casada, consultava o marido. A decisão livre de Maria, sozinha, sem ter um homem que decidisse por ela, representa um grande passo para o protagonismo da mulher na história, que Lucas introduz em seu Evangelho. E esse protagonismo é evidenciado de maneira privilegiada no evangelho de hoje, ao colocar duas mulheres como protagonistas da cena.

O texto começa afirmando que «Naqueles dias, Maria partiu para a região montanhosa, dirigindo apressadamente, a uma cidade da Judeia» (v. 39). O indicativo temporal “naqueles dias” revela a relação e a continuidade deste episódio com o anteriores, na trama narrativa de Lucas; quer dizer que, pouco depois da anunciação do anjo, “Maria partiu”. O texto não diz quais foram os motivos da partida de Maria; muitos interpretam como a vontade de Maria colocar-se a serviço do próximo, no caso, da sua parenta Isabel; porém, o texto não evidencia nem sinaliza para isso. O destino também é vago e genérico: “a uma cidade da Judeia”, na “região montanhosa”. Partir, sair de si “apressadamente”, é a postura de quem acolhe a salvação oferecida por Deus, postura essa assumida por Maria. Dizer sim aos propósitos de Deus, como ela fez, é deixar-se transformar pela sua Palavra. Quem sente a ação de Deus em sua vida, põe-se em marcha, não permanece na mesma posição, nem com a mesma mentalidade; é isso que o evangelista quer destacar. Como a gravidez de Isabel foi colocada pelo anjo como exemplo de que nada é impossível para Deus, a viagem de Maria pode também ser interpretada como expressão da sua curiosidade e vontade de comprovar a autenticidade do anúncio. Além disso, há uma clara intenção de Lucas de colocar as duas mães juntas: a jovem e a anciã, a virgem e a estéril, reforçando que, nas contradições da história, Deus se manifesta; colocando juntas as mães, também os filhos se encontram, os protagonistas implícitos da cena.

Ao apresentar Maria em viagem, Lucas antecipa um dos temas mais fortes da sua teologia: o caminho, como figura da dinâmica do Reino e da Palavra de Deus. Desde essa visita de Maria até a chegada de Paulo prisioneiro em Roma (At 28), Lucas faz de sua dupla obra – Evangelho e Atos dos Apóstolos – um longo itinerário da Palavra. Com isso, ele mostra que, mesmo encontrando obstáculos, a Palavra não pode ficar presa em nenhuma estrutura; ela deve ecoar sempre. Maria se torna, assim, modelo antecipado do discipulado que Jesus começará a formar logo no início da sua vida pública. É também imagem do modelo da Igreja querida por Jesus e tão bem apresentada por Lucas: uma Igreja em saída, ou seja, em estado permanente de missão. O evangelista não perde tempo descrevendo a viagem, e logo diz que Maria chegou ao destino: «Entrou na casa de Zacarias e cumprimentou Isabel» (v. 40). De fato, o objetivo de Lucas é mostrar a chegada da Boa-Nova e com os seus efeitos. Zacarias, o esposo de Isabel, foi o primeiro destinatário do anúncio do anjo (Lc 1,8-23), mas não acreditou, por isso aqui é um personagem secundário. É recordado apenas como o dono da casa. O que o evangelista quer mostrar é a experiência de fé das duas mulheres sendo partilhada.  A fé transformadora vivida por cada uma delas não poderia ficar oculta, por isso Lucas coloca as duas frente a frente; e essa fé, quando partilhada, cresce e se fortalece, como mostra a sequência do texto: a companhia de Maria faz aumentar as convicções da fé de Isabel e, consequentemente, de Maria, culminando no Magnificat (Lc 1,46-56), a sua explosão de louvor a Deus.

O evangelista não revela o conteúdo da saudação de Maria, mas certamente foi o tradicional shalom hebraico, saudação típica do povo judeu, no qual se expressa a totalidade dos bens messiânicos. Como modelo de discípulo e discípula, Maria antecipa o que Jesus pedirá aos seus discípulos quando enviá-los, mais tarde: «Em qualquer casa em que entrardes, dizei primeiro: paz para esta casa» (Lc 10,5). Essa saudação não é um mero palavreado, mas é comunicação de vida, doação de amor e de energia transformadora. Por isso, o evangelista diz que «Quando Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança pulou no seu ventre e Isabel ficou cheia do Espírito Santo» (v. 41). Mãe e filho, ambos repletos do Espírito Santo, reagem, cada um à sua maneira e conforme as suas possibilidades, à chegada do Salvador que Maria já carregava em si: o filho pulando no ventre e a mãe com palavras, tornando-se verdadeira profetisa. Com efeito, tanto Isabel quanto a criança em seu ventre reconhecem que é o Senhor quem, por meio de sua mãe, está os visitando. Isso ela mesma vai expressar com palavras, na sequência do texto, agindo como profetisa e plenamente reconhecedora das maravilhas de Deus realizadas para ela e Maria.

De fato, após a saudação de Maria, o evangelista dá a palavra a Isabel que faz grandes declarações de fé e alegria diante de tudo o que estava contemplando em sua vida, e com razão. Ora, como Zacarias tinha ficado mudo, devido à sua incredulidade diante do anúncio do anjo (Lc 1,20), Isabel já não tinha com quem dialogar sobre os últimos acontecimentos; precisava de alguém que lhe ouvisse, por isso, é só ela quem fala na cena: «Com grande grito, exclamou: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre! Logo que a tua saudação chegou aos meus ouvidos, a criança pulou de alegria em meu ventre. Como posso merecer que a mãe do meu Senhor me venha visitar? Bem-aventurada aquela que acreditou, porque será cumprido o que o Senhor lhe prometeu”» (vv. 42-45). Inspirada no Antigo Testamento, Isabel expressa a imensa alegria de ser contemplada com os favores de Deus, principalmente a misericórdia. A sua anterior condição de estéril era motivo de vergonha e humilhação; provavelmente, ninguém no povoado lhe dirigia a palavra, a não ser com insultos, e ninguém a escutava, pois, devido à esterilidade, ela era considerada amaldiçoada. O menino concebido em seu ventre provoca um verdadeiro êxodo em sua vida, transformando-a em mulher livre, com vez e voz, para expressar seus anseios e alegrias. Tudo o que ela diz de Maria e do fruto do seu ventre – Jesus – serve de lição para a humanidade inteira, em todos os tempos: não basta que aconteça a visita do Senhor, é necessário que aqueles que recebem a visita o reconheçam. E o Senhor não para de visitar o seu povo.

Lucas constrói o discurso de Isabel recorrendo ao Antigo Testamento para mostrar, sobretudo, o cumprimento das antigas promessas, e o começo da distinção entre João Batista e Jesus. A primeira declaração é também a primeira bem-aventurança do Evangelho de Lucas; as bem-aventuranças proclamadas por Jesus serão expressão do retrato ideal do seu discipulado; aqui, Maria é, antecipadamente, proclamada a discípula ideal. Ora, a missão do discípulo e discípula de Jesus consiste em torná-lo presente onde quer que o discípulo esteja. Por isso, Isabel reconhece Maria como a primeira bem-aventurada, pois ela já era portadora da salvação e do Salvador, antes mesmo do nascimento da criança. Na época, quem interpretava os sinais de Deus na história eram os sacerdotes e mestres da Lei. Aqui, Lucas apresenta uma verdadeira reviravolta na história, ao mostrar uma mulher, até pouco tempo vista como amaldiçoada, devido à esterilidade, percebendo e interpretando os sinais de Deus presentes, não mais nas estruturas faraônicas do templo, mas na simplicidade de outra humilde mulher. E, já consciente de ser a mãe do precursor, e feliz por isso, Isabel reconhece que Maria é a mãe do Senhor, reconhecendo-se até indigna de recebê-la. Ora, como estéril, Isabel era vista como esquecida por Deus; de repente, cheia do Espírito Santo, se reconhece como hospedeira do Senhor, presente ainda no ventre de sua mãe, Maria. É o começo de uma nova história. É a expressão dos(a) humildes que reconhecem reciprocamente suas forças, seus valores e seu poder de transformação quando se dispõem a viver conforme a Palavra de Deus.

A expressão de Isabel, sentindo-se indigna de receber a mãe do seu Senhor recorda a declaração de Davi, quando estava para receber a arca da aliança em sua casa: «Como virá a Arca de Iahweh para minha casa?» (2 Sm 6,9). Com isso, Lucas declara Maria como a nova arca da aliança, mas muito superior à antiga. Na antiga arca, estava a Lei escrita em tábuas de pedra, enquanto em Maria estava o próprio autor da Lei, não mais escrita em pedras, mas no coração, cujo efeito sobre o povo já não é o medo, mas a irradiação do amor e da misericórdia de Deus. E Isabel identifica o motivo da bem-aventurança de Maria, enquanto nova arca da aliança, e o que a habilita como modelo de discípula: a fé, pois é «Bem-aventurada aquela que acreditou». Essa declaração é muito importante! Talvez a mais relevante de todo o texto! O que Isabel identifica como excepcional em Maria não é a virgindade ou a prática de “bons costumes”, mas a fé. De fato, o texto bíblico, sobretudo o Evangelho de Lucas, aquele que mais fala sobre Maria, não apresenta um currículo da sua vida como atrativo para o chamado de Deus; apenas a descreve como alguém que foi agraciada por Deus e, diante disso, respondeu sim, deu uma adesão de fé. E, como mostra a Bíblia, Deus costuma escolher o que é historicamente rejeitado, excluído, humilhado, sem o mínimo poder de atração do ponto de vista humano. De fato, o que conta para Deus é a abertura ao seu projeto libertador. Maria abraçou esse projeto, por isso foi proclamada bem-aventurada. Bem-aventurança é a característica distintiva das pessoas preferidas de Deus, como o próprio Jesus irá proclamar: pobres, famintos, humildes e perseguidos (Lc 5,20-23). Maria é síntese de tudo isso. Por isso, é síntese e modelo da discípula e do discípulo ideal. 

Quem adere ao projeto libertador de Deus carrega em si Jesus, por onde passa faz ele nascer. Que este tempo do advento recorde à Igreja que esta é a sua missão originária. Fazer Jesus nascer em cada coração é missão da Igreja e caminho de humanização para o mundo. Acolhendo o Deus que se faz humano, o humano se humaniza, verdadeiramente. E, quanto mais humano for o ser humano, mais parecido com Deus ele se torna.
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