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493. REFLEXÃO PARA O 16º DOMINGO DO TEMPO COMUM – Mc 6,30-34 (Ano B)

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20.07.2024 | 14 minutos de leitura
Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues
Evangelho Dominical
493. REFLEXÃO PARA O 16º DOMINGO DO TEMPO COMUM – Mc 6,30-34 (Ano B)
Neste décimo sexto domingo do tempo comum, o evangelho proposto pela liturgia é Marcos 6,30-34. Trata-se de um texto bastante curto, mas muito significativo. Está em continuidade direta com aquele lido no domingo passado (Mc 6,7-13), mesmo havendo um intervalo de dezesseis versículos entre os dois textos, saltados pela liturgia (Mc 6,14-29). O episódio narrado no trecho lido no domingo passado correspondia ao envio missionário dos Doze discípulos-apóstolos, dois a dois, por Jesus, que lhes conferiu autoridade para que fizessem o mesmo que ele já fazia. O texto de hoje refere-se ao retorno da missão. E, ao retornar da missão, os discípulos se reúnem com Jesus para lhe contar tudo o que tinha acontecido na missão, ou seja, para partilhar com o mestre toda a experiência vivenciada. Entre o envio e o retorno dos discípulos, o evangelista narra dois episódios, que correspondem aos versículos saltados pela liturgia, como acenamos acima. Trata-se do questionamento de Herodes sobre a identidade de Jesus (Mc 6,14-16), e do relato da morte de João Batista (Mc 6,17-29).

Como a fama de Jesus já tinha se espalhado bastante, devido aos prodígios realizados e aos efeitos da sua pregação, o povo começou a confundi-lo com grandes profetas, como Elias e João Batista. Essa confusão parece ter perdurado bastante tempo, como será evidenciada novamente no episódio da confissão de Pedro, em Cesaréia de Filipe (Mc 8,27-30). Imaginava-se que Jesus fosse um profeta que tivesse ressuscitado. Isso chegou ao conhecimento de Herodes, que ficou preocupado. De fato, a atuação de um profeta é sempre motivo de preocupação para qualquer tirano. E como João Batista tinha sido morto a mando de Herodes, o boato de que ele teria ressuscitado deve tê-lo deixado apreensivo. Diante disso, o evangelista narra o martírio de João, instigando seus leitores a pensarem nas consequências da missão, enquanto supõe-se que os discípulos de Jesus estavam espalhados pela Galileia, em missão.

Ainda a nível de contexto, é importante recordar o episódio que vem depois do texto lido hoje: a multiplicação (condivisão/partilha) dos pães e dos peixes (Mc 6,30-44). Esse acontecimento é um desdobramento do episódio de hoje, o que deveria ser o evangelho do próximo domingo, mas a liturgia do ano B o substituiu pela versão do Quarto Evangelho (Jo 6,1-15). Por sinal, a partir do próximo domingo, inicia-se uma série de cinco domingos de leitura do Evangelho de João, uma vez que, naquele Evangelho, o episódio da partilha dos pães é seguido de um amplo discurso, no qual Jesus se apresenta como pão vivo e alimento verdadeiro para todas as pessoas. É imprescindível recordar a relação entre os dois episódios na dinâmica narrativa de Marcos, pois assim se percebe melhor que alimentar as pessoas famintas e preocupar-se com elas faz constitui uma dimensão essencial do seguimento de Jesus.

Feita a contextualização, olhemos então para o texto de hoje, o qual começa afirmando que «Os apóstolos reuniram-se com Jesus e contaram tudo o que haviam feito e ensinado» (v. 30). Logo neste primeiro versículo, identificamos a continuidade entre evangelho de hoje e o do domingo passado: os apóstolos retornam da missão e contam tudo a Jesus. Essa é a única vez em que Marcos usa o termo apóstolos (em grego ἀπόστολος), cujo significado literal é enviado. Logo, não se trata de um título, mas de uma dimensão do discipulado, conforme o relato da constituição do grupo dos Doze: «E constituiu Doze, para estarem com ele, e para enviá-los a pregar, com autoridade para expulsar os demônios» (Mc 3,14). Estar com Jesus e ser enviado é, portanto, a síntese do discipulado. Por isso, é importante a ênfase que o evangelista dá à reunião dos discípulos-apóstolos com Jesus, logo após o retorno da missão. E como aquela tinha sido a primeira experiência de missão, certamente tinham muito o que contar sobre o que tinham feito e ensinado. Tudo o que fizeram foi à maneira de Jesus, conforme as instruções recebidas. E tudo o que Jesus fazia e ensinava visava à libertação do ser humano, em todos os sentidos. Seus ensinamentos não era conhecimento teórico de caráter doutrinal, mas princípio de humanização.

O evangelista recorda esse fato com muito interesse para a sua comunidade. Nas idas e vindas da vida e da missão, é necessário fazer paradas para estar com Jesus e confrontar com ele o que se faz e o que se prega. É preciso contar tudo a ele. Não se trata de uma prestação de contas, nem de autopromoção ou propaganda. É preciso estar com ele e contar-lhe tudo para aprofundar as convicções e corrigir as eventuais incoerências. Daí, a necessidade da conversão contínua. Provavelmente, como era a do próprio Jesus, a missão dos discípulos também deve ter sido marcada pelas situações paradoxais, previstas nas recomendações do envio: acolhida e rejeição, fé e incredulidade, elogio e difamação (Mc 6,7-13). Os verbos “Fazer e ensinar” constituem uma expressão que sintetiza a missão de Jesus (At 1,1); significa que sua práxis consiste em obras e palavras. Aplicada aos discípulos, quer dizer que eles estavam em sintonia com Jesus, reproduzindo o seu agir no mundo e, consequentemente, recebendo acolhida e rejeição, como ele.

Os discípulos, enquanto apóstolos, voltaram cansados e Jesus sentiu a necessidade do descanso para eles. Ora, assim como era intensa a missão de Jesus, deveria ter sido também a dos seus discípulos. Por isso, «ele lhes disse: “vinde sozinhos para um lugar deserto e descansai um pouco”» (v. 31a). É interessante notar a humanidade de Jesus: ele percebe o cansaço físico dos discípulos e reconhece a necessidade do descanso. Com isso, o evangelista adverte a comunidade para não cair no ativismo desenfreado que pode se tornar prejudicial. É necessário equilíbrio. E o descanso proposto por Jesus não é um mero lazer, mas um aprofundamento nas convicções da vocação e da missão. É uma espécie de retiro. Por isso, ele convida-os para ir a um lugar deserto. Como se sabe, na linguagem bíblica, o lugar deserto é propício para o encontro com Deus. Aqui, o descanso dos discípulos no deserto significa, além do necessário e importante repouso físico, a meditação das palavras de Jesus, a oração e a necessidade de renovar constantemente as convicções. O convite para que os discípulos fossem sozinhos, separando-se por um tempo das multidões, indica o aspecto formativo desse retirar-se. Sempre que Jesus os convida para estarem sozinhos com ele quer dizer quer queria também ensiná-los.

Apesar da necessidade, não era fácil para Jesus e nem para os discípulos reservarem um momento de descanso e retirada em um lugar deserto, para estarem sozinhos, pois «havia, de fato, tanta gente chegando e saindo que não tinham tempo nem para comer» (v. 31b). Essa é a segunda vez que o evangelista afirma que a presença das multidões ao redor de Jesus e dos discípulos os impediam até mesmo de comer; a primeira vez, foi na casa, em Cafarnaum, logo após a constituição dos Doze (3,20), no episódio dos conflitos com os familiares e os escribas. Isso evidencia a intensidade do seu “fazer e ensinar”, e revela que ele não ignorava as pessoas com suas necessidades, o que lhe custava muitas renúncias. Porém, a necessidade do descanso dos discípulos e o tempo para “ficarem sozinhos” com ele é indispensável, e a comunidade cristã precisa ser ensinada a sentir a necessidade desses momentos. Por isso, ele insistiu, como afirma o evangelista: «Então foram sozinhos, de barco, para um lugar deserto e afastado» (v. 32). Como se vê, o evangelista faz questão de mostrar a insistência de Jesus com o descanso dos discípulos, sobretudo ao ressaltar o fluxo constante de pessoas ao redor. Se apesar desse fluxo ele se retira com os discípulos, isso quer dizer que esse retirar-se era mesmo imprescindível.

A experiência do lugar deserto é indispensável ao longo da caminhada, mesmo que não seja prolongada, tendo em vista às necessidades das pessoas. Na tradição profética, o deserto é o lugar onde “Deus fala ao coração” (Os 2,16), por isso é imprescindível para a comunidade fazer constantemente essa experiência. É importante ressaltar que, ao insistir com a ida ao lugar deserto, Jesus não estava fugindo do povo, nem induzindo os discípulos a fazerem o mesmo; pelo contrário, estava ressaltando a necessidade de aprofundar a experiência de Deus em suas vidas para compreenderem melhor as necessidades do povo e, assim, servi-lo cada vez melhor. Essa insistência pela ida ao lugar deserto serve também de preparação para o episódio seguinte, que é a partilha dos pães (Mc 6,35-44). Se antes, apenas com a pregação de Jesus, mesmo sofrendo rejeição em alguns lugares, as multidões já se aglomeravam ao seu redor (Mc 2,1; 3,9.20; 4,1; 5,21), muito mais agora com a sua mensagem ampliada pela missão dos doze apóstolos. Com isso, tornava-se cada vez mais difícil encontrar o tempo necessário para a experiência importante do lugar deserto.

Enquanto Jesus e os discípulos partiram de barco, o evangelista diz que «muitos os viram partir e reconheceram que eram eles. Saindo de todas as cidades, correram a pé, e chegaram lá antes deles» (v. 33). A busca das multidões por Jesus parece ter sido muito intensa, como recorda o evangelista constantemente. Isso mostra a carência de vida no povo e, ao mesmo tempo, a esperança que Jesus transmitia. Certamente, a maioria eram pessoas marginalizadas pela religião e a sociedade, pessoas sem vez e sem voz que se sentiam acolhidas, consoladas e encorajadas pela mensagem de Jesus. Eram mulheres, enfermos, pecadores públicos, pobres; pessoas que tinham sido descartadas pelo sistema. Ao saber que Jesus inclui a todos e todas, essas pessoas não queriam perder a oportunidade de encontrar-se com ele. É isso o que justifica a pressa das pessoas, a ponto de chegarem ao local antes mesmo que ele e os discípulos. A princípio, parece um exagero do evangelista dizer que pessoas a pé chegaram antes de quem ia de barco, no entanto, a depender da direção do vento, era muito comum, sobretudo porque os itinerários de Jesus com seus discípulos eram já conhecidos.

O descanso dos discípulos parecia um direito sagrado, reconhecido pelo próprio Jesus, ao insistir tanto com a ida ao lugar deserto. Mas nada é mais sagrado do que a vida e nada é mais urgente do que o cuidado com a vida, sobretudo para Jesus, um verdadeiro mestre de humanização. Por isso, diz o evangelista que, ao chegar no deserto e ver a multidão, ele reconheceu uma prioridade maior: «ao desembarcar, Jesus viu numerosa multidão e teve compaixão, porque eram como ovelhas sem pastor. Começou, pois, a ensinar-lhes muitas coisas» (v. 34). Embora irrenunciável, a experiência do encontro no lugar deserto não pode se sobrepor às necessidades concretas das pessoas, principalmente das mais vulneráveis. Essa cena, portanto, não pode ser ignorada pela comunidade que tem acesso ao Evangelho, hoje e em todos os tempos. O evangelista Marcos é muito econômico nas palavras: só utiliza a palavra compaixão em quatro ocasiões (1,41; 6,34; 8,2; 9,22) que são situações de extrema necessidade. Vale a pena recordar que compaixão significa misericórdia; portanto, sentir compaixão quer dizer ter misericórdia. No Novo Testamento, é a tradução de um verbo grego que, literalmente, significa “contorcer as entranhas” (em grego: σπλαγχνίζομαι – splanknizomai). Em Marcos, esse verbo sempre tem Jesus como sujeito. Ao invés de envaidecer-se com o aparente sucesso, pois as multidões o buscavam incansavelmente, Jesus sente compaixão delas. Ele sente o amor profundo e máximo de Deus, que nasce das entranhas, por isso, comparável somente ao amor materno.

As entranhas são o núcleo mais profundo e íntimo do ser humano; é algo mais profundo do que o próprio coração, sede dos pensamentos e dos sentimentos para a mentalidade semita. Todo coração pode conter amor, mas o amor de uma mãe é sempre mais intenso, pois brota de uma realidade mais profunda do que o coração: as entranhas. Por isso, é a imagem que representa o amor de Deus pela humanidade. Sentir compaixão é sentir dor por causa da dor do outro. No Antigo Testamento, a compaixão/misericórdia sempre foi a resposta de Deus às necessidades do seu povo. Na pessoa de Jesus, o Verbo de Deus feito carne, a misericórdia também se fez carne, pois constitui a essência da sua pessoa. E o que fazia Jesus contorcer-se por dentro era a situação em que o povo se encontrava: «estavam como ovelhas sem pastor». Essa comparação reflete a situação de extremo abandono e exploração em que se encontravam as multidões que iam ao seu encontro, e revela, ao mesmo tempo, a corrupção e hipocrisia dos dirigentes, tanto religiosos quanto políticos, a causa principal daquela situação. A imagem da ovelha é sinônimo de mansidão e vulnerabilidade; a ausência de um pastor que a conduza e proteja significa exposição aos perigos. A ausência de pastores que cuidem da multidão é uma nítida crítica aos dirigentes religiosos, principalmente. Antes de Jesus, os profetas já tinham denunciado essa situação, principalmente Jeremias e Ezequiel, que viveram um dos momentos mais dramáticos da história de Israel (Ez 34,23-24; Ez 37,22.24; Jr 3,15; 23,4). Jesus se encontra com um problema que já se arrastava há séculos; poderia até ter “naturalizado” a situação, como muitos fizeram e fazem. Mas ele não aceitou como normal o sofrimento das pessoas, nem a exclusão, nem a fome. Logo, nenhuma situação de abandono, de dignidade ferida pode ser ignorada ou tratada como normal pelos seguidores e seguidoras de Jesus.

O plano de Jesus retirar-se para um lugar deserto com seus discípulos e ali descansarem foi alterado porque havia uma necessidade muito mais urgente: cuidar das pessoas que estavam “como ovelhas sem pastor”, ou seja, exploradas e abandonadas pelos sistemas dominantes da época: a religião oficial judaica e o império romano. Assim como fez Jesus, também deve fazer a comunidade cristã em todos os tempos: ser flexível com seus programas, diante das situações que exigem ações concretas e urgentes. A necessidade da multidão fez Jesus alterar seu programa. Por isso, ele «Começou, pois, a ensinar-lhes muitas coisas». É importante perceber que o primeiro fruto da compaixão de Jesus é o ensino (em grego: διδασκαλία – didaskalia); isso porque sua Palavra liberta, humaniza. E o seu ensinamento consistia no anúncio do Reino de Deus, que comporta a construção de um mundo novo já aqui, sem exploração, sem discriminação, sem fome, sem desigualdades. É um ensinamento emancipatório que denuncia e desmente os discursos oficiais do império e da religião oficial, que naturalizavam o sofrimento das pessoas. O ensinamento de Jesus não era a exposição de uma doutrina, mas consistia em palavras de vida, de encorajamento para a superação da situação degradante em que o povo se encontrava. É um ensinamento universal, serve para todas as situações e lugares. Ele já tinha ensinado nas sinagogas (cf. 6,2), na casa (cf. Mc 3,20), na praia (cf. Mc 4,1), e agora ensina também no deserto. Isso quer dizer que em todos os ambientes a mensagem libertadora de Jesus deve ecoar, para gerar vida e libertação, e eliminar preconceitos e exclusões.

Embora curto, o Evangelho de hoje é bastante rico, como se vê, conforme o que acabamos de refletir. Percebemos que, enquanto comunidade enviada por Jesus, é sempre necessário estar com ele e confrontar o “fazer” e o “ensinar” com aquilo que o Evangelho propõe. A comunidade não pode medir esforços nem pôr obstáculos diante daquilo que é essencial, sobretudo o cuidado com as pessoas mais necessitadas. Também não deve elaborar programas, fazer planejamentos, se esses não estiverem em sintonia com a situação concreta das pessoas. Se uma regra básica para o seguimento de Jesus é a disponibilidade para o serviço, as necessidades do próximo devem estar sempre em primeiro lugar, mesmo que sejam necessárias renúncias e sacrifícios para isso, como Jesus sacrificou o descanso dos discípulos que tinham acabado de chegar da missão, porque viu uma necessidade maior: o cuidado com as pessoas necessitadas.