Evangelho DominicalVersículos Bíblicos
 
 
 
 
 

222. Falso dilema

Ler do Início
27.04.2020 | 8 minutos de leitura
Solange Maria do Carmo
Crônicas
222. Falso dilema

“Em dia de sábado, o que é permitido:


fazer o bem ou o mal, salvar uma vida ou matar?” (Mc 3,4)


 


“Todo dia é dia de fazer o bem.


É dia de fazer amigos
sem querer mal a ninguém!”

(Orione Silva e Solange Carmo - cantiga de catequese).



Seguimos em plena pandemia da covid-19. A novidade do isolamento social imposto pelo alto contágio do vírus traz estranhezas para todos. Diante da crise, nem sempre sabemos o que fazer. Uns se recolhem em casa, cheios de temor e de cuidados consigo e com os demais, conforme recomendam as autoridades sanitárias. Outros ignoram o perigo – por necessidade ou por perversão – e vivem como se nada estivesse acontecendo. O lema desses é: “seja o que Deus quiser”. Não é de hoje que Deus leva a culpa de nossas fraquezas. No relato das origens, quando a mulher fora tentada, Deus levou a culpa. Segundo a serpente, ele impusera aos humanos o interdito de não comer o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Puro narcisismo divino, que não admitia competição: não queria que os humanos se tornassem deuses. O povo hebreu, em pleno século VI aC, já conhecia bem as debilidades humanas e registrou-as com fineza poética. Um mundo de metáforas aparece no texto para dizer de nossas finitudes e de nossa incapacidade de assumi-las.


E assim vamos: uns culpando Deus, outros o diabo; uns culpando a China, outros os Estados Unidos; uns culpando o capitalismo, outros o comunismo... Certo é que a pandemia se alastra, se agrava e os dilemas ganham força. Muitos óbitos, muitos contaminados pelo vírus; falência do sistema de saúde, caos no sistema funerário. Comércios fechados, patrões desesperados por verem o caixa vazio; pessoas desempregadas, falta de pão na mesa de muitos brasileiros. O que fazer? Com a crise vêm os impasses. As decisões não são fáceis. Como nunca vivemos coisa igual, não nos preparamos para enfrentar as adversidades impostas pela pandemia. Então, vamos ensaiando soluções: errando aqui, acertando lá...


De todos os dilemas, o mais propalado nas mídias é este: salvar vidas ou salvar a economia do país? O ministro da economia, Paulo Guedes, tem cansado de tocar nesse assunto. E não só ele: políticos, empresários, trabalhadores... Mais uma vez nos dividimos em dois grupos distintos e frontalmente opostos. A polarização nacional fica mais clarividente na crise. De um lado, os empresários temem a falência do país. Segundo eles, os estragos econômicos matam mais que o vírus. De outro, humanistas e líderes populares temem a morte de milhões de brasileiros. Entendem que primeiro é preciso salvar a vida; depois recuperar a economia.


Como não reinventamos a roda, vamos aos antepassados aprender um pouco. Para quem tem fé, os Evangelhos são um prato cheio de sabedoria ofertado gratuitamente. E não é que esse dilema já estava lá, posto entre os fariseus, defensores ardorosos da Lei judaica, e Jesus, defensor dos fracos?Não existia covid-19 naquele tempo, mas nota-se uma típica situação de exploração dos subalternizados e de cerceamento da liberdade, que não é muito diferente do momento atual. O judaísmo, com seus preceitos religiosos, ensinava a guardar o sábado. Nesse dia, podia se fazer muito pouca coisa; quase nada mesmo. Havia uma lista de 1521 verbos proibitivos para o sétimo dia. Até o número de passos eram contados (cf. At 1,12). Assim, os judeus ficaram escravos da lei sabática, impregnados de culpa por não cumpri-la e necessitados de ritos e ofertas para voltar à pureza propalada. Ainda bem que havia a liturgia! Mas não. Infelizmente, também essa era escravizante e cheia de interditos. Servia de desculpa para explorar o povo, inclusive financeiramente. Entre a cruz e a espada, o povo seguia ora indiferente ao ensino das autoridades religiosas, ora preocupado com sua sorte.


E Jesus? Os evangelistas são coesos em afirmar que Jesus de Nazaré, um judeu do seu tempo, desdenhou a lei de guardar o sábado na configuração que ela havia adquirido. Não se trata de ser contra um dia de descanso, um dia para se fazer o que gosta, para rezar e celebrar, para cuidar da família, dos amigos e de si mesmo. Não! Acontece que a lei do sábado tinha perdido seu foco, sua função primava.


Vejamos! Os biblistas são concordes que a lei de guardar o sábado surgiu tardiamente na vida dos hebreus. No tempo do deserto, da posse da Terra Prometida etc., não havia espaço para tal legalidade. Provavelmente o preceito do sábado é oriundo da experiência do exílio. Tendo sido levados para a Babilônia com a finalidade de trabalhar e enriquecer o país, de construir uma suntuosa capital para os caldeus, o povo exilado percebeu que era preciso demarcar sua identidade e defender seus direitos. Eles não podiam trabalhar todos os dias, como as outras pessoas. O Deus da vida a quem adoravam não compactuava como o sistema econômico legitimado por credos que permitiam a exploração dos pobres. Veio então o preceito “guardarás o sábado” (Dt 5,12-14), juntamente com outros nove, conhecidos como “os dez mandamentos”(Dt 5,7-21).


Ao formular o preceito sabático, o povo exilado tomava uma decisão muito importante: distinguir-se como um povo para quem a vida vale mais que a economia. O sábado devidamente guardado dava-lhes a oportunidade de cuidar da família, de reunir-se para o culto, de refazer as forças para recomeçar o ciclo semanal. Para defender a vida é que o sábado fora legalizado como dia de repouso e descanso, e não como preceito que existe por si mesmo. Sem a vida como meta, a lei sabática perdia seu horizonte e se esvaziava de sentido.


Sabendo disso, Jesus rompeu com a prescrição e descumpriu a lei. Quando o sistema é perverso, a rebeldia é sinal de lucidez e fidelidade. Foi assim que ele e seus discípulos fizeram o que era proibido no sábado: curar doentes, quebrar espigas, fazer barro para curar um cego, ordenar a coxo e paralíticos que carregassem suas macas etc. A confusão estava armada com os legalistas: os escravos do sistema. Estes não percebiam que a lei do sábado perdera seu foco e era preciso recolocá-la em torno de seu princípio mais importante: a vida.  Fariseus e outras autoridades religiosas perseguiram Jesus, tramaram contra ele e até mataram-no, pois não se deixou subjugar pelos sistemas sociais injustos. Porque entendeu que a oposição entre a lei sabática e o cuidado com a vida era um falso dilema, Jesus não hesitou em rompê-la e assim dar-lhe pleno cumprimento.


Sob a égide religiosa, aparece nos Evangelhos o dilema: a vida ou a lei? Jesus não duvida. Sabe de que lado está: escolhe a vida. Ao escolher o rompimento com o sábado, mostra-se verdadeiro defensor dos fragilizados, oprimidos pela lei. Com essa atitude, não só os mais fracos eram beneficiados, mas também os grandes – defensores do preceito sabático – tornavam-se livres de um jugo muito pesado. Na verdade, nem grandes nem pequenos se beneficiam de sistemas injustos e opressores, apesar de parecer que os primeiros são seus beneficiários. No conhecido relato da mulher pega em flagrante adultério pelos fariseus (Jo 8,1-11), essa escravidão fica evidente. Apresentaram a mulher a Jesus e disseram: “A Lei manda apedrejar. E, tu, que dizes?” (Jo 8,5). Não havia liberdade diante da Lei. Estavam condenados ao seu cumprimento, mesmo que quisessem proteger a mulher.


Jesus desmascara o falso dilema. A vida humana, sempre em primeiro lugar, não deve ser colocada em paralelo com qualquer sistema econômico, pois este existe para promover a vida e não para salvar sua própria pele. Em tempos de pandemia, quando alguém levanta a questão “a vida ou a economia”, seria bom lembrar que a economia,assim como o repouso sabático da Torá, existe para promover a vida. Sem esta colocada em lugar de destaque, a economia é elitista e pérfida. Protege uns poucos em detrimento da maioria que se perde. Essa lenga-lenga, tão conhecida, já foi cantada até no axé, pelo grupo “As meninas”. Quem lembra? “Bomxibom, xibom, bombom. Analisando essa cadeia hereditária, quero me livrar dessa situação precária, onde o rico fica cada vez mais rico e o pobre cada vez mais pobre. E o motivo todo mundo já conhece. É que o de cima sobe e o de baixo desce”.


 Quando o governo atual diz que a economia do país vai falir por causa do isolamento social, talvez seja a hora de assumir corajosamente que essa economia excludente deve falir mesmo. Infelizmente, ela é feita para nutrir alguns poucos corpos com a carne mais barata do mercado, a dos pobres. Esse sistema econômico no qual muitos são sacrificados para fazer viver nababescamente uma ínfima parcela da sociedade não deveria renascer das cinzas depois que tiverem sido apagadas as chamas da covid-19. Melhor seria se ela fosse definitivamente enterrada junto com os mártires que têm sido cruelmente executados nessa pandemia.