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155. Entre a leveza e a dureza da vida

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24.10.2017 | 4 minutos de leitura
Frei Abdias Júnior OFMCap
Crônicas
155. Entre a leveza e a dureza da vida

“Tudo canta de alegria” (Sl 65)



Louvado sejas, meu Senhor,

Com todas as tuas criaturas,

Especialmente o senhor Irmão Sol,

Que clareia o dia,

E com sua luz nos alumia.

Louvado sejas, meu Senhor,

Pela irmã Lua e as Estrelas,

Que no céu formastes claras.

E preciosas e belas.


(Cântico do irmão sol).


 

Quem vive na correria da cidade grande perde a capacidade de contemplar. O ritmo frenético do dia parece engolir a gente: carros buzinando, compromissos de hora marcada, tarefas a cumprir, violência se descortinando aos nossos olhos. A paisagem urbana é uma composição tão pesada que, para sobreviver, aprendemos a não contemplá-la. Ela se nos torna indiferente. Até os ipês, indecentes em sua beleza, passam despercebidos. E o que dizer dos irmãos sofredores que vivem em situação de rua? O sofrimento deles não mais nos interpela. Eles começam a fazer parte da paisagem urbana e são por nós ignorados. Olhar e não ver é um artifício para não sofrer.


Como bem descreveu Paulinho da Viola, nossos encontros têm a duração de um “sinal fechado”. Entre o apagar do sinal vermelho e o acender do sinal verde, a buzina já tocou nos obrigando à pressa. Temos pressa até quando a vida nos proporciona os encontros mais significativos. Estamos em um lugar no qual quereríamos estar, mas não estamos inteiros. Nosso pensamento fugidio nos trai e somos surpreendidos preocupados com um rol de afazeres que disputam o primeiro lugar. Já nem sabemos o que é mais urgente. E como escreveu Cecilia Meireles, divididos entre o prazer e a obrigação, podemos dizer “não sei se fico ou passo”.


Quando temos a oportunidade de deixar para trás esse frenesi, pouco a pouco a capacidade de contemplar nos é devolvida. A Serra da Canastra, com suas belezas naturais, nos arrasta de volta ao mistério e eleva nossa alma a Deus. Até a “cumadinha” cigarra mijadeira fica repleta de beleza e sua cantiga desesperada chamando chuva nos mostra a solidariedade da criação protestando contra o fogo que devasta a Serra. As maritacas gritam nos salgueiros e os bem-ti-vis, com peito estufado, cantam chamando seus companheiros para o concerto de fim de tarde. O sol, declinando na Serra, anuncia que a noite quente já vem chegando e, para nossa surpresa, uma estrela cadente corta o céu. A insanidade da cidade grande não nos permitiria ver nenhum desses espetáculos.


E o que falar das cachoeiras? Partindo da exuberante Casca D’Anta, seguimos a trilha inóspita para parte alta do Parque. Tudo muito seco, mas ainda assim belo. Arvoredos retorcidos do cerrado compõem a paisagem. À beira do precipício, a visão em 360º nos faz ter a exata dimensão das coisas. Tudo fica tão pequeno e cada detalhe se torna tão grande. Atrevido e majestoso, o lírio do cerrado mostra sua exuberância cor de laranja. É impossível não lembrar do que disse Jesus: “olhai os lírios dos campos”, “olhai as aves do céu”. Ao fim da trilha as quedinhas da parte alta da Casta D’Anta nos revigoram e nos fazem pensar que a vida é mais... Para além de toda dureza do caminho a vida é bela e é preciso agradecer.


O difícil acesso à Cachoeira dos Rolinhos faz pensar nos solavancos que a vida nos dá. O descaso dos governantes com o Parque da Serra da Canastra é um absurdo. Mas a beleza das cascatas da Cachoeira Rasga Canga (parte alta da Cachoeira dos Rolinhos) nos arrebata e nos enche de esperança outra vez. Nem tudo está perdido. Orquídeas, bromélias e sempre-vivas de todos os tamanhos nos lembram o salmo 65: “tudo canta e grita de alegria”.


Temos muito a aprender com Francisco, o Pobrezinho de Assis. Não podemos perder a capacidade de nos encantar com o belo e nos solidarizar com os pobres. Tão pobrezinho, o santo de Assis se tornou conhecido no mundo inteiro. Assim também o rio que leva o seu nome, cuja nascente é tão discreta e pequenina, mas cujas águas são tão fecundas. A prodigalidade das águas do Rio São Francisco nos convidam à simplicidade e à generosidade. Contemplar a criação nos devolve a nós mesmos.  Somos refeitos quando readquirimos a capacidade de contemplar.