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97. Reflexão para o 1º domingo da Quaresma (Lc 4,1-13)

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09.03.2019 | 8 minutos de leitura
Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues
Evangelho Dominical
97. Reflexão para o 1º domingo da Quaresma (Lc 4,1-13)

Após uma sequência de oito domingos, a liturgia interrompe o tempo comum para viver e celebrar um de seus tempos mais fortes, a quaresma, iniciada na quarta-feira de cinzas, em preparação à Páscoa do Senhor. Hoje, celebramos o primeiro domingo deste tempo especial. Como acontece todos os anos, o evangelho do primeiro domingo da quaresma compreende a narrativa das tentações pelas quais passou Jesus no deserto, após ser batizado. Esse é um episódio presente nos três evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), um dado que confirma a sua grande importância para as comunidades primitivas. Neste ano, especificamente, nós lemos a versão do Evangelho segundo Lucas: 4,1-13; se trata de um texto bastante rico, muito bem elaborado tanto do ponto de vista literário quanto teológico, com uso abundante de linguagem simbólica. 


Marcado por forte simbologia, o relato evangélico de hoje corre o sério risco de ser mal compreendido, devido a nossa tendência equivocada de considerar os evangelhos como livros de crônicas da vida de Jesus, esquecendo o aspecto simbólico que predomina neste tipo de relato. Por isso, é necessário, a nível de introdução, fazer alguns considerações importantes para uma adequada compreensão. A fonte original deste relato, o Evangelho segundo Marcos, não dá nenhum detalhe sobre o nível e a modalidade das tentações; apenas diz que “Jesus esteve no deserto durante quarenta dias sendo tentado por Satanás” (Mc 1,13); dessa informação simples e obscura, Lucas, com muita criatividade e atendendo às necessidades da sua comunidade, “criou” a história que lemos hoje na liturgia, como fez também Mateus (cf. Mt 4,1-11).


A nível de contexto, é imprescindível recordar que o relato das tentações segue, imediatamente, o relato do batismo – cf. Lc 3,21-22 – e, por isso, ambos estão intrinsecamente relacionados. Ainda antes do batismo, João tinha anunciado Jesus como o Messias, em sua pregação. Ora, no batismo o Espírito Santo desceu sobre Jesus e, do céu, o próprio Pai o declarou como o seu “Filho Amado”. O principal objetivo do evangelista com esse episódio é apresentar Jesus como o enviado de Deus, ou seja, o “Filho amado do Pai”, conforme a revelação no batismo, cena anterior ao texto de hoje (cf. Mt 3,16), o qual permanecerá fiel aos propósitos do Pai, rejeitando todas as propostas que não condizem com os valores do Reino, sintetizadas aqui pelas três tentações apresentadas pelo diabo. Portanto, esse é um texto programático para a comunidade cristã.


O primeiro versículo já apresenta a principal chave de leitura de todo o texto: “Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão, e, no deserto, ele era guiado pelo Espírito” (v. 1). Ora, o mesmo Espírito Santo que desceu em forma (cf. Lc 3,22) no batismo, acompanhará Jesus em todos os seus passos e ações; com o batismo, foi inaugurada sua vida pública, e essa, do início ao fim, será marcada pela presença do Espírito Santo, e não apenas quando Ele vai ao deserto. Aqui, o deserto não é um indicativo geográfico, mas teológico.


A ida de Jesus ao deserto, antes de tudo, indica que Jesus está inserido na história do povo de Israel, fazendo parte desse e, portanto, estará sujeito aos mesmo riscos pelos quais Israel passou, desde a saída do Egito até a conquista da terra. Logo, também o caminho de Jesus, do nascimento à ressurreição, será marcado por riscos, perigos e provas, uma vez que Ele, mesmo sendo o “Filho Amado” de Deus, é verdadeiramente homem. Embora o deserto evoque a provação, é também o lugar ideal para o bom relacionamento com Deus, por isso, quando o povo demonstrava infidelidade, os profetas apresentavam a necessidade de retornar ao deserto para voltar a viver o ideal da aliança (cf. Os 2,14; 9,10; 13,5; Am 2,10; 5,25).


Uma vez que o deserto é sinônimo de provação e perigo, o evangelista quer dizer que aquele que tem a sua vida conduzida pelo Espírito, não está imune aos perigos da vida, não é uma pessoa blindada. Por isso, “Ali foi tentado pelo diabo durante quarenta dias. Não comeu nada naqueles dias e, depois disso, sentiu fome” (v. 2). O protagonista da tentação é o diabo (διαβολος – diábolos), palavra grega que literalmente significa aquele que divide e atrapalha, como é tudo o que se opõe à concretização do Reino de Deus e ao caminho de Jesus. Logo, o diabo não é uma pessoa ou um ser específico, mas todo percalço posto diante do projeto de Deus; muitas vezes é a própria estrutura das comunidades que teimam em ofuscar o Evangelho.


Se o deserto não é um dado geográfico, assim também os “quarenta dias e quarenta noites” em que Jesus jejuou não podem ser considerados como um dado cronológico. Mais uma vez, trata-se de um dado teológico, e de grande relevância. São muitas as ocorrências do número quarenta relacionado ao tempo no Antigo Testamento: a duração do dilúvio foi de quarenta dias e quarenta noites (cf. Gn 7,4.12.17); Moisés passou quarenta dias sobre a montanha, antes de receber a Lei (cf. Ex 32,28); a caminhada do povo de Deus no deserto durou quarenta anos, sendo esse um tempo de fidelidade, idolatria e prova (Ex 44,28); e o profeta Elias caminhou durante quarenta dias rumo ao monte Horeb (cf. 1 Rs 19,8). Além de evocar acontecimentos e personagens importantes da história de Israel, esse número quer dizer uma etapa completa, ou seja, uma vida inteira. Portanto, significa que toda a vida de Jesus foi marcada pela prova e, assim, é também a vida da comunidade cristã. Isso deve levar os cristãos e cristãs a uma vida vigilante sem, jamais, cair nos comodismos que podem surgir. Quer dizer que a Igreja não pode, em momento algum da história, aceitar qualquer sinal de conforto, principalmente quando ofertado pelos detentores do poder. A fome de Jesus (v.2b) é mais uma evidência da sua humanidade.


As três tentações ou provas (cf. Mt 4,3-4; 5-7; 8-10) são proposta e contraproposta de como o ser humano deve relacionar-se com as coisas, com o próximo e com Deus. O diabo apresenta a lógica da ordem vigente, seja religiosa ou política, e Jesus propõe um caminho alternativo, o que vai caracterizar o Reino de Deus como uma sociedade alternativa a todas formas de organização social até então experimentadas pela humanidade, amparadas ou não pela religião. Diante disso, parece haver um debate ou disputa de conhecimento da Escritura entre o diabo e Jesus. É uma nítida antecipação do que ocorrerá em toda a vida de Jesus, sobretudo quando terá de enfrentar os líderes religiosos do seu tempo. É um alerta de que o mal age na história camuflado de diversas aparências, inclusive de pessoas muito religiosas.


A primeira tentação (vv.3-4) diz respeito à maneira de relacionar-se com as coisas: a lógica do império incentiva ao consumo e satisfação dos desejos. Embora faminto, Jesus percebe que não é suficiente saciar-se de pão naquele momento, pois a vida pede muito mais que pão. Por isso, com base na Escritura, Ele não dispensa o pão, mas diz que o homem não pode viver “somente” dele. A vida digna e plena não depende somente do alimento, mas de todos os valores do Reino contidos na “Palavra que sai da boca de Deus”, que será explicitada no capítulo seguinte, com as bem-aventuranças. 


A segunda tentação chama a atenção (vv.5-7) para a relação com Deus: na “cidade santa”, onde Deus morava, o que mais se podia esperar era milagres! Jesus resiste à tentação do milagre fácil, rejeitando o Deus vendido pelo templo; o seu Deus não é aquele que distribui anjos por todas as partes para guiar e proteger os seus ‘filhos bons’ apenas, como afirmava a religião da época, não é o Deus das visões e aparições nem dos espetaculares prodígios, mas é o Deus da simplicidade, das coisas pequenas, porque age a partir de dentro do ser humano.


A terceira tentação (vv.8-10) diz respeito à relação com o próximo. A lógica religiosa-imperial incentivava a busca constante de poder e, consequentemente, de domínio sobre o outro. Cada vez mais alimentavam-se as expectativas de um messias glorioso e poderoso, capaz de julgar e condenar todos os ‘inimigos’ de Israel. Para decepção de muitos, Jesus apresentou-se como messias servo e sofredor. Por isso, rejeita toda e qualquer forma de poder, pois, mesmo que esse seja exercido em nome de Deus, será sempre de origem diabólica, uma vez que impede a concretização de uma fraternidade universal. Ao invés de poder, Jesus escolherá o serviço como meio de exercício de sua autoridade. Ele não quis e nem quer o domínio do universo; quis e quer apenas que o seu amor chegue, através da Igreja, em todos os confins da terra e, assim, que a humanidade seja transformada.


“O diabo deixou Jesus” (v. porque não encontrou nEle um aliado: nem Caifás e nem César aceitaram a “rebeldia” de Jesus, por isso, continuaram tramando contra Ele até a cruz! Embora tenha usado citações do Antigo Testamento como autodefesa, Jesus vai, aos poucos, elaborando seu próprio programa alternativo àquilo que o poder vigente na época lhe tinha proposto. Seu programa é a sua própria vida com suas opções e consequências, explicitado no amplo discurso da montanha (cf. Mt 5 – 7).