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75. Reflexão para o 27º domingo do Tempo Comum (Mc 10,2-16)

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06.10.2018 | 8 minutos de leitura
Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues
Evangelho Dominical
75. Reflexão para o 27º domingo do Tempo Comum (Mc 10,2-16)

Neste vigésimo sétimo domingo do tempo comum, a liturgia oferece Marcos 10,2-16 para o Evangelho. Como se trata de um texto bastante longo, não comentaremos versículo por versículo, mas procuraremos colher a sua mensagem central. O contexto continua sendo o caminho de Jesus com seus discípulos para Jerusalém, onde acontecerão os eventos da sua paixão e morte. É importante recordar que, durante esse caminho, Jesus sofre uma contínua e sistemática oposição, o que serve de preparação para o confronto final em Jerusalém com as autoridades religiosas e políticas que o levarão à morte na cruz.


O texto de hoje marca uma nova etapa no caminho: tendo atravessado o rio Jordão, Jesus já está no território da Judéia (cf. Mc 10,1) e, portanto, cada vez mais perto de Jerusalém. Até então, a oposição encontrada ao longo do caminho tinha sido somente dos próprios discípulos: desde Pedro, que o repreendeu ao ouvi-lo da própria morte (cf. Mc 8,27-35 – Evangelho do vigésimo quarto domingo), até João que proibiu um homem de agir em nome de Jesus, simplesmente por não fazer parte do grupo dos Doze (cf. Mc 9,38-48 – Evangelho do vigésimo sexto domingo). Essa observação é importante para lembrar que a mensagem de Jesus nunca encontra facilidade no seu anúncio; o Evangelho sempre encontra obstáculos, pois possui uma proposta de transformação de vidas e de mudança nas estruturas da sociedade. Propostas assim, tendem a incomodar, tanto as instituições, quando as pessoas a elas conformadas.


Os opositores que confrontam Jesus no Evangelho de hoje são os fariseus, por sinal, os mais tradicionais adversários, desde o início do seu ministério (cf. Mc 2,16; 3,6; 7,1). Com esses adversários, o confronto é sempre no campo doutrinal, sobretudo na maneira de compreender e interpretar a lei. Dessa vez, o confronto diz respeito à legitimidade do divórcio: “Alguns fariseus se aproximaram de Jesus. Para pô-lo à prova, perguntaram se era permitido ao homem divorciar-se de sua mulher” (v. 2). De início, o evangelista já denuncia a malícia dos fariseus: “pôr Jesus à prova”, ou seja, tentá-lo, para posteriormente acusa-lo. Como fiéis observadores da lei, os fariseus já tinham consciência formada e conhecimento a respeito desse tema. Por isso, “Jesus perguntou: o que Moisés vos ordenou?” (v. 3), uma vez que os fariseus tinham Moisés como autoridade máxima, ou seja, a lei.  


Os fariseus respondem a Jesus, de acordo com a lei: “Moisés permitiu escrever uma certidão de divórcio e despedi-la” (v. 4). Está claro que a lei permitia o divórcio, mas Jesus recorda o motivo pelo qual a lei foi dada: “Foi por causa da dureza do vosso coração que Moisés vos escreveu este mandamento. No entanto, desde o começo da criação, Deus os fez homem e mulher. Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe e os dois serão uma só carne” (vv. 5-7). Ora, a lei não corresponde aos propósitos originais da criação, mas foi dada como um paliativo, diante do mal enraizado no mundo. Jesus não veio ao mundo para conformá-lo nem conformar-se à lei, mas para recuperar o ideal da criação, instaurando definitivamente o Reino de Deus sobre o mundo.


Como a lei permitia o divórcio, na época de Jesus o debate girava em torno dos motivos para o mesmo. Havia duas correntes rabínicas de interpretação na sua época de Jesus: uma delas, afirmava que o divórcio só podia ser dado em caso de um erro muito grave por parte da mulher; para a outra, podia ser dado por qualquer motivo, inclusive se o marido desaprovasse uma comida preparada pela mulher, uma vez que a lei deuteronômica, na qual os fariseus se baseavam, dava essa liberdade (cf. Dt 24,1-4). Para Jesus, essa lei era absurda, pois legitimava a submissão e marginalização da mulher. Em todas as questões relativas à lei, a preocupação de Jesus é com os abusos que podem ser praticados e fundamentados a partir dela. Quem se prejudicava sempre era a mulher, pois o homem poderia repudiá-la a qualquer momento, mandando-a embora de casa. Essa lei legitimava a família patriarcal e mantinha a mulher marginalizada. Por isso, Jesus se distancia dessa lei e convida a sua comunidade a manter-se alinhada aos propósitos da criação: “Deus os fez homem e mulher” para serem “uma só carne”, ou seja, uma unidade, formando uma comunhão indissolúvel e sem hierarquia. Prender-se à lei, para Jesus, é negar o projeto original de Deus e fechar-se ao seu Reino, por consequência.


O embate com os fariseus tinha sido no caminho. É típico da pedagogia de Jesus aprofundar em casa, com os discípulos, o tema discutido no caminho. Mais uma vez, o evangelista evidencia caminho e casa como lugares prediletos da catequese de Jesus. Por isso, diz que, “em casa, os discípulos fizeram, novamente, perguntas sobre o mesmo assunto” (v. 10). De fato, se tratava de um assunto importante, muito relacionado ao cotidiano das pessoas. Também os discípulos seriam abordados sobre o mesmo; por isso, o interesse em aprender ainda mais com o Mestre. Aos discípulos, “Jesus respondeu: ‘Quem se divorciar de sua mulher e casar com outra, cometerá adultério contra a primeira. E se a mulher se divorciar de seu marido e se casar com outro, cometerá adultério” (vv. 11-12). Nessa resposta, Jesus reafirma seu compromisso com os propósitos da criação: o divórcio não deveria existir e, ao mesmo tempo, traz uma grande novidade: coloca a mulher em condição de igualdade com o homem, ao afirmar que também o homem comete adultério ao divorciar-se e casar-se com outra. De acordo com a lei, fundamento da família patriarcal, a culpa e as consequências, em caso de divórcio, iam somente para a mulher; das consequências, a maior delas era a discriminação, o que gerava segregação e apedrejamento. A grande lição de Jesus aqui, além de remeter à humanidade ao plano da criação, é a proteção da mulher e a sua igualdade nas relações, combatendo uma lei que discriminava e excluía.


Na parte final, o evangelista coloca, novamente, em cena personagens tão caros para seção do caminho: as crianças. “Depois disso, traziam crianças para que Jesus as tocasse. Mas os discípulos as repreendiam” (v. 13). A ênfase de Jesus e do evangelista às crianças tem uma função didática muito específica, sobretudo para a formação dos discípulos. Ora, quanto mais se aproximavam de Jerusalém, mais os discípulos alimentavam projetos de poder e sonhos de grandeza, imaginando a restauração do império davídico-salomônico e, com isso, a ocupação de cargos de honra na administração. Diante disso, o evangelista insiste em apresentar as crianças como modelo, considerando a insignificância que lhes era atribuída na época. O fato de os discípulos repreenderem as crianças, mostra o quanto eles ainda estavam distantes da mentalidade de Jesus.


Essa atitude de impedir que as crianças se aproximassem revela a incoerência e incompreensão dos discípulos com o projeto de Jesus de construir um mundo novo, o Reino de Deus, no qual os últimos e mais frágeis são a opção preferencial. Na controvérsia sobre o divórcio, Jesus elevou a mulher à condição de igualdade; agora, com as crianças, elevará todas as categorias de pessoas excluídas à condição de preferidos e preferidas do Reino.


Com a atitude escandalosa dos discípulos – no Evangelho, causa escândalo quem atrapalha alguém de se aproximar de Jesus – o evangelista diz que “Jesus se aborreceu e disse: ‘Deixai vir a mim as crianças. Não as proibais, porque o Reino de Deus é dos que são como elas” (v. 14). Embora outros evangelistas também narrem esse episódio, somente Marcos diz que “Jesus se aborreceu”; esse detalhe é importante por dois motivos: primeiro, porque demonstra a importância que Jesus dava às crianças (como imagem de todas as categorias de pessoas vulneráveis e marginalizadas da sociedade); segundo, porque denuncia o quanto era absurda a atitude dos discípulos; e, terceiro, porque mostra a preocupação do evangelista em revelar a humanidade de Jesus (um homem de sentimentos). Revelar os traços humanos de Jesus era muito importante para Marcos, o que os outros evangelistas pareciam esconder. A ordem de Jesus para que os discípulos não proíbam que as crianças se aproximem dele comporta um grande compromisso para a Igreja de todos os tempos: facilitar o máximo possível o encontro com os mais vulneráveis e excluídos da sociedade. A comunidade cristã não pode criar obstáculo algum para que as pessoas, sobretudo as mais necessitadas e excluídas, se aproximem do amor de Jesus.


As crianças são apresentadas como modelo, e para pertencer ao Reino de Deus é necessário tornar-se como elas (cf. v. 15). Para os discípulos, principalmente, essa comparação é muito importante. A criança é exemplo de quem necessita aprender, de quem não trama maldade nem alimenta ambições, de quem não se sente autossuficiente. Para o Reino de Deus, como uma sociedade alternativa, igualitária e justa, é imprescindível ter tais características para nele inserir-se. O gesto de abraçar, abençoar e impor as mãos sobre as crianças, no último versículo (cf. v. 16), enfatiza o amor acolhedor de Jesus pelas pessoas mais necessitadas e que a sociedade considera insignificantes.