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62. Esvaziando o navio

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29.12.2015 | 5 minutos de leitura
Solange Maria do Carmo
Crônicas
62. Esvaziando o navio

“E começaram a jogar a carga ao mar...” (At 25,18)



Se coisas boas se vão

é para que coisas melhores possam vir.

Esqueça o passado,

desapego é o segredo!"

(Fernando Pessoa)



Um olhar atento à natureza faz rever a vida. Tenho observado as formigas! Sempre carregando cargas; ora mais leves, ora imensamente pesadas... E não param no seu labor. Não sabem o que é cantar como a cigarra, nem o que é pousar de flor em flor como fazem as borboletas. Estão sempre no seu ofício, carregadas de cargas, levando folhagem para seus ninhos. Essa é sua sina! Esse é seu destino.


E nós? “Temos carregado conosco bem mais do que precisamos para ser feliz”, é o que pensamos quase todos. Falta apenas coragem para lançar a carga ao mar, como fizeram os companheiros de Paulo, quando o navio se viu ameaçado de naufragar. É bem assim mesmo: enquanto o navio de nossa vida flutua tranquilamente sobre as adversidades da vida, vamos mantendo o barco cheio. Até o dia em que, assaltados por alguma reviravolta, começamos a repensar as cargas trazidas conosco: bens materiais totalmente dispensáveis, tempo consumido com banalidades, mágoas e estranhezas que só sobrecarregam a vida. Parece que só depois de uma catástrofe somos capazes de repensar os caminhos, de colocar tudo na balança, de redimensionar as escolhas.


Hoje, em meio a tantas doenças psíquicas, somamos aquela de ajuntar coisas, de acumular... Acompanhei recentemente uma pessoa queridíssima num tratamento em um hospital psiquiátrico e muito aprendi dentro daquelas quatro paredes. Vi mulheres sofridas com fardos além do humanamente possível de se levar sobre os ombros. Vi tristezas da alma que nem sabia existirem. Vi desejo de auto extermínio ser dito com clareza e autenticidade, numa esperança louca de conseguir superá-lo. E conheci duas senhoras que tentavam se libertar do TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo), manifestado exatamente no ato de acumular. Suas casas viraram depósito de tralhas, quase ao ponto de não caber elas próprias, precisando ser internadas por seus familiares para se libertarem de tal mal. Mesmo lá no hospital, sob medicamentos e cuidados, elas ajuntavam: copos plásticos, embalagens de iogurtes, gravetos, flores do jardim, recortes de revistas... Qualquer coisinha mínima podia ser colecionada.


Ai, ai. Quem nunca ajuntou tralhas atire a primeira pedra! Quem não fez estoque de banalidades seja o primeiro a apontar o dedo! Quem nunca acumulou mais do que dá conta de carregar que mostre as costas vazia de cargas! Quem tem o armário somente com o necessário que dê as provas de seu desapego! Parece uma sina estranha essa – a dos humanos, não a das formigas – a de ajuntar coisas.


Fossem só coisas materiais, talvez a solução viesse com mais facilidade. Mas o acúmulo de bugigangas, ou até de bens, revela nossa capacidade de acumular sentimentos, lembranças, angústias, temores que já deveriam ter virado quimera, mas insistem em nos maltratar. E, acumulados, esses sentimentos e lembranças tornam-se fardos impossíveis de serem carregados. Até nos adoecer. Chega um momento da vida da gente que é preciso jogar a carga ao mar; atirar no fundo do oceano aqueles fardos que inutilmente levamos nas costas.


Nós mulheres, então, nuca vi coisa igual! Somos mestras em carregar fardos. O navio de nossa vida anda abarrotado de obrigações, de imposições culturais, familiares, profissionais, e ainda de culpas, de melindres e muito mais. Todas essas cargas, adoecedoras! No hospital que andei frequentando, depois de conviver com as internas e ouvir seus depoimentos tão dilacerantes, não conseguia dormir. Atormentava-me a dor daquelas mulheres, guerreiras, bravas senhoras ora tão fragilizadas. Lembrei-me da canção de Gonzaguinha: “Guerreiros são pessoas, são fortes, são frágeis... Guerreiros são meninos no fundo do peito”. Guerreiras também são crianças fragilizadas pedindo afeto. Pensei em seus homens; em quanto mal lhes fizeram... Daquelas com quem conversei, 90% estavam internadas depois de alguma crise com seus “machos”, sejam pais, maridos, filhos, companheiros, patrões... Certamente não foram eles que as adoeceram. Elas já eram portadoras de fragilidades da alma (quem não é!) e, tendo sido mal-amadas, viram se partir o que já estava rachado. Então escrevi uns versos em homenagem a elas. Lembrei-me do monstro da floresta, presente no livro de Jó, Beemot.


Beemot


Cheiro de insanidade no ar 

Impregna pessoas e paredes

E arranca-me de mim. 

Desaparece um resto de lucidez, 

como treva da noite
que devora os raios de luz do entardecer.

Beemot fugiu da floresta,

Saltou dos abismos internos 

E se pôs a devorar a razão. 

Comeu com pressa as almas benditas, 

Triturou lembranças, despediu afetos,

Engoliu esperanças. 

Sobraram suspiros, olhares, lágrimas 

De mulheres traídas, abandonadas, sofridas... 

Beemot é macho, 

Não sabe o que é ser mulher. 

Sua onipotência não lhe permite amar. 

Amar é sofrer... 

Monstros não amam... 

Devoram amantes.



Depois dessa experiência dilacerante, entendi: ou jogamos a carga ao mar ou Beemot nos devorará. No caso, Leviatã, o monstro marinho, pois Beemot é o monstro da floresta. Mas tanto faz. Monstros não faltam para nos comer vivas. Temos carregado cargas além do necessário e, pior, além do possível. Nosso barco já está à deriva. Aproveitemos esse novo ano que se inicia, para descarregar o barco (e os armários!). Ouçamos o conselho de Fernando pessoa: “É sempre preciso saber quando uma etapa chega ao fim... O que importa é deixar no passado os momentos da vida que já se acabaram”. Recomeçar com menos carga é uma questão de sobrevivência. Lembremo-nos do que disse Jesus: “Meu jugo é suave; meu fardo é leve”. Nem depois de ouvir essa palavra que faz viver tomamos jeito? Em nome da sanidade é hora de gritar: “Carga ao mar”. E mãos à obra. Feliz 2016, com o navio da vida menos carregado!