Evangelho DominicalVersículos Bíblicos
 
 
 
 
 

60. A liturgia do coração

Ler do Início
13.07.2020 | 9 minutos de leitura
Solange Maria do Carmo
Diversos
60. A liturgia do coração

 “Depois do fogo, ouviu-se o murmúrio de uma leve brisa.

Ouviu então uma voz que dizia: Elias, que fazes aqui?” (1Rs 19,12b-13)



O profeta Elias, cujo nome significa “Meu Deus é Yhwh”, é personagem conhecido da Escritura Sagrada. Tido como o maior dos profetas, seu nome passou a ser usado para representar a coleção de livros chamada de Nebiim, ou simplesmente Profetas, da Bíblia Hebraica, também conhecida como TaNaK (Torah, Nebiim e Ketubiim). O arco dessa coletânea profética se estende desde os Profetas Anteriores (Js, Jz, 1 e 2Sm; 1 e 2Rs) até os Profetas Posteriores (Is, Jr, Ez, Os, Jl, Am, Ab, Jn, Mq, Na, Hab,Sf, Ag, Zc, Ml) tornando-se a maior coleção do Antigo Testamento.


Sua história, relatada nos dois livros dos Reis, traz cenas curiosas que vão desde garantir pão para a viúva de Sarepta, que o acolheu em tempos de seca e fome (1Rs 17,8-16), até humilhar e passar a fio de espada os profetas de Baal, que espalhavam cultos idolátricos apoiados pela rainha Jezabel, esposa de Acab, que governou o reino no Norte. Assim, Elias é sinal de força e coragem, de fidelidade ao seu Deus e de zelo devorador pela palavra do Senhor.


O episódio da controvérsia com os profetas de Baal é de um realismo cortante. Numa disputa religiosa, quatrocentos e cinquenta homens imploram a Baal que consuma a oferenda posta sobre o altar mandando fogo do céu. As súplicas são expressas em formas de gritos, danças, flagelações e transes, um verdadeiro espetáculo religioso que atraía multidões. Mas nada! Baal, porque era ídolo e não Deus, nada pode fazer por eles. Elias, ao contrário, com mansidão, sem qualquer simulacro religioso, invoca o auxílio do Deus, que ele carrega até no seu próprio nome, e o Senhor aceita sua oferta, que é queimada por um raio (1Rs 18,20-46).


Na tentativa de combater a religião do espetáculo, muito presente nos cultos idolátricos da época, o escritor sagrado constrói cenas que são minuciosamente descritas. Os profetas de Baal são apresentados como verdadeiros atores de teatro. Fazem de tudo para atrair a atenção do povo e do seu deus, que é surdo e exige gritos cada vez maiores. O Deus de Israel, ao contrário, mostra-se atento à menor necessidade e súplica de sua gente. Bastou uma prece singela de Elias, implorando a Deus que se manifestasse como aquele que converte os corações, para que a ação divina acontecesse.


Outra narrativa que envolve o nome do profeta é sua experiência com Deus no monte Horeb (1Rs 19,9-18). Exausto do combate com os falsos profetas que iludiam o povo com cenas teatrais, Elias viaja até o monte Horeb. No caminho, exaurido da peleja, Elias se entrega nas mãos e de Deus e se diz pronto para a morte. Mas o Senhor o reanima, oferecendo-lhe pão e água por meio de um anjo, que na bíblia simboliza o próprio Deus (1Rs19,1-8). Elias ainda não tinha completado sua experiência religiosa e o mais importante estava por vir.


Chegando ao monte indicado pelo Senhor, Elias é surpreendido com diversos fenômenos da natureza. Primeiro, passou um vento impetuoso e forte que desfazia as montanhas e quebrava os rochedos, mas Deus não estava nele. Em seguida, veio um terremoto abalando a terra, mas Deus também não se mostrou nesse fenômeno. Logo após, veio um fogo devorador do céu, mas o Senhor também não se revelou por meio do fogo. Para consolo do profeta, foi numa brisa suave e mansa que o Senhor se comunicou a ele e lhe dirigiu sua palavra (1Rs 19,9-18). O profeta é questionado de sua saída da linha de combate da vida e é reenviado em missão (1Rs18,15). Assim Elias segue seu caminho, confortado pela manifestação divina.


Os relatos acima citados são uma clara oposição do autor do primeiro livro dos Reis à cultura do espetáculo religioso, muito presente nas antigas civilizações. Baal, cujo nome significa marido ou senhor, era conhecido pelos cultos extravagantes de seus súditos. Sendo considerado o deus da fecundidade, aquele que garantia a prole de homens e animais assim como uma farta colheita, Baal era adorado pelos cananeus (habitantes de Canaã, terra que os hebreus ocuparam depois da saída do Egito). Seu culto envolvia muitos ritos curiosos, até o ato sexual, já que Baal era o garante do cio da terra e da vida humana.


O povo hebreu ficou muito tentado a trocar o Deus libertador, que os tirou do Egito, por Baal, deus de Canaã. O Deus libertador era nômade e havia caminhado com eles no deserto; mas agora eles eram sedentários como Baal que era senhor daquela terra. O Deus libertador era exigente; para fazer parte de seu povo era preciso bem mais que belos e espetaculosos ritos, mas compromisso ético traduzido em direito e justiça. Já Baal era bem mais fácil de agradar; bastava fazer os ritos prescritos e a benção estava garantida. O Deus libertador desprezava cultos rituais e festas vazias de sentido, pois o verdadeiro culto é cuidar dos fragilizados e não levar oferendas ao Templo. Já Baal se contentava com as ofertas exteriores ao coração, sem nenhuma preocupação ética.


A tentação estava posta: adorar o Deus libertador, exigente e cujo culto era um símbolo da vida a ele ofertada em compromisso com os mais fracos, ou adorar Baal, o deus camarada cujo culto era espetaculoso e cheio de prazeres?  Não era fácil resistir. Houve quem trocasse o Deus que os tirou do Egito pelo ídolo ou quem fizesse uma espécie de sincretismo, conjugando os dois cultos, como se isso fosse possível.


Ao ler o primeiro livro dos Reis, fica difícil evitar a comparação dos relatos de Elias com o fenômeno do espetáculo de muitas religiões cristãs. Para não ser injusta com outras denominações, as quais conheço muito pouco, falemos apenas da corrente católica, cada dia com mais adeptos, que faz opção pelo modo de rezar e celebrar dos adoradores de Baal. Os exemplos são muitos: cercos de Jericó plenos de proclamações de curas e libertação; acampamentos de jovens com sons estridentes de rock gospel; presbíteros fantasiados de príncipes; coroinhas e outros ministros vestidos como numa corte real; templos coloridos lotados de enfeites, que mais parecem um carro alegórico; sacrários envolvidos com luzes, que lembram a nave espacial da Xuxa; teatros mirabolantes que vão desde pombas sendo soltas e se espatifando no ventilador até mulheres parindo uma bíblia; ritos de exorcismos, acompanhados de gritos e bate-papos com os demônios; pessoas em transe caindo pelas igrejas no chamado repouso no Espírito; multidões rezando línguas estranhas numa tentativa alucinada de entrar na dinâmica divina; bênçãos com água por meio de borrifadores de produtos agrícolas; passeios com o a hóstia eucaristizada em aviões que cobrem os ares ou em caminhões que passeiam pela cidade; missas de duas ou três horas com todo tipo de atrativo para o público etc. A lista se mostra interminável.


Se o espetáculo fosse o modo de expressão de um povo alegre e festivo, como acontece na cultura africana, em que ministros e todo o povo cantam, dançam e rezam a fé, numa liturgia que é pura vibração, não haveria problemas. Mas não se trata de um culto alegre e marcado pela expressão da vida. Trata-se da cultura do espetáculo, que entrou em nossas igrejas como uma espécie de ópio para iludir o povo e arrancá-lo do culto ao verdadeiro Deus, cuja marca é o serviço ao próximo. Um autêntico culto a Baal é realizado nas nossas igrejas todos os dias, quando esses fenômenos de exaltação religiosa acontecem. Por meio desses, nossa gente é momentaneamente arrancada da dureza da vida e transportada para uma esfera mística que traz consolo e a ilusão de ter seus problemas resolvidos. Tendo cantado, rezado e feito suas oferendas, essa gente volta para casa alienada das realidades terrenas. Uma visão mágica de Deus vai se afirmando e a tarefa ética da vida cristã fica cada vez mais esquecida.


Não tiro da frieza de nossas liturgias e da mesmice de nossas celebrações parte da culpa desse fenômeno. Nem atribuo aos líderes que atraem multidões com tais simulacros a vergonha de nossa situação atual. Muito menos julgo nossa gente católica por preferir essas celebrações. Estou ciente que nossa fé não tem sido expressa com vitalidade e beleza em nossos templos. Um ritual enfadonho, cerimonioso e feio, que não permite a expressão da vida, nos comprime e quase que somos obrigados a escapar como água pelos dedos da Igreja, se quisermos manter uma autêntica relação com o Deus de Jesus Cristo, cuja ação do Espírito é plena de alegria e novidade. Para os jovens, então, que estão acostumados à dinamicidade do mundo pós-moderno, nem se fala. A liturgia católica não lhes diz nada, absolutamente nada. Diz algo apenas àqueles que, apesar de a Cristandade já ter recebido atestado de óbito há anos, conservam-na viva em seu interior e querem reconstituir tempos gloriosos da Igreja que nunca existiram.


Quando a Igreja se vê imersa no labirinto da vida contemporânea e sem o fio de Ariadne, é possível entender que o modelo triunfante da Igreja Universal do Reino de Deus e o modelo jovial da Igreja Sara nossa Terra ou da Batista da Lagoinha se tornem uma saída tentadora para sua pastoral. Essas Igrejas, aparentemente bem-sucedidas, incutem nos pastores católicos a traiçoeira mentalidade da concorrência, o desejo de encher nossos templos a qualquer preço, a prática da mercantilização da fé e o perigoso discurso com a prevalência do emotivo.


Em tempos de pandemia, quando precisamos – por compromisso ético que a fé cristã impõe – nos manter confinados em nossos lares, talvez seja boa ocasião para redescobrir o Deus de Elias, não no furacão das celebrações-show, nem nos terremotos de curas, libertações e exorcismos, nem no fogo devorador de pregações moralizantes ou emocionantes, mas na brisa suave e mansa da liturgia do coração que nos foi imposta pelo coronavírus.