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52. Vacas profanas 'de inspiração católica'

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09.06.2020 | 5 minutos de leitura
Tânia da Silva Mayer
Diversos
52.  Vacas profanas 'de inspiração católica'

As ''vacas de Basã'' são piedosas e até frequentam as liturgias (Unsplash/ Stijn te Strake)



Cristãos podem escolher caminhos

de rejeição ao Evangelho cuja lei maior é o amor



A nossa sociedade não é tão diferente daquelas fundadas pelos povos antigos. Em determinados aspectos, parece haver uma linha de continuidade que perpassa o tempo e ainda hoje nos deixa estarrecidos diante de muitos acontecimentos. A injustiça, a opressão, a violência, a sede de poder e dinheiro, a indiferença para com o sofrimento do semelhante, entre outros, sobrevivem em nosso meio mesmo depois de adentrarmos as portas da modernidade. Nem todo avanço tecnológico, científico, social nos tornou uma sociedade na qual todas as pessoas podem transitar livremente e serem reconhecidas por sua dignidade. Fosse diferente, não estaríamos embasbacados pelos inúmeros crimes de racismo que presenciamos nas últimas semanas.


Do ponto de vista religioso, o cenário não é diferente. Nós cristãos e cristãs não tivemos o privilégio de compor o grupo íntimo dos discípulos e discípulas de Jesus que puderam estar com ele todos os dias, sentando-nos aos seus pés para ouvir seus ensinamentos. Nem por isso devemos nos considerar discípulas/os de menor valor. Isso porque a convivência com o Mestre de nossas vidas se revela na observação cotidiana do mandamento maior: o amor. A vivência do amor ao próximo até às últimas consequências nos liga irremediavelmente a Jesus ao longo das épocas e atravessa os tempos. Mas pode acontecer que alguns que se dispuseram a ouvir o Mestre andem caminhos inconformes que conduzem à rejeição dos ensinamentos perpassados de geração em geração. Se entre aqueles privilegiados da companhia de Jesus houve quem se recusasse a segui-lo até o fim, hoje não será diferente. Cristãos ou cristãs podem escolher caminhos de rejeição ao Evangelho cuja lei maior é o amor.


Mas é importante considerar que as infidelidades aos projetos ocorrem em muitos ambientes, inclusive nos religiosos. Não sem razões, o povo do antigo testamento assistiu a ascensão dos profetas, que faziam uma leitura clínica da história do povo, de suas relações sociorreligiosas e do seu relacionamento com os mandamentos divinos. Tal leitura revelou, em diferentes contextos, a inconformidade do povo com a lei dada por Deus. Por isso, os profetas, vendo muitas vezes a fé desbarrancar, não hesitaram em denunciar as infidelidades e idolatrias cometidas por alguns do povo e de ensinar e anunciar, mais uma vez, a lei que deveria ser a medida de todas as relações.


O profeta Amós pertence a esse time de críticos da realidade e sua mensagem perpassa o tempo, justamente por nossa sociedade apresentar aspectos muito parecidos com aquela de seu tempo. Amós era um homem do campo e foi chamado por Deus para profetizar entre os anos 760 e 750 a.C., no Reino do Norte, sob o governo de Jeroboão II. Sua palavra é como a força de um leão que não deixará passar às escondidas o abuso cometido por sacerdotes e falsos profetas, que se beneficiavam da exploração das classes empobrecidas do reino. Por isso, a profecia de Amós é exigente no cumprimento da lei, não como costume herdado, mas como ética a ser vivida no cotidiano da vida, para além dos cultos e dos altares, na relação com os outros, sobretudo os pequenos.


É especial a denúncia que Amós faz contra as mulheres dos ricos que viviam nos altos palácios. À época, o touro era tomado e considerado como um título de honra atribuído aos chefes e líderes da sociedade. Do mesmo modo, suas esposas poderiam receber título semelhante com o feminino do animal escolhido para a honraria, neste caso, a vaca. Por isso, nosso profeta se dirige às mulheres ricas chamando-as de “vacas de Basã” (Am 4,1). Ele age ironicamente, de maneira a contrapor a imagem da mulher israelita, observadora dos costumes, a essas das cidades que assumiram costumes muito diferentes daqueles prescritos na lei. Além de serem liberais nos costumes, essas mulheres acabavam prestando culto às outras divindades dos povos vizinhos. Mas as “vacas de Basã” são símbolo escandaloso da união entre a boa vida dos palácios e dos cultos idolátricos e a injustiça e exploração da vida dos empobrecidos.


As “vacas de Basã” são piedosas e até frequentam as liturgias, oferecem seus sacrifícios e pagam costumeiramente seus dízimos (Am 4,4-5). Por isso, podem se passar pode gente religiosa e temente a Deus. Mas suas vidas denunciam o quão distantes estão dos mandamentos divinos e da ética que devem observar para com os menores da sociedade. A fé não tem ressonâncias na vida. Por isso, ela é magia. Idolatria. E, nesse sentido, as mulheres não se cansam, e não se envergonham, de pedir sempre aos seus maridos mais um pouco de vinho: “Traze-nos de beber” (Am 4,1b).


Qualquer semelhança com a nossa realidade não é mera coincidência. A profecia de Amós segue atual e pode ser dirigida hoje às vacas profanas “de inspiração católica” que, acostumadas com o luxo das suas televisões e rádios, tornam-se indiferentes à dor dos empobrecidos e de todas as famílias enlutadas pela dramática pandemia de Covid-19. Essas vacas profanas “de inspiração católica” são hoje o símbolo perverso de certa gente religiosa apegada ao poder e ao dinheiro, mas que não deixará de frequentar e transmitir suas liturgias e sacrifícios, todos idolátricos, porque completamente dissonantes com a ética do Evangelho, que exige a prática do amor e a renúncia ao status para a promoção verdadeira do Reino de Deus. Por isso mesmo, ainda hoje as vacas profanas “de inspiração católica” pedem aos seus maridos mais um pouco de verbas, mais um pouco de vinho: “Traze-nos de beber”. E seguem, como desde o princípio, de mãos dadas com aqueles que “oprimem os fracos e indigentes, maltratam e esmagam os pobres” (cf Am 4,1a).