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43. Olhou-o com amor

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01.09.2015 | 4 minutos de leitura
Solange Maria do Carmo
Crônicas
43. Olhou-o com amor

“Jesus, fitando-o com amor, lhe disse:

vai, vende tudo o que tens...” (Mc 10,21a)



“Quantas coisas cabem em um olhar!

É tão expressivo;
é como falar.”


(Clarice Lispector)



Quantas vezes um olhar nos incomodou: olhar de desconfiança, olhar de piedade, olhar de assédio e sedução, olhar de ternura, olhar de repreensão, olhar de amor. Clarice Lispector tem razão: cabe tanta coisa em um olhar que, na maioria das vezes, ele dispensa palavras.


Na minha família, usava-se a expressão: “Olho torto”. Minha mãe, sempre severa e zelosa, quando via os filhos aprontarem algo indevido, se na presença de visitas ou estranhos, nunca dizia nada. Apenas dirigia um “olho torto”, aquele olhar pelo rabo dos olhos, com ares de reprovação. Bastava isso para que qualquer um dos filhos percebesse na hora o que ela queria dizer. E assim como sabiam repreender com os olhos, meus pais também sabiam incentivar, amar, encorajar. Lembro-me de uma cena curiosa. Nos idos tempos de manifestações pelas Diretas Já, meu pai não aprovou minha militância. E expressou sua opinião verbalmente. Mas, curiosamente, começado o comício, a praça quase não tinha ninguém, mas lá estava meu pai me transmitindo encorajamento com seus olhos de águia, pronto a defender sua avezinha caso fosse atacada. Ao me lembrar dessa cena, minha mente se inflama de gratidão e tenho vontade de dizer a meu pai, tomando emprestado o canto de Arnaldo Antunes, “Seu olhar, seu olhar melhora o meu!”.


Ao longo da vida, sinto falta de olhares que comunicam, como os da minha mãe e de meu pai. Quantas vezes lançamos olhares de socorro e nada; nenhuma resposta, nenhum aceno, nenhuma palavra sequer, nem mesmo um olhar em troca. Quantas vezes nos arriscamos a um olhar de simpatia e nada: impassível e estático continua à nossa frente o não-interlocultor, incapaz de responder a uma sinalização de boa vontade. Quantas vezes também lançamos um olhar de reprovação a alguém e a mensagem parece não penetrar os olhos daquele a quem é dirigida: um jovem ocupando os assentos dos idosos no ônibus, enquanto os velhos estão de pé; um aluno colando na prova; uma palavra indesejável; um gesto de indelicadeza... Parece que perdemos o jeito. Ou o magnetismo de nosso olhar se arrefeceu ou estamos destreinados na arte de interpretar comunicações não verbais.


Apesar de tudo, o olhar continua comunicando. Se por um lado, temos a impressão que não leem mais nossos olhos, também somos testemunhas de como um olhar pode mudar uma vida. Certamente já fizemos a experiência de nos apaixonar por um olhar. E não se trata só de amor romântico, como canta a canção “Tire seus olhos dos meus, eu não quero me apaixonar... Não olhe assim, não!”, cantada pelos sertanejos. Um olhar de um filho também apaixona uma mãe; o olhar de um desconhecido pode abrir a soleira de uma amizade; o olhar de um entusiasmado com uma causa pode trazer paixão pela mesma utopia! Um olhar rasga cortinas de proteção e constrói pontes!


Foi com olhos do mais puro e terno amor que Jesus olhou para o homem rico, afeito às suas riquezas e sem coragem para abandoná-las. Marcos é o único evangelista que coloca esse detalhe maravilhoso: “olhou-o com amor!”. Sou do tipo otimista! Ao ler as Escrituras, entendo que Marcos – apesar de continuar afirmando que esse homem se foi sem seguir Jesus – afirma alguma mudança nesse interlocutor de Jesus. Diz o evangelista: “Ele foi embora triste...”. O homem que perguntou a Jesus o que fazer para ganhar a vida eterna não voltou para seu mundo como veio; foi modificado por um olhar de amor. Sua tristeza revela as mexidas interiores. Se não tivesse penetrado seu coração o olhar de amor de Jesus, o evangelista não se prestaria a dizer que ele foi embora triste, ou temeroso como traduzem alguns. Tem tristezas que são benéficas: fazem repensar a vida ou já sinalizam que o processo de elaboração interior já começou. O olhar de Jesus não foi em vão; o amor comunicado por seus olhos não se perdeu.