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43. Espiritualidade do Advento - II Domingo

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08.12.2019 | 11 minutos de leitura
Pe. Paulo Sérgio Carrara- C.Ss.R
Para Pensar
43. Espiritualidade do Advento - II Domingo

A ESPERANÇA COMO PREDESTINAÇÃO, ou


“Em Cristo, ele nos escolheu” (Ef 1, 4)


 

Neste segundo domingo do advento não teremos a liturgia costumeira, tão bela quanto profunda, sobre o profeta do deserto; João Batista. Não teremos, portanto, aquele convite para ir ao deserto, ouvir o Senhor que fala ao coração e forja, conosco, a nossa liberdade custosa. Antes, o que temos é a solenidade da Imaculada Conceição de Nossa Senhora, quase um parêntese dentro desse tempo de esperas. Contudo, se soubermos ler outras muitas camadas que a liturgia desse fim de semana nos abre, veremos que o culto à Mãe do Filho de Deus também esconde uma riqueza ímpar para a espiritualidade desse tempo. Nesse sentido, dir-nos-ia Paulo VI: “este período litúrgico deve ser considerado particularmente oportuno para o culto da Mãe do Senhor” (Marialis Cultus, n.4). Mas o que uma solenidade que afirma que Maria é toda santa, isenta de toda mancha de pecado, pelo Espírito Santo, como que plasmada e feita nova criatura (cf. LG, n.56), pode nos dizer?


Para responder tal questão, talvez nos ajude a segunda leitura desse domingo (Ef 1, 3-6. 11-12) que, arbitrariamente ou não, esconde uma chave de leitura para toda a liturgia: “segundo o projeto daquele que conduz tudo conforme a decisão de sua vontade, nós fomos predestinados a sermos, para o louvor de sua glória, os que de antemão colocaram a sua esperança em Cristo”. (Ef 1, 11s).


Fomos predestinados. A palavra predestinação pode nos levar a uma série de equívocos. Por exemplo: crer que Deus, antes de todos os séculos, desenhou tudo, traçou um plano mirabolante onde está tudo descrito; uma espécie de script que determina todas as coisas. Há ainda hoje quem fale de plano de Deus, entendendo que Ele predeterminou tudo. Crer nisto seria muito cômodo, porque significaria dizer que tudo “está escrito” e que nós estamos desencarregados de fazer nossas opções.Ou ainda: por mais que as façamos, não passamos de “fantoches”, achando que escolhemos, quando na verdade tudo já está escolhido. Nesse sentido, mesmo Jesus não passaria de um ator, cumprindo seu texto, indo parar na cruz para realizar o que antes já tinha decidido com seu Pai: morrer. A história humana, assim, seria história de Deus, mesmo sob os véus de seu mistério e nós, não passaríamos de meros coadjuvantes.


Além disso, falar em predestinação poderia nos fazer incorrer em outro absurdo: confundir eleição com seleção. Crer que, porque fomos eleitos, desde todos os séculos, segundo a presciência de Deus Pai, somos um grupo seleto, grupo dos salvos, separados, conforme a sua vontade. Nesse sentido, fora da religião cristã, do grupo seleto dos eleitos pelo Cristo, não existiria salvação.


Esses absurdos são um entrave para nossa espiritualidade e mesmo para a nossa compreensão de Deus. Não. Ele não decidiu todas as coisas, antes de todos os séculos nem determinou nossa vida e a história; não, ele não separou para si um grupo seleto, escolhidos por ele e destinado para os céus, enquanto a outros já destinou para a condenação. Só existe um plano de Deus e esse é o seu amor por nós. O Plano de Deus é nos amar, estar em comunhão conosco. Para isso ele nos criou, nos salvou e nos santifica. Aliás, quando dizemos que fomos criados à imagem e semelhança de Deus, isso quer dizer que fomos criados à imagem e semelhança da própria humanidade de Deus, que é o seu Cristo. E é esta imagem que deve aparecer em nosso rosto: a imagem do servo Jesus. Isso é o que, em outras palavras, significa que fomos escolhidos antes da fundação do mundo, eleitos para sermos filhos no Filho: desde sempre fomos chamados a colocar nossa esperança em Jesus e deixá-lo aparecer em nós, a partir do amor. Ora, a presciência de Deus só pretende algo: que nós nos deixemos configurar com Cristo, pela ação do Espírito. Isso não significa deixar de fazer escolhas, mas significa engajar nossa liberdade fundamental. Não significa que somos seletos, mas vocacionados ao amor. Não significa que haja um plano como script, mas um desejo divino: estar conosco, relacionar-se conosco. De sua parte, somos escolhidos; de nossa parte, somos chamados a escolhê-lo (mas podemos não fazê-lo).


Na nossa vida diária, no nosso modo de agir e de ser, com nossas fragilidades, lacunas, mas também com nossas capacidades, como podemos traduzir o amor de Jesus? É disso que se trata o tema da predestinação. A eleição de que nos fala Paulo vem carregada do sentido judaico: se somos escolhidos, não é para nosso próprio benefício, mas para o benefício de todos. Se somos cumulados de graça no Bem Amado, é para que todos sejam beneficiados por isso e se descubram, também eles, amados por um Deus que acolhe.


Fomos criados a imagem e semelhança do Amor, a qual somos chamados a realizar numa vida de relação com um Deus que nos quer livres. Esse é certamente o retrato do Éden. Um jardim, um paraíso, muito menos um lugar de saudade, muito mais um lugar de esperança: um lugar onde Deus e homem convivam juntos, não como competidores, não em disputa, mas em relação de comunhão: o homem e seu Mistério; Deus e seu mistério. Mas o homem não descansa mais do que um dia no paraíso, porque ao invés dessa relação, o homem quer ser, ele mesmo, Deus. O pecado não é desobediência a Deusao comer de um fruto, apenas, mas é antes de mais nada, não acolher a condição humana, querendo fazer-se Deus. Uma tentação antiga: sempre insatisfeito, sempre à procura de tornar-se melhor e mais poderoso do que realmente é, o homem se esquece que sua dignidade reside exatamente naquilo de que ele quer prescindir – sua própria humanidade.


O relato da primeira leitura (Gn 3, 9-15. 20) fala desse pecado originário e originante. Não se tratando de uma crônica histórica ou, tampouco, de uma especulação filosófica sobre a origem do mal e os problemas da mesma frente à onisciência divina, o que o relato pretende é imaginar miticamente que a desordem e a desarmonia na criação entraram, aí, em algum momento e, certamente, o motivo disso é que o homem rivaliza com o mistério de sua própria vida e coração. O relato mostra a desarmonia que decorre daí: “fiquei com medo... me escondi”. Esconder-se de Deus não é fugir de si? Essa desarmonia entre homem e Deus, manifesta-se, por consequência, entre o homem e a mulher: “foi ela que me deu...”. Começa a ciranda de acusações, onde um culpa o outro, para terminar em ninguém se assumindo como parte responsável pelo mal que entra no mundo, quando a gente fecha os olhos para tudo aquilo que é mais humano. A resolução do relato, então, é mostrar a serpente amaldiçoada. A leitura salta o castigo que recai sobre homem e mulher, castigo esse que vem recheado da ajuda que Deus garante para que eles continuem vivendo; um paradoxo, portanto, ao gosto da literatura bíblica.


Acontece que a teologia que decorre desse relato é tudo menos um reconhecimento da narrativa e seus dilemas e muito mais uma dogmatização do pecado original, seguida de uma forte culpabilização. O que não devemos nos esquecer é que antes do pecado, está a graça. Antes do pecado original, fomos criados à imagem e semelhança de Deus. O pecado é capaz de fraturar nossa relação com Deus, mas não é capaz de desfear a imagem dele em nós. O pecado também não nos pode fazer esquecer de que a graça tudo antecede e de que a graça em que fomos criados é a graça a que nossa salvação nos fará recordar e retornar. Isso quer dizer que Deus tomará a nossa carne não para arrancar o pecado do mundo; isso também acontece, mas como efeito secundário. A motivação primária da vinda de Deus ao nosso meio é justamente levar-nos à comunhão com ele; graça das graças. Se o pecado atrapalha essa comunhão, logo ele também é superado.


Finalmente, encontramos o evangelho dessa liturgia (Lc 1, 26-34). Ele narra o anúncio do anjo a Maria: Deus irá agir na história, dando-nos seu filho. Mas não sem a participação humana. Maria não é forçada a corresponder. Podemos dizer, inclusive, que a vontade de Deus não chega à fórceps, sobrepondo-se ao desejo dessa mulher e coagindo-a a escolher algo que nunca tenha feito parte de sua esperança. Ainda que Maria, uma mulher judia, não pudesse compreender o que significava ser mãe do Filho de Deus, ninguém está autorizado a dizer que essa não fosse também sua expectativa, sua esperança, o sonho de seu coração; gerar o divino. Vê-lo irromper de dentro da história e não de fora, para o bem de todos; uma maravilha para si e para todas as gerações. Não era essa a esperança de um povo? Deus e mulher aqui não estão sobrepostos um ao outro; nem a vontade divina aqui é uma sujeição, mas é a realização do desejo e esperança de uma mulher e de um povo (eleição), para o bem de todos os povos e nações, de todos os tempos e lugares (não seleção). Maria é a mulher cheia de graça, cuja descendência (seu Filho) vai pisar a cabeça da serpente (Gn 3, 15). Aquela que escuta e põe-se a serviço da Palavra, dizendo seu “faça-se” (tão divino quanto o “Faça-se” da criação).É modelo de mulher que antes do Cristo, já mostra sua abertura ao serviço, além da esperança nele; ou seja, revela sua predestinação.


E é assim que podemos falar da Imaculada Conceição de Maria. A Sagrada Escritura, na realidade, silencia sobre ela. Mas ainda podemos tentar um sentido espiritual para este dogma. Para tanto, seria um absurdo fazer voz aos teólogos que dizem que a procriação de Maria tem algo de diferente da nossa. Que ela teria sido preservada de uma mancha, resultado do nascimento de um ser humano pelo processo de amor conjugal. Que exista o pecado original, isso é indiscutível, que ele seja transmitido por geração, é tolice. O nascimento de qualquer ser humano é um dom, uma graça de Deus. Esses mal-entendidos estão na mente de muitos cristãos e precisam ser superados. O que a Igreja afirma, isso sim, é que Maria foi revestida desde o início de sua existência com a graça santificante, por consideração aos méritos de seu Filho. A Imaculada Conceição consiste, portanto, na “possessão da vida divina da graça” (Rahner) desde o começo de sua existência, para que cheia de graça ela se pudesse tornar a mãe do Redentor.


Essa discussão, muito mais ampla do que podemos dar conta aqui, faz uma questão; o que é anterior: a graça ou o pecado? Na vida de Maria, certamente, a graça, dir-nos-á o dogma. Mas ena nossa vida? Também! Porque também nós fomos predestinados, já no desejo e na vontade de Deus a sermos segundo seu amor. Para isso ele nos aponta, para isso ele pretende nos conduzir. Temos dificuldade de aceitar que somos destinados para a graça, porque, na realidade, nós nos acreditamos destinados para o pecado. Basta para isso, lembrar como nós mesmos nos justificamos cotidianamente: pecar é humano. Pecado não é destino. Ele não nos define, não nos constitui. O pecado é aquilo que se antepõe à humanidade. Para escapar a esse erro, falta lembrar que pecado é aquilo que deliberadamente, intencionalmente, aplicando nossa liberdade fundamental, escolhemos e que é completamente distinto da humanidade a que somos chamados.


Entretanto, mesmo quando, por causa do pecado, nos afastamos dessa destinação ao amor e serviço, Deus nos reconduz com seu amor. É dizer: o pecado não é nosso destino, o amor sim. E para ele somos vocacionados e amparados por um Deus que cria, recria (salva) e santifica.


Maria é, por fim, sinal de fidelidade. De quem escolheu a graça como destino, tornando-se fiel à Palavra, abrindo-se a ela, procurando vivê-la com solicitude, aprendendo dela, deixando-a atravessar seu coração, como aquela espada que separa e ajuda a discernir; perfeita discípula, portanto, a fim de que nós também o sejamos. Escolhida para o Cristo, por meio do qual todos nós também fomos escolhidos. Predestinados, cheios da graça que antecede todo pecado e superabunda onde o pecado é abundante, somos convidados a olhar para o modelo de Maria e dizer com ela: “eis aqui a(o) serva(o) do Senhor, faça-se em mim, segundo a tua palavra” (Lc 1, 38).