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35. Desde Dentro (Mc 13,14-37)

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11.06.2014 | 10 minutos de leitura
Frei João F. Júnior - OFMCap
Curso Bíblico
35. Desde Dentro (Mc 13,14-37)

13


14 “Quando virdes a abominação desoladora instalada onde não deve – o leitor entenda! –, os que estiverem na Judéia fujam para as montanhas.
15 Quem estiver no terraço não desça, nem entre em casa para pegar coisa alguma;
16 e quem estiver no campo não volte atrás para pegar o manto.
17 Ai das mulheres grávidas e das que estiverem amamentando, naqueles dias.
18Orai para que não aconteça no inverno.
19 Pois aqueles dias serão de tanta aflição como nunca houve, desde o início do mundo que Deus criou até agora, e nunca mais haverá.
20 E se o Senhor não encurtasse aqueles dias, ninguém escaparia; mas por causa dos seus eleitos,encurtou aqueles dias.
21 Se então alguém vos disser: ‘O Cristo está aqui’ ou ‘Ele está ali’,não acrediteis.
22 De fato, surgirão falsos cristos e falsos profetas, que farão sinais e prodígios capazes de enganar, se possível, até os eleitos.
23 Cuidado, pois! Eu vos preveni de tudo.
24 “Mas, naqueles dias, depois daquela aflição, o sol ficará escuro e a lua perderá sua claridade,
25 as estrelas estarão caindo do céu e as potências celestes serão abaladas.
26 Então verão o Filho do Homem vindo nas nuvens com grande poder e glória.
27Ele enviará os anjos para reunir os seus eleitos dos quatro cantos da terra, da extremidade da terra à extremidade do céu.
28 “Aprendei da figueira a lição: quando seus ramos vicejam e as folhas começam a brotar,sabeis que o verão está perto.
29 Vós, do mesmo modo, quando virdes acontecer estas coisas,ficai sabendo que está próximo, às portas.
30 Em verdade vos digo: esta geração não passará até que tudo isso aconteça.
31 O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não passarão.
32 Ora, quanto àquele dia ou hora, ninguém tem conhecimento, nem os anjos do céu, nem mesmo o Filho. Só o Pai.
33 “Cuidado! Ficai atentos, pois não sabeis quando chegará o momento.
34 É como um homem que, ao viajar, deixou sua casa e confiou a responsabilidade a seus servos, a cada um sua tarefa, mandando que o porteiro ficasse vigiando.
35 Vigiai, portanto, pois não sabeis quando o senhor da casa volta: à tarde, à meia-noite, de madrugada ou ao amanhecer.
36 Não aconteça que, vindo de repente, vos encontre dormindo.
37 O que vos digo, digo a todos:vigiai!”.

 


Situando...


Nas horas derradeiras da vida de Jesus, Mc o faz pronunciar um discurso sobre as coisas últimas da vida do mundo. Como já vimos (cf. Estudo 34), não se trata propriamente daquilo que ocorrerá por último no “fim dos tempos”, no desfecho da história;mas daquelas esperanças últimas e definitivas, que conferem sentido ao presente da vida, pois a ultimidade da vida não está em seu último suspiro, mas em cada respiro que lhe permite viver.


Desde baixo

 Jesus continua seu “discurso escatológico”, no Monte das Oliveiras, à vista de Jerusalém (Mc 13,3). Ou seja, se refere ainda à novidade do Reino que chegou: um Reino que eclode lentamente na história e a transforma desde dentro, até o dia de se implantar totalmente, aos olhos de todos; um Reino que enquanto floresce,supera tudo quanto de velho ainda exista – a começar pelas estruturas injustas que subsistem no coração humano, nas culturas e nas sociedades. Também já vimos que Mc descreve essa esperança utilizando-se do contexto das guerras instaladas entre os judeus e os romanos, acontecidas por ocasião da redação do Evangelho, de modo que o resultado são narrativas fortemente simbólicas – que exigem cuidadosa interpretação.


Jesus menciona a “Abominação Desoladora instalada onde não deve” (v. 14). E Mc ainda acrescenta sutilmente: “que o leitor entenda”. Como frequentemente ocorre na literatura apocalíptica (cf. Estudo 34), o discurso anuncia as expectativas valendo-se de algo que já ocorreu. Em 175 a.C., subiu ao trono o rei selêucida Antíoco IV Epífanes. Entre seus domínios, estava a Palestina, que integrava a província da Síria e da Fenícia. No ano 167 a.C., retornado de sua conquista de Alexandria, Antíoco profanou o Templo de Jerusalém: mandou edificar uma estátua de Zeus sobre o altar dedicado ao Deus de Israel e ofereceu ali sacrifícios de animais impuros. Essa ousadia do rei não só deixou perplexas as autoridades judaicas e todo o povo, mas também marcou a sujeição completa de Jerusalém ao governo selêucida, sem os privilégios concedidos pelos reis anteriores. Esse episódio foi lembrado pela Tradição de Israel como a “Abominação Desoladora” ou o “Ídolo Abominável” (cf. 1Mc 1,63ss; Dn 9,27; 11,31; 12,11). Os leitores de Mc conheciam os textos e a memória desses acontecimentos – daí a sutileza: “que o leitor entenda”. Ora, se Mc está invocando a imagem mais emblemática da completa dominação grega sobre Jerusalém – e faz isso no contexto das revoltas contra Roma – a mensagem logo se desvela: assim como os gregos dominaram e destruíram, também os romanos o farão (ou melhor, já estão fazendo, enquanto o texto de Mc é escrito). Quando a “abominação desoladora” for colocada de novo no Templo, ou seja, quando as insígnias imperiais marcharem contra a cidade, já não haverá o que fazer. Ao que parece, Marcos dá por certa e rápida a vitória romana, pois adverte que todos “fujam para as montanhas” e não voltem atrás para apanhar coisa alguma, sequer a mínima proteção de um manto (v. 15-16). O sofrimento será enorme e a destruição completa; não haverá por onde ser pior (v. 19). Tanto que Marcos lamenta a situação das gestantes e das crianças, em meio à guerra, pois para estas – bem mais fragilizadas que todos os outros – a situação será ainda mais dura (v. 17-18). Mesmo que não tenha presenciado tudo isso, a descrição de Marcos parece muito adequada ao cenário de desolação que nos chega através da história do cerco romano de Jerusalém, no ano 70.


Em seguida, um consolo e uma advertência. Ainda que agudos sejam os sofrimentos (os da guerra, mas também os inúmeros e inevitáveis infortúnios da vida), o “Senhor encurta esse dia” de tormentos para nos salvar (v. 20), jamais abandonando os seus amados à dor e à morte. Lá onde estiverem entrincheirados e cerceados os pequeninos, lá onde cada lágrima se derramar, o Ressuscitado estará com eles – sempre. Porém, é preciso estar atento. Pois, sobretudo em períodos de desgraça e dificuldade, surgem muitas vozes a propagar ilusões. “O Cristo está aqui, ou ali” (v. 21), como se a presença do Senhor evitasse o sofrimento e as angústias inerentes à vida. “Não acrediteis” nesses sinais e prodígios enganosos, diz Jesus (v. 22-23). A fé não evitará a ninguém os reveses e as incertezas. Enquanto caminharmos na história, entre as sementes do Reino ainda não totalmente germinadas, estaremos sujeitos às ambiguidades e às contradições do mundo e da vida. Olhá-las com os olhos da fé permitem enfrentá-las com serena coragem. E isso basta.


Por fim, a esperança definitiva: a de que, no fim de tudo, somente o amor permaneça; de que o Senhor mesmo tome nas mãos a débil história das conquistas humanas e dê a ela um sentido derradeiro; de que prevaleça sobre os fracassos a realização plena de todas as possibilidades do ser humano e do mundo. Nas palavras de Mc, essa esperança aponta para algo como a “vinda do Filho do Homem” (cf. Dn 7,13) que reunirá todos os seus amados, dispersos pelos quatro cantos da terra (v. 26-27). Não sem razão, à vista desse seu destino final, as bases mais sólidas do universo inteiro se abalam. Pois só Deus é absolutamente Definitivo e, diante dele, tudo o mais é provisório: os astros se apagam, as estrelas despencam do céu, os montes se agitam... São as imagens da manifestação de Deus, recorrentes nas Escrituras judaicas.


Desde perto

A pergunta pelo “quando essas coisas acontecerão” persiste. Foi essa dúvida dos discípulos que gerou o longo discurso de Jesus (Mc 13,4). A resposta do Mestre permanece a mesma: não importa muito o “quando será”, mas o “como proceder”. Afinal, esse dia supremo já começou e, em cada nova encruzilhada da história, esse novo tempo se faz presença mais efetiva. Finalmente, compreendemos a mensagem do cap. 13: a vigilância. Tal como a figueira dá sinais da chegada do verão (v. 28), é preciso estar atentos para não perder os sinais do Reino que vicejam no campo do mundo (v. 29), convidando a descobrir a presença de Deus que, a partir de dentro, atrai para si os corações e a história humana.


Ao que parece, a comunidade cristã esperava que tudo isso acontecesse rapidamente, que o coroamento definitivo da história, a Parusia, viesse logo (v. 30). É certo que cada geração já experimenta, a seu modo e nas condições que lhe são oferecidas, certa “definitividade” da presença de Deus. No fundo, cada um de nós o encontra ao longo da vida e, de modo definitivo, na morte. Mas um dia final, capaz de plenificar todos os esforços de bondade e os gestos de fraternidade, os sonhos e os planos, os desejos e as utopias, de todos os tempos – esse dia permanece ainda uma esperança. Quando virá? Ninguém sabe (v. 32) e nem precisa saber. Pois basta-nos a fé, que nos garante que essa esperança não é vã. Pelo contrário, exatamente porque encontram correspondência em cada coração humano, essas são “palavras que não passam” (v. 31).


Desde dentro


Jesus conclui com uma parábola que nos é muito familiar (vv. 33-37). A esperança nos põe na situação de servos que, mesmo não sabendo a que horas vem o patrão, cuidam dos afazeres e não cochilam em serviço. Afinal, pode ser que o patrão retorne numa hora inesperada, tarde da noite ou ao amanhecer ainda escuro. No fundo, é como se o patrão nunca tivesse se ausentado: os servos prosseguem o cuidado de suas tarefas mesmo não estando sob o olhar atento do patrão. Isso porque não estão submetidos a uma obrigação que lhes é externa, mas convivem com o patrão dentro de si mesmos. São livres, pois obedientes à voz que lhes fala a partir do coração. Também a história humana é assim. Agimos e vivemos não porque estamos sob o olhar vigilante de Deus, ameaçados por seu julgamento ou temerosos por seu retorno. Deus não nos virá de fora, mas já está em nós, sempre esteve. E, desde dentro, movem a vida, a história e os corações rumo à definitividade da esperança. Não somos servos que temem a volta do patrão e, por isso, trabalham. Nós o trazemos sempre dentro de nós, como consolo e força às urgentes tarefas de um Reino cuja gestação ainda não acabou.


 * * *


Jesus chama à realização mais plena de tudo aquilo que de melhor podemos oferecer. O Reino se faz exatamente disto: das sementes de plenitude escondidas sob o frágil, dos gérmens de eternidade espalhadas no provisório, dos brotos de infinitude na gravidez dos limites humanos. Seguir Jesus implica estar vigilantes e atentos a essa presença que nos habita e anseia por plenificar-se em nós.