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34. Os 'impuros' entrarão no Reino dos Céus

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10.08.2017 | 14 minutos de leitura
Pe. Eduardo César Rodrigues Calil
Diversos
34. Os 'impuros' entrarão no Reino dos Céus

“Ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons, e faz chover sobre justos e injustos” (Mt 5, 45)


Introdução


Nos últimos domingos, a liturgia apresentou o discurso em parábolas de Jesus. As parábolas remontam o modo sensível com que o Senhor falava do Reino de Deus, dando-o a conhecer segundo imagens de seu tempo. Embora retiradas do universo em que vivia, as imagens que Jesus utilizava não deixavam de causar surpresa, porque de algum modo flexibilizavam as concepções frequentes e forçavam as pessoas a reverem seus preconceitos.


Ora, nós sabemos que todo símbolo tem ambivalências; nós poderíamos falar ainda de uma polivocidade dos sentidos de um símbolo, sendo que alguns até se contradizem. Não é diferente com as parábolas. Mas, segundo os estudiosos, dentro de um ambiente específico, cultural e religioso, as imagens assumem um significado muito peculiar. Quero recuperar aqui uma das parábolas mais chocantes de Jesus, embora seja aparentemente simples. Trata-se da parábola do fermento inserido na massa. Vou seguir a interpretação de um teólogo muito querido, o espanhol Xabier Pikaza e, em seguida, gostaria de refletir sobre as provocações que a própria parábola impõe, especialmente para a Igreja.




  1. O símbolo dá o que pensar ou: atentar-se à Vida.


Vamos à parábola:


“o Reino do céus é semelhante ao fermento que uma mulher tomou e pôs em três medidas de farinha, até que tudo ficasse fermentado.”


É só isso. Mas não se enganem. Esse verso tão singelo, que de modo sensível recolhe um hábito das mulheres da época, que mostra a atenção de Jesus a seu trabalho certamente pouco valorizado, tem um sentido bem mais profundo.


O primeiro deles: o Reino dos céus, ou Reino de Deus, é coisa de mulheres, não só de varões. Não basta fazer do símbolo outro símbolo; tornar a imagem uma alegoria como alguns querem, dizendo que a mulher representa a sabedoria de Deus, fazendo assim mais aceitável sua atuação aí, como personagem principal. A mulher traz consigo a Sabedoria, que é o próprio fermento para a massa. É um verdadeiro ministério o que ela realiza: levedar a massa do mundo, com a sabedoria de Deus.


De acordo com o teólogo espanhol Xabier Pikaza, a massa está dividida em três partes. A mulher a amassa e inclui a levedura. O que chama a atenção para o teólogo é que a mulher, na cultura judaica, é considerada impura, já que menstrua mensalmente, o que lha obriga a passar por rituais de purificação extensos. Que ela esteja aí, no papel principal da parábola, é notório, porque justamente por causa de sua impureza ela estava excluída do serviço religioso.  Os homens podem até excluir a mulher do templo e do serviço ‘sagrado’, mas para Jesus a mulher está serviço de algo mais: do Reino e, logo, da Vida com toda sua beleza e ambivalência.


O segundo: vale a pena notar que a levedura, o fermento da época, não é o “o pó Royal” de hoje. O fermento é pão levedado, pão apodrecido, um símbolo bastante ambivalente na teologia bíblica. O teólogo espanhol dirá que ao mesmo tempo em que a levedura é, sem dúvida, boa para fermentar o pão, é também símbolo de desintegração e impureza. Basta notar que, em outras passagens, fala-se dos pães oferecidos no templo: são todos ázimos, ou seja, sem fermento, sem a massa podre levedada. Também na páscoa, todos deveriam comer pães ázimos (Cf. Gn 19,3; Ex 8,12-20; Lev 2,4). Paulo também exorta a comunidade de Coríntios a abandonar o levedo da malícia e da maldade e a buscar os pães ázimos da sinceridade e verdade (1Cor 5,9). Mas, para Jesus, o pão do Reino dos Céus não é sem levedo, separado e santo como os pães ofertados no sacrifício, mas ele possui a fermentação “perigosa”.


Essa é uma imagem atrevida, porque separa o Reino dos Céus do serviço do templo. Do serviço exclusivo dos varões e também de suas ofertas, de seus costumes de pureza. O Reino está presente é na massa da vida, ela mesma ambígua, cheia de contradições e é o Reino que fermenta essa massa. E a própria levedura incluída aí, embora não seja pura, serve para a massa, fá-la crescer. Aqui, ela é boa e necessária. E ao apresentar uma mulher trabalhando, Jesus acaba sendo mais atrevido ainda, mostrando que o Reino está vinculado muito mais ao serviço das mulheres, sensíveis à massa da vida e suas contradições, do que ao higienismo litúrgico dos varões e suas muitas regras de purificação (que inclusive sustentavam a corrupção do templo, coisa à qual nem vamos nos ater). A Vida, suas dores e alegrias, suas lágrimas e risos, suas máculas e santidades, o mundo e suas contradições... é a esse mundo que a mulher sensível está atenta, e não ao mundo das sacralidades separadas da existência. Por isso, o Reino dos céus só o compreende quem passa incontornavelmente pelo exemplo dessas mulheres.


É difícil entender o que significam as três porções de farinha da parábola, porém elas podem ser entendidas na linha da plenitude, ou do cuidado para com a fermentação. O que parece mais evidente é que a parábola quer mostrar a abundância da fermentação que acontece na inaparência, na discrição, através do que parece ser desprezível. A mulher, por sua vez, deixa claro o texto, não sabe apenas fermentar a massa, coisa que os fariseus e saduceus (os homens do sagrado) não sabem, mas também sabe operar com diferentes porções de massa, mostrando destreza. É de se aprender...


Quantos não devem ter escutado isso com estupor! Como Deus pode se valer do impuro? Como Deus pode contar até com isso para fazer o seu Reinado acontecer? Os puristas não devem ter gostado. Os perfeccionistas não devem ter achado interessante a parábola usada por Jesus. Os “teólogos” e os outros proprietários de Deus devem ter achado um absurdo.




  1. Quando o “impuro” conta...


Uma tentação tão antiga e tão nova: exigir pureza, afastar os supostos impuros, como se deles pudessem vir apenas impurezas, congelando-os para sempre nos erros de ontem ou nos de agora, não permitindo que a vida seja o que é: mudança.


O higienismo sagrado continua ainda hoje. Dentro de seus muros, a Igreja continua exigindo de seus membros uma perfeição impossível, quase desumanizadora. Para ser perfeito, pede-se que sejam cortadas todas as falhas. Haverá, afinal, alguém santo nesses moldes; sem rusgas, sem desacertos? Ninguém.


Na formação para o ministério ordenado, deparamo-nos algumas vezes com uma formação que não valoriza as dimensões do sujeito, nem sequer as trabalha, mas que não se cansa de exigir o que não dá, de pedir o que não oferece. Ao invés de utilizar-se de uma sabedoria que ajude os formandos a se integrarem, que colabore no caminho árduo da humanização, forma-os deformando-os. Para caberem na ‘cama’ da Igreja, será preciso cortar o quê nos sujeitos? A fim de que caibam na estrutura, será preciso deformar o quê na autenticidade dos indivíduos? Muitas vezes, não são considerados os apelos do formando; suas angústias, não poucas vezes, são terceirizadas. Ainda hoje, para surpresa de muitos, a expectativa na recepção de um candidato para a vida no ministério ordenado se parece com a expectativa por anjos, não por homens. Depois, os mesmos só poderão reproduzir esse mesmo tratamento, lidando com homens e mulheres sem conhecer as funduras mais sofridas do coração humano, porque aprenderam apenas a ignorá-las, a escondê-las. Sim. Uma exigência excessiva só ensina a perversidade. Um puritanismo escrupuloso, uma ideia de sagrado afastada das contradições mais humanas só poderá gerar gente dúbia, incapaz de tomar a vida nas mãos, de encarar sua própria face e, portanto, só gerará gente atrás de máscaras que nem sequer reconhecem mais. Gente até ‘santa’, sem nenhuma lacuna, mas sem nenhuma compreensão para com as dores dos outros.


Por sua vez, o povo, em muitos cenários eclesiais, vive uma experiência de Deus que se resume a evitar pecados, a não o ofender e não fazer nada de errado. Uma espiritualidade da penitência, nunca da graça; da vigilância, nunca do numinoso. Embora a nossa teologia tenha conseguido convencer as multidões da misericórdia de Deus, isso não repercutiu num modo de viver mais leve. As pessoas mais religiosas ainda vivem a fé de um jeito perfeccionista, cortando defeitos aqui e ali, aparando arestas, sofrendo com suas próprias fragilidades, odiando-se por errar aqui e acolá, obsessivas e neuróticas com o próprio erro e o alheio. Enfim, incomodadas por serem criaturas. Não querem participar de determinada pastoral, porque se sentem indignas; nem sequer olham para a eucaristia por causa de seus pecados, sofrem por terem carne e sangue e por não terem sido feitas como os anjos... Isso existe ainda.


 Não podemos, é claro, escamotear a questão, esquecendo que existe uma superculpabilização do Ocidente, promovida anos a fio por uma teologia do pecado e reforçada, especialmente, por algumas espiritualidades fundamentalistas, escrupulosas e doentias que defendem a perfeição como moeda de troca, a fim de que Deus retribua com seu amor. Assoma a isso uma catequese de ‘catecismo’ e não de intimidade com Deus, que não o torna sensível, mas apenas contribui para o seu ‘escondimento’. Não é fácil, pois, limpar a eira de uma espiritualidade ranzinza que nós cultivamos há muito tempo. Por isso, restam pessoas até com boníssimas intenções, mas culpadas demais. E culpa em excesso não ajuda, esmaga.


Será essa experiência do sagrado, uma experiência saudável? E salvífica? Parece que não, porque desenvolve nos sujeitos perversão e neurose, obsessão e sofrimento, ao invés de liberdade. E se vamos falar de libertação, já não é mais possível falar simplesmente em libertar das causas de opressão político-econômicas. É preciso libertar também da religião doentia.


É evidente que com isso, não estamos dizendo que as pessoas não devam buscar sempre a conversão, ou o “aperfeiçoamento”. Tampouco que devam se entregar ao pecado. Todos estamos nesse processo de autoconstrução e melhoramento diário. E nessa trajetória, não há ninguém que seja perfeitamente coerente, ou totalmente hipócrita, porque não estamos prontos. Estamos, isso sim, num estado de mudança constante. Podemos dar um sentido à essa mudança. Podemos, inclusive, sair do sem sentido em que vivemos com frequência e orientar nossa vida para algum sentido que dê alegria e liberdade. O medo do ‘derretimento de tudo’ em que vivem as culturas contemporâneas não pode ser argumento para ressuscitar o que outrora não trouxe liberdade, mas aprisionou; matou a carne e assassinou o espírito.  É preciso, ao invés de buscar posturas enrijecidas, caminhar cada vez mais para coincidir com o próprio coração e com aquilo que é, de fato, verdade que liberta nossa vida. Se essa verdade é Jesus, é preciso caminhar para configurar-se a ele. Mas essa caminhada não passará pela negação de nossa humanidade, nem tampouco consistirá num desprezo pela vida com suas contradições; mas exigirá misericórdia, até mesmo para conosco. Tudo o que não for assumido, não será salvo; logo, a maior conversão só pode ser aquela que se faz para o amor. Isso significa que algumas coisas não devem ser arrancadas em nós, mas precisamente amadas; só assim serão integradas.


Deus não escolhe segundo a pureza de ninguém, nem sequer age através de santos apenas. Ele age segundo seu amor e, para nos confundir em nossa arrogância, às vezes, Ele evangeliza por intermédio do “falho” e do “errado”. Não é da virtude do forte que ele se vale tantas vezes, mas da fraqueza do impuro, conduzindo-o à perfeição que é viver em seu amor e misericórdia. Mesmo da mão impura dos pecadores, dos falhos, o Reino de Deus – o fermento – pode ser inserido na massa. Incomoda?


Eu sei que incomoda, porque nós não queremos ver o mal prosperar. Por isso, é preciso dizer que Deus não é leniente com o mal e com a injustiça, mas ele não é purista e sabe das ambiguidades humanas. Ele mesmo é que nos dá suporte, nos cobre com seu perdão, ajuda na nossa conversão. Mas isso incomoda, sobretudo, porque não reconhecemos nossos próprios limites, porque não somos hábeis com nossas próprias dificuldades. Deus não afasta o impuro, conta até com ele, desde que ele esteja disposto a servi-lo, a caminhar no seu amor e na sua justiça, a se transformar.


E o que dizer também dos que foram causa de escândalo? Esses que erraram, que caíram, que desistiram, que negaram a fé? Os mesmos que decidiram voltar, arrependidos? Seu arrependimento jamais valerá? Deverão ser tratados como uma classe inferior, deverão assumir postos inferiores, porque neles jamais se depositará a confiança de antes? Ficarão para sempre engessados ao próprio erro que já passou, medidos pela fraqueza que uma vez cometeram, impedidos de mudar, enquanto a própria vida muda incessantemente?


Dizemos que nossa Igreja é perita em humanidades, mas não sabemos lidar com humanidades. O mundo nos exige uma coerência que não pode nos pressionar a não agir com misericórdia. A justiça do mundo não é a nossa. Eu sei que isso deve gerar desconforto, porque também devemos garantir a justiça. Não estou negando isso. Especialmente em casos mais difíceis. Ora, mas também não devemos negar que, muitas vezes, querendo garantir a justiça, abandonamos, negligenciamos e entregamos os pecadores aos apedrejadores, para salvaguardar a pele da instituição, mesmo em detrimento do sujeito. Fazemo-lo esquecendo a suscetibilidade ao erro que todos possuímos, fazemo-lo acobertando nossos próprios dilemas e contradições. Quando o outro é o problema, eu não o sou. Esquecemos assim de garantir que o outro progrida, que deixe o próprio erro para trás, que se emende. Mesmo das mãos desses “impuros”, a massa do mundo pode ser fermentada com o Reino de Deus.


E o que dizer ainda dos que a Igreja afasta? Dos que não podem se aproximar dessa ou outra função porque são divorciados, quando na verdade são muito mais fieis no testemunho e muito mais trabalhadores na causa do Reino? O que dizer das mulheres que não se aproximam da comunhão porque não deram certo com o marido, ou vice-versa? Dos homoafetivos, que são considerados impuros? Às ordens sacras, homossexuais com tendências arraigadas não devem ser admitidos; quanta hipocrisia! As mulheres são sempre colocadas em posição inferior, poucas vezes reconhecidas; que hipocrisia! O Reino de Deus não é uma obra que vem apenas “das mãos santas” dos sacerdotes, nem acontece no templo com seus pães ázimos; ele acontece também entre os pés descalços, sujos e feridos, que pisam o chão desse mundo.


Conclusão.


Ao ouvirmos a parábola do fermento incluído na massa, percebemos que o considerado impuro, pode fermentar a massa. Que apesar de contradições, dilemas, erros, o Reino de Deus ainda pode acontecer, vindo inclusive das mãos que queremos excluir. Nós todos somos convidados a progredir na configuração a Cristo e na conversão, mas desde já, Deus se vale de nossa miséria.


A Igreja nunca foi nem nunca será habitação apenas para os que têm as mãos limpas e coração puro, mas para todos aqueles que queiram contar com a salvação que vem de Deus. Não devemos nos esquecer que é Deus mesmo quem nos faz santos e nos convida incessantemente para sermos Santos como ele é Santo: no amor e no perdão. Entretanto, há tanta gente querendo se salvar por si mesma, e conforme os próprios méritos ganhar a Deus, que vai se fechando inclusive a Ele.


O Reino dos Céus não é a vida após a morte, mas é a vida que já deve começar aqui; a vida abundante que, apesar de suas dores e penúrias, de suas cruzes e dilemas, de seus erros e falhas, pode se fazer doação e serviço, como fermento que leveda a massa.