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32. A César e a Deus (Mc 11,27 – 12,17)

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22.05.2014 | 14 minutos de leitura
Frei João F. Júnior - OFMCap
Curso Bíblico
32. A César e a Deus (Mc 11,27 – 12,17)

11


27 Jesus e os discípulos foram outra vez a Jerusalém. Enquanto andava pelo templo, os sumos sacerdotes, os escribas e os anciãos se aproximaram de Jesus e lhe perguntaram:
28 “Com que autoridade fazes essas coisas? Quem te deu autoridade para fazer isso?”
29 Jesus disse:“Vou fazer-vos uma só pergunta. Respondei-me, que eu vos direi com que autoridade faço isso.
30 O batismo de João era do céu ou dos homens? Respondei-me!”
31 Eles discutiam entre si: “Se respondermos: ‘Do céu’, ele dirá: ‘Por que não acreditastes em João?’
32 Vamos então responder: ‘Dos homens’?...” – Eles tinham medo do povo, já que todos diziam que João era realmente um profeta.
33 Responderam então a Jesus: “Não sabemos”. E Jesus retrucou-lhes: “Pois eu também não vos digo com que autoridade faço essas coisas!”

12


1 Jesus começou a falar-lhes em parábolas: “Um homem plantou uma vinha, pôs uma cerca em volta, cavou um lagar para pisar as uvas e construiu uma torre de guarda. Ele a alugou a uns agricultores e viajou para longe.
2 Depois mandou um servo para receber dos agricultores a sua parte dos frutos da vinha.
3 Mas os agricultores o agarraram, bateram nele e  omandaram de volta sem nada.
4 O proprietário mandou novamente outro servo. Este foi espancado na cabeça e ainda o insultaram.
5 Mandou ainda um outro, e a esse mataram. E assim diversos outros:em uns bateram e a outros mataram.
6 Agora restava ainda alguém: o filho amado. Por último, então, enviou o filho aos agricultores, pensando: ‘A meu filho
respeitarão’.
7 Mas aqueles agricultores disseram uns aos outros: ‘Este é o herdeiro. Vamos matá-lo, e a herança será nossa’.
8 Agarraram o filho, mataram e o lançaram fora da vinha.
9Que fará o dono da vinha? Ele virá e fará perecer os agricultores, e entregará a vinha a outros.
10 Acaso não lestes na Escritura: ‘A pedra que os construtores rejeitaram, esta é que se tornou a pedra angular.
11 Isto foi feito pelo Senhor, e é admirável aos nossos olhos’?”
12 Eles procuravam prender Jesus, pois entenderam que tinha contado a parábola com referência a eles. Mas ficaram com medo da multidão; por isso, deixaram Jesus e foram embora.
13 Então, mandaram alguns fariseus e partidários de Herodes, para apanhar Jesus em alguma palavra.
14 Logo que chegaram, disseram-lhe: “Mestre, sabemos que és verdadeiro e não te deixas influenciar por ninguém. Tu não olhas a aparência das pessoas, mas ensinas segundo a verdade o caminho de Deus. Dize-nos: é permitido ou não pagar imposto a César?Devemos dá-lo ou não?”
15 Ele percebeu-lhes o fingimento e respondeu: “Por que me armais uma armadilha? Trazei-me a moeda do imposto para eu ver”.
16 Trouxeram-lhe uma moeda. Ele perguntou: “De quem é esta figura e a inscrição?”. Responderam: “De César”.
17 Então, Jesus disse: “Devolvei, pois, a César o que é de César ea Deus, o que é de Deus”. E estavam extremamente admirados a respeito dele.
 

Situando...

Na liberdade que lhe foi própria diante da religião de seu povo, Jesus questionou a autoridade do Templo (cf. Estudo 31). Consequentemente, desautorizou os sacrifícios e os sacerdotes, insinuou que o Pai está muito para além dos rituais prescritos e, mesmo sem o cumprimento dessas prescrições, é possível encontrá-lo e servi-lo – bastando para isso o coração sincero.Assim, Jesus não atinge apenas os apaixonados por certas experiências religiosas irrefletidas, que projetam nas estruturas humanas a reverência absoluta e a pertença radical que se deve só a Deus, mas também expõe os interesses escusos daqueles que vivem dessas estruturas religiosas usurpadoras.


Essa ofensa custará caro a Jesus. Mc insinua que essa foi “a gota d’água” para desencadear a trama para sua morte, perpetrada pelos sacerdotes, os saduceus e os escribas. Os textos seguintes (cap. 12 e 13) descreverão uma longa discussão entre Jesus e as autoridades. Mais que uma discussão historicamente acontecida, os relatos testemunham a incongruência entre o Reino anunciado por Jesus e as estruturas político–religiosas de Israel – tal como os compreendeu Marcos.


A frágil autoridade do poder

Jesus está de novo no Templo, com seus discípulos (v. 27). E justamente aqueles que tiveram a autoridade questionada por Jesus (sumos sacerdotes, escribas e anciãos) se aproximam dele para pôr em xeque sua autoridade (v. 28). Afinal, eles são as autoridades constituídas pela Tradição, pela Escritura, pela pertença à Tribo de Levi, ou mesmo pelo Império Romano, que patrocina o governo do Sinédrio. E Jesus, por outro lado, de onde deriva sua autoridade?


Já vimos que a “autoridade” foi uma característica do ensino de Jesus, desde o início do Evangelho de Mc (cf. Mc 1,21-28). Entretanto, sua autoridade não provém de nenhum ser humano que o legitime, mas do Pai mesmo, que o enviou. Enviado pelo Pai e guiado pelo Espírito, Jesus ensina e age “com autoridade” incomparável, a ponto de deixar “admirados” seus interlocutores.


A questão da autoridade, porém, levanta outro aspecto das estruturas religiosas: a origem da “autoridade” delegada a alguém determinará o compromisso dessa pessoa, no exercício de seu ofício sagrado. Se alguém recebe uma autoridade delegada pela comunidade, será legítimo representante dessa comunidade e exercerá sua autoridade como compromisso de serviço àqueles que o elegeram ministro. Pois, se o consenso dos irmãos lhe outorgou autoridade, a retirada desse consenso pode também deslegitimar seu ministério. Por outro lado, se alguém recebe sua autoridade de uma pessoa que lhe é superior, de uma instância “do alto”, de um poder político ou econômico, é natural que o investido da autoridade mantenha os olhos fitos naquele que o investiu (e que pode des-investir). Seu compromisso não se dirigirá propriamente ao ofício que lhe foi proposto ou às pessoas confiadas à sua guarda, mas à instância ou ao poderio que lhe respalda e garante o lugar que ocupa. Assim ocorreu com o Templo de Jerusalém. Nas mãos da rica aristocracia sacerdotal e legitimada pela dominação romana, a autoridade do Templo fica comprometida. Nessas condições, é inevitável que o Templo se volte para esses seus financiadores, deixando de lado o compromisso com Deus e o povo de Israel. Jesus, por outro lado, ao reconhecer no Pai a fonte de sua missão e de sua autoridade, se mantém disponível aos preferidos do mesmo Pai – os menores, mais frágeis e menos considerados.


Jesus toma a sério a pergunta dos sacerdotes, mas propõe outra, como condição de sua resposta. Aproveitando o assunto da “autoridade”, ele questiona: “de onde vem a autoridade de João Batista – do céu ou dos homens?” (v.30). A pergunta é capciosa, como notam os sacerdotes (v. 31-32). Pois se dissessem que a autoridade de João provinha de Deus, seriam culpados por não ter acreditado nele. Se desautorizassem João, dizendo que sua autoridade provinha “dos homens”, eles próprios perderiam credibilidade diante do povo, que tinha João como um verdadeiro profeta. Porém, é curioso que os sacerdotes considerem apenas as consequências políticas de suas possíveis respostas. Parece não interessar o que, de fato, significava para eles o batismo e a pregação de João, mas apenas o quanto ela os favorecia ou desfavorecia. Guiados por essa “prudência institucional”, eles respondem como todos os poderosos deste mundo, quando ameaçados pela necessidade de um posicionamento embaraçoso: “Não sabemos” (v. 33). Ao que Jesus nega-lhes a resposta sobre sua própria autoridade. Afinal, para Jesus, sua autoridade e a de João têm a mesma origem: o Pai. Mas, com tão perverso raciocínio dos sacerdotes, não é possível compreender essa autoridade “do céu”, situada muito para além das contabilidades minuciosas de poder e prestígio.


O sólido poder da autoridade

A resposta de Jesus à questão sobre a origem de sua autoridade vem na parábola seguinte, sobre um homem que plantou cuidadosamente uma vinha, arrendou-a a agricultores e viajou (Mc 12,1). A imagem é clara para qualquer judeu, quanto mais para as autoridades religiosas. Na tradição de Israel, Deus é comparado ao “dono da vinha”, que plantou e cultivou com esmero, cercou e protegeu seu povo (cf. p. ex.: Is 5,1ss; Ez 15,1-8; Sl 80,9-19). Na parábola de Jesus, porém, os agricultores arrendatários se revoltam contra o patrão e se arvoram donos da vinha. Negam-se a prestar contas de seus serviços, agridem e matam os servos enviados pelo patrão, até chegarem ao absurdo de matar o filho, o herdeiro, na ilusão de que, dali em diante, a vinha seria definitivamente deles (v. 2-8). A alusão à morte dos profetas e à morte do próprio Jesus são, aqui, quase inevitáveis. De modo que o patrão não terá alternativa senão fazer perecerem os agricultores e arrendar a vinha a outros (v. 9). E Jesus busca o testemunho da Escritura: a pedra rejeitada torna-se a pedra angular, em detrimento de todas as outras pedras aparentemente mais importantes (v. 10-11; cf. Sl 117[118],22-23). Está, pois, respondida a questão dos sacerdotes: se aqueles investidos de poder sagrado (sacerdotes, escribas e outros tantos) se esquecem da origem de sua autoridade, que é Deus, e pretendem se apossar da vinha (Israel, a religião do povo, os sacrifícios do povo) para proveito próprio, o “dono da vinha” virá e despedirá a todos, entregando a vinha a outros – exatamente àqueles rejeitados pelos agricultores assassinos. Só é legítima, portanto, a autoridade exercida para o bem e o cuidado daqueles que lhe foram confiados, atenta sempre à provisoriedade de sua condição de “arrendatários” de uma terra que não lhes pertence. O Templo não pertence aos sacerdotes, nem a Torah aos escribas. Eles são apenas “arrendatários” dos bens do céu, administradores e cultivadores dos rebentos divinos.


Os interlocutores compreenderam bem a parábola, a ponto de se firmarem mais uma vez no propósito de assassinar Jesus. Segundo Mc, não o fizeram ainda desta vez, por temerem a reação da multidão (v. 12). Não que a multidão pudesse fazer muito, mas um motim exporia as autoridades judaicas aos olhos atentos do Procurador Romano. Ou seja, os sacerdotes não temem o povo, mas Roma – de quem recebem o poder e em nome de quem governam.


A César e a Deus

Por fim, procurando ainda uma maneira de apanhar Jesus e forjar contra ele um crime aos olhos do povo, os sacerdotes e anciãos enviam a ele alguns fariseus e herodianos para uma discussão perigosa (v. 13). Interessante que, tradicionalmente, fariseus e saduceus não coadunam em muitas coisas. Têm entre si discordâncias doutrinais e políticas. Compreendem de forma muito distinta a Tradição de Israel e alimentam práticas muito diferentes junto ao povo. Mas, quando seus interesses são postos em questão por Jesus, não hesitam em se unir contra ele. Desta vez, a pergunta que trazem é particularmente embaraçosa, precedida por uma bajulação tão fingida que beira o ridículo. A pergunta é assim formulada: deve-se pagar o imposto a César, ou ainda, é lícito pagar os impostos cobrados por Roma? (v.14).


O embaraço da questão reside no quadro político da Palestina e nas inquietações populares no tempo de Jesus. O Império Romano entrara em Israel como aliado, contra os dominadores gregos (cf. Livros dos Macabeus). Submetidos os gregos, os romanos se apossam também da Palestina e a agregam à Província da Síria. A estratégia romana de dominação consistia não na abolição, mas na subordinação dos governos locais e na cobrança de impostos. Assim, durante a vida pública de Jesus, o Sinédrio continuava governando a Judeia, assim como Herodes Antipas continuava reinando sobre a Galileia. Todos, porém, submetidos ao Procurador Romano, residente em Cesareia Marítima. Nesse momento, por volta do ano 30, o Procurador era Pôncio Pilatos. A cobrança de impostos era também delegada a famílias influentes ou autoridades locais, que, por sua vez, entregavam esse desdenhoso ofício a empregados (os “publicanos”) que logo se enriqueciam pela desonestidade. O povo, naturalmente, abominava essa dominação que, politicamente sutil e sofisticada, gerava miséria, se opunha aos ideais messiânicos de Israel e despertava reações violentas. De modo que Jesus poderia se indispor de uma só vez com muitos movimentos do povo, caso se colocasse favorável à cobrança dos impostos, ou teria problemas com as autoridades imperiais, caso se pusesse contra o pagamento dos tributos. É preciso admitir: a armadilha foi bem arquitetada.


Há, porém, um problema. Os que levam a pergunta a Jesus são fariseus e partidários de Herodes, enviados pelos sacerdotes e escribas do Templo. A intenção é clara: envolver Jesus numa controvérsia simultaneamente religiosa (blasfêmia) e política (sublevação). Mas, com exceção talvez dos fariseus,esses são grupos que, embora formalmente até se oponham à cobrança dos impostos, para serem bem quistos pelo povo, na realidade vivem das benesses que advém desse vantajoso acordo com o Império. Comem das “migalhas das mesas de Roma”, com certeza, das beiras e das falcatruas políticas que lesam o povo e supostamente enganam o Império. Mas isso já lhes basta para o luxo e o conforto, o poder e a opressão que almejam. Jesus sabe disso e lhes desmascara a intenção (v. 15). Em vez de uma resposta simples, pede-lhes que lhe mostre uma moeda. Trazida a moeda, Jesus ainda lhes pergunta de quem o rosto e a inscrição nela contidos. Ao que prontamente confirmam: “De César” (v. 16).  Ora, é como se Jesus lhes dissesse: “Vejam, são vocês que trazem a moeda e reconhecem facilmente sua inscrição; estão envolvidos até a cabeça nesse jogo imundo, sobre o qual querem minha opinião”. De modo que a proposta de Jesus é audaciosa: “Devolvei a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (v. 17). O que equivale dizer: “Se vocês vivem da conivência com o Império, se sobrevivem graças às benesses que o poder de Roma lhes concede e se vocês tem sua autoridade legitimada por ele, pelo menos tenham a coragem de devolver a ele a parte que lhes exige nesse acordo. Ou tenham a hombridade de negar-se a esse jogo de favorecimentos, interesses e lucros – que não rende só ao Império –, mas também a vocês, enquanto custa a vida do povo. Não finjam estar contra a dominação de Roma, que garante a autoridade de vocês diante do povo. Se vocês fossem de fato autoridades legitimadas por Deus e não pelo poder, preocupariam-se com o povo e o defenderiam da exploração romana”. Pois, de fato, a vida e o povo pertencem a Deus e é a eles que as autoridades civis e religiosas devem servir. Ora, Marcos se irrita com tanta hipocrisia. Os poderosos do judaísmo querem usar Deus para se opor a César. Mas Deus não é manipulável. A ele deve ser devolvida a vida; não a moeda da corrupção romana que comprou as autoridades judaicas. Que pensem bem os fariseus e demais líderes se estão dando a Deus o que é devido ou se estão instrumentalizando-o em prol de causa própria. A Deus, a vida defendida com unhas e dentes, acima de tudo, como fez Jesus. Tudo o mais (a fraude, a mentira, a usurpação e o domínio) pertence a César e deve ser devolvido a ele. Deus não aceita negociação escusa”.


Embora esse texto, sobretudo o último versículo “Dai a César...” tenha sido recorrentemente usado para justificar o poder político e a obediência civil, vemos que Mc pretende dizer outra coisa. O que faz pensar na legitimidade de nossas instituições religiosas e nossas comunidades quando se tornam coniventes ou até cúmplices das mais ardilosas manobras políticas e financeiras. Serão capazes de servir simultaneamente a “César” e a Deus? Ou terminarão por sacrificar a César o povo que a Deus pertence? Como de costume, em Mc, todos ficam admirados com o ensinamento de Jesus, para que essa admiração os conduza à pergunta fundamental: “quem é ele?”.


* * *


O Reino de Deus e o “Reino de César” não são apenas diferentes, mas opostos. Porém, os dois encontram-se tão entremeados em nossa vida pessoal e em nossas instituições comunitárias que, às vezes, podemos cometer sérios erros e tomar um pelo outro. Como discípulos, devemos cuidar de distinguir bem esses Reinos, devolver a César o que lhe pertence para, livres, oferecermos a Deus o que é verdadeiramente dele. Nisso reside a “autoridade” que Jesus legou à sua Igreja.