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240. Corpos frágeis sob o domínio dos perversos

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25.08.2020 | 7 minutos de leitura
Solange Maria do Carmo
Crônicas
240. Corpos frágeis sob o domínio dos perversos

“Todo aquele que recebe uma criança em meu nome, a mim recebe” (Mt 9,37)


 


Pensem nas crianças mudas telepáticas


Pensem nas meninas cegas inexatas

Pensem nas mulheres rotas alteradas…

(Vinícius de Moraes)


 


Não é possível passar uma semana nessa Terra de Santa Cruz sem ver exposta a nossa vergonha. A primeira cruz cravada pelos portugueses na Bahia e a evangelização colonizadora que se seguiu resultaram numa amálgama estranha e perversa que, de fé cristã, tem muito pouco ou quase nada. O cheiro bom de Cristo e a alegria do evangelho deram lugar a uma perversão travestida de cristianismo, cujo odor de hipocrisia exala longe. Se alguns lamentavam – não sei bem por que – a saída dos LGBTs do armário, bem mais chocada fico eu ao ver que, do armário da sacristia, saíram pessoas criminosas, sem nenhuma piedade.


A semana que passou revelou a crueldade dessa gente e a ignorância das massas. Uma menina de dez anos, pobre e da periferia, grávida de estupro de um familiar, teve sua identidade revelada, quando a justiça autorizou a interrupção da gestação, conforme previsto em lei. Animados pela insana e maldosa Sara Giromini e por deputados interesseiros, grupos conservadores invadiram a casa da menina, fecharam a entrada do hospital onde seria feito o procedimento cirúrgico, gritaram “assassina” e fizeram seu showzinho. O caso deu o que falar. Padres e leigos,em suas redes sociais, escreveram mensagens cruéis com palavras chulas a respeito da criança. Teve até bispo que excomungou a equipe médica que realizou o procedimento. Não quero me delongar sobre esses posicionamentos, mas apenas refletir sobre a dominação dos corpos dos pobres, muito visibilizada na manifestação dos extremistas pró-vida.


Não é de hoje que a elite branca e escravocrata domina os corpos dos pobres e negros. Outrora, ela o fez por meio da escravidão e, hoje, continua a fazê-lo por meio da flexibilização das leis trabalhistas que dão aos patrões o direito sobre a vida de seus empregados. A servidão continua e ficou muito visível nessa pandemia. Enquanto os brancos abastados têm o direito do home office, os subalternizados cruzam as cidades em ônibus ou metrôs lotados para garantir vivos os seus corpos oprimidos. Correm atrás do arroz com feijão, do aluguel, do gás, da água e da energia elétrica, sem os quais seus corpos e os de seus filhos pereceriam.


Se todos os pobres estão sujeitos ao domínio de seus corpos, o que dizer das mulheres, cuja história sempre foi de subalternidade, humilhação e instrumentalização masculina? Se a mulher é negra, se é uma criança, sem família bem estruturada e ainda vítima de violência, a chance da sujeição de seu corpo é elevada à enésima potência. Foi o que aconteceu durante essa semana. Quando os extremistas gritavam “assassina” na porta do hospital, não era sobre o assassinato de um feto que eles falavam, nem era a vida de uma criança que eles defendiam. A manifestação era apenas a inconformidade com um corpo sobre o qual não podiam dominar.


Quando o menino Miguel morreu por descaso da madame branquela, o grupo pró-vida não esteve lá gritando “assassina”. Quando a menina Ágata foi baleada, a turba dos obcecados pela vida não compareceu para manifestar. Não me lembro também de tê-los visto em nenhum lugar fazendo protesto quando morreu o menino João Pedro e nem quando milhares de vidas foram ceifadas pela violência durante todo o ano. Os grupos extremistas não se pronunciaram quando aconteceram homéricas chacinas; não disseram nada e nem escreveram uma palavra sequer sobre as crianças desaparecidas do Brasil – sabe lá se raptadas, traficadas, exploradas e mortas. 


A ausência dos grupos pró-vida nesses momentos é sinal clarividente que a preocupação deles não se encontra na vida da futura criança que poderia nascer da violência infringida a uma pequenina de dez anos, mas sim a sujeição dos corpos dos pobres, especialmente das mulheres.


Sujeitar os corpos sempre foi a forma mais marcante de violência. Fazem-no assim os sequestradores, os torturadores, os senhores de escravos; fazem-no assim os atuais patrões que mantém empregados em regime escravo. Se se possui o corpo, se possui o domínio. Se o corpo é maltratado, a vida é ameaçada. Se a liberdade é cerceada, as consciências ficam subjugadas. “Dai-me corpos para dominar e escravizar”, gritam as turbas insanas com a bíblia na mão. Assim o fizeram os carrascos de Jesus, que, tendo subjugado seu corpo pela violência, acharam que poderiam possuir sua vida.  Mas, porque o amor de Deus é infinito e a fidelidade de Jesus tem limites desconhecidos, aquele corpo subjugado foi libertado da morte e virou ameaça para os poderosos opressores. A Páscoa nos ensina que os corpos dominados podem se rebelar e, em Deus, experimentar a libertação.


A menina estuprada – cravada na cruz com Cristo – achou amparo na lei e, agora, mesmo estigmatizada pode recomeçar sua vida. Mas a lei nem sempre tem amparado os milhões de crucificados do Brasil, cujos corpos dominados pela fome, pela falta de moradia e pelo abandono, se arrastam pelas ruas e pelos campos do país. É só a gente olhar para os presídios. Superlotados de pretos e pobres, eles são verdadeiros campos de concentração. Enquanto o padre suspeito de lavagem de dinheiro, extorsão, formação de quadrilha etc., continua estampando sua carinha branca e piedosa nas telas da TV, os pretos pobres são jogados nas masmorras da modernidade. Enquanto o comparsa do Filho 01 e sua esposa têm prisão domiciliar, os menores infratores são tratados como criminosos e recebem em seus jovens corpos a paga de uma sociedade sectária, injusta e desigual. Enquanto a criança estuprada desde os seis anos é chamada de assassina e vadia, as meninas ricas e madames da sociedade fazem procedimentos clandestinos em clínicas seguras e confortáveis. Enquanto a gravidez e a violência das mulheres ricas – pois elas também sofrem violência – é ocultada pelo poder do dinheiro, a menininha do Espírito Santo tem sua fragilidade exposta e fica à mercê desses sádicos piedosos.


Triste realidade em que a vida de um feto importa bem mais que a vida de milhões de brasileiros em situação de escravidão e subalternidade. Não sei por que motivo a dominação dos corpos dá tanto prazer a alguns pseudocristãos. Deve ser um traço sádico de personalidade que encontrou na fé cristã a desculpa para se legitimar e ter aceitação social. Eu poderia crer na boa vontade de grupos pró-vida se eles militassem pelas milhões de crianças exploradas e desnutridas como brigam pelo direito do feto. Se não hesitassem na luta contra a violência doméstica, se se ajuntassem aos que combatem a cultura do estupro, se dissessem uma palavra assertiva a respeito da morte de centenas de milhares de brasileiros vítimas da covid-19 e do descaso do governo. Se assim fosse, também eu engrossaria a fileira da defesa da vida escondida no segredo dos ventres maternos.


Por isso, enquanto não ocuparem esse espaço de protesto contra a violência, enquanto seu interesse for única e exclusivamente o domínio do corpo das mulheres, terão meu repúdio e meu desprezo. Enquanto não forem capazes de compaixão com a menina violentada, a menor das pequeninas; enquanto não puderem recebê-la com afeto como nos ensina a fé cristã; enquanto não entenderem que a vida da criança abusada tem prioridade sobre a vida do feto, não terão meu respeito. Enquanto não militarem conosco no esforço inglório de descer da cruz os crucificados da história, não ouvirão minha palavra de apoio. Fica aqui meu protesto.