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22. Em Tiro e Sidônia (Mc 7,24-37)

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05.03.2014 | 11 minutos de leitura
Frei João F. Júnior - OFMCap
Curso Bíblico
22. Em Tiro e Sidônia (Mc 7,24-37)
7

24 Jesus se pôs a caminho e, dali, foi para a região de Tiro. Entrou numa casa e não queria que ninguém soubesse onde ele estava. Mas não conseguia ficar escondido.
25 Logo, uma mulher que tinha uma filha com um espírito impuro, ouviu falar dele. Ela foi e jogou-se a seus pés.
26 A mulher não era judia, mas de origem siro-fenícia, e pedia que ele expulsasse o demônio de sua filha.
27 Jesus lhe disse: “Deixa que os filhos se saciem primeiro; pois não fica bem tirar o pão dos filhos para jogá-lo aos cachorrinhos”.
28 Ela respondeu: “Senhor,também os cachorrinhos, debaixo da mesa, comem as migalhas que os filhos deixam cair”.
29 Jesus, então, lhe disse: “Por causado que acabas de dizer, podes voltar para casa. O demônio já saiu de tua filha”.
30 Ela voltou para casa e encontrou sua filha deitada na cama. O demônio havia saído dela.
31 Jesus deixou de novo a região de Tiro, passou por Sidônia e continuou até o mar da Galileia, atravessando a região da Decápole.
32 Trouxeram-lhe, então, um homem que era surdo e mal podia falar, e pediram que impusesse as mãos sobre ele.
33 Levando-o à parte,longe da multidão, Jesus pôs os dedos nos seus ouvidos, cuspiu, e com a saliva tocou-lhe a língua.
34 Olhando para o céu, suspirou e disse: “Efatá!” (que quer dizer: “Abre-te”).
35Imediatamente, os ouvidos do homem se abriram, sua língua soltou-se e ele começou a falar corretamente.
36 Jesus recomendou, com insistência, que não contassem o ocorrido para ninguém. Contudo, quanto mais ele insistia, mais eles o anunciavam.
37 Cheios de grande admiração, diziam: “Tudo ele tem feito bem. Faz os surdos ouvirem e os mudos falarem”.

Situando...


Jesus terminara a discussão com os “fariseus e os escribas vindos de Jerusalém” (Mc 7,1) sobre a pureza legal. Em seguida, ensinou o povo sobre a verdadeira pureza, aquela que brota de dentro do coração das pessoas, e o verdadeiro culto, aquele que se presta ao Pai no altar da vida cotidiana (Mc 7,14-23). Então, “partindo dali” (v. 24) Jesus agora demonstra o que acabara de ensinar. Põe-se novamente “a caminho” – imagem que, já sabemos, Mc utiliza para o discipulado. É “no caminho”, nas “estradas da vida” como diria um canto conhecido, que se demonstra o compromisso com Reino de Deus, indo ao encontro daqueles que ainda esperam por Jesus e sua palavra. No encontro com esses, também nós somos sempre convidados a prestar ao Pai o verdadeiro culto, alimentando a verdadeira pureza do coração.


Em Tiro

Tiro é uma cidade estrangeira. Não pertence a Israel e não professa a fé no Deus de Israel. Uma cidade de pagãos, portanto. Fica a norte da Galileia, à beira mar, na direção oposta à de Jerusalém. Quase sempre, é citada ao lado de Sidônia, cidade vizinha que fica ainda mais ao norte. Jesus as elogiará em Lc, por exemplo, dizendo que se ali se tivessem realizado os sinais oferecidos a Corazim e Betsaida (onde ele constantemente pregou), rapidamente elas teriam se convertido (cf. Lc 10,13). Ou seja, o que falta a Tiro e Sidônia não é propriamente fé, como veremos. O desejo de crer já é fé (cf. Estudo 17: fé–desejo e fé–adesão), mesmo que ainda não configure a adesão e o engajamento, preenchidos com os conteúdos de fé. Falta a Tiro e Sidônia o acesso à revelação de Deus e de seu Reino. Por isso, é para lá que vai Jesus.


 Como sempre, Jesus cuida de manter o “segredo messiânico” (cf. Estudo 6): entra numa casa anonimamente (v. 24). Porém, não é possível escondê-lo por muito tempo. Se “o tempo se cumpriu e o Reino está iminente” (Mc 1,15), é urgente que todos saibam de Jesus – e, em Mc, inevitavelmente saberão. “Logo” – urgente como convém ao Reino – uma mulher “ouviu falar dele e se jogou a seus pés” (v. 25). Sua filha tem um “espírito impuro”. Não se diz do que exatamente se trata essa enfermidade, mas é algo que lhe impede de entrar na dinâmica do Reino. Obviamente, como todos ali, a mulher é estrangeira. “Não era judia”, Mc ainda frisa (v. 26). O que move essa estrangeira? A fé? É possível que ela tenha fé, mesmo não professando a fé no Deus de Israel? Seria possível chamar de “fé” essa esperança que a conduz até Jesus, movida pelo desejo da cura de sua filha? A resposta de Jesus parece negar isso: “não fica bem tirar o pão dos filhos (os judeus) para dar aos cachorrinhos (os estrangeiros)” (v. 27). A mulher, porém, surpreende a todos. Não se revolta com a resposta de Jesus, não reclama de ter sido posta no lugar humilhante de “cachorrinho”, não vai embora desconsolada. Pelo contrário, com ainda mais esperança, demonstra que, na fartura do Reino, não há lugar para sovinice, pois o pão é suficientemente farto e forte para suster a todos, filhos, cachorrinhos e todos quantos se aproximem da mesa (v. 28). Afinal, não foi isso que aprendemos na divisão dos pães, na montanha, lá onde cinco mil comeram com fartura e sobra? (cf. Mc 6,30-44 – Estudo 19). Sim, essa mulher estrangeira e não–judia já compreendeu bem a dinâmica do Reino e, ao contrário de muitos daqueles que estão com Jesus “no caminho”, já “se converteu e acreditou nessa Boa Notícia” (cf. Mc 1,15). Por vezes, é mesmo assim, ontem e hoje: os que parecem estar desde sempre dentro, podem revelar que estiveram sempre fora; enquanto os aparentemente de fora, revelam estar surpreendentemente dentro. Sim, a mulher tem fé; uma fé–desejo forte o bastante para trazê-la a Jesus e resistir à inicial recusa; mais ainda, fé suficiente para lembrar mesmo a Jesus qual a novidade de sua missão: o anúncio da pródiga bondade de Deus, que não deixa ninguém de fora (uma fé–desejo e fé–adesão). No Reino, não há “filhos e cachorrinhos”, melhores e piores, puros e impuros, mais santos e mais pecadores, dignos e indignos – não! Há somente filhos do Pai, convidados ao farto banquete de sua palavra e de sua vida divina. Se todos os alimentos são puros (cf. Mc 7,19), muito mais puras e dignas são as pessoas – todas elas. É, sem dúvida, a melhor de todas as boas notícias. Basta crer nisso, como acreditou aquela mulher.


Não sem razão, Jesus admite que, por causa dessa fé, agora professada, a mulher já pode ir em paz (v. 29), sua filha está curada, o demônio a deixou. Ela não está mais inquieta, como o jovem de Gerasa possuído por Legião, mas encontra-se em casa, descansando sobre a cama (v. 30). Pois disso sabemos também nós: não há demônio que resista à graça abundante do Pai, ao coração aberto dos filhos, à generosidade e à acolhida de um Reino onde todos são irmãos, sem preferências, sem diferenças, sem méritos.


Em Sidônia e na Decápole

Jesus vai a Sidônia e, passando pela Decápole, inicia o caminho de volta à Galileia. Toda a região ainda é de estrangeiros – que, agora sabemos, são também convidados à mesa do Reino como filhos (v. 31). Conduzem a Jesus um homem surdo e que falava com dificuldade (gago, segundo algumas traduções). Está, poder-se-ia dizer, possuído por um “espírito impuro” que o impede de ouvir e falar. São muito emblemáticas essas doenças do Evangelho. Quem não escuta a palavra de Jesus é, frequentemente, surdo; quem não a proclama é mudo; quem não vê em Jesus o Cristo, o Filho de Deus, é cego; quem não se põe a caminho com ele é tido paralítico; alguns estão possuídos e inquietos até que encontram Jesus em seu ensino se acalentam; outros ardem em febre e em Jesus encontram refrigério... e assim por diante. São, pois, espíritos impuros que se contrapõem ao Reino.


Esse homem possui uma limitação grave: ele não ouve (v. 32). Está, portanto, inapto a cumprir o primeiro de todos os mandamentos da Torah: “Ouve, Israel, o Senhor teu Deus é um; amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças” (Dt 6,4-5). E ensurdecer-se ao primeiro mandamento, o“Shemá Israel” (ouve, Israel), compromete o cumprimento de todos os outros, pois somente no amor ao Pai do céu os mandamentos se põem a serviço da vida, ultrapassando em muito o caráter de “lei” externa. E, no amor ao Pai, o amor aos irmãos também se sacramenta. É o passo seguinte: proclamar com palavras e gestos a mesma palavra que, ouvida, transforma a nossa vida. E é claro que, sem ouvir, esse homem não pode falar. Também nós experimentamos isto: sem antes ouvir a Palavra de Cristo, nossa pregação é apenas balbucio, eco vazio. “Gaguejamos a Palavra”, se antes ela não nos abre os ouvidos e o coração.


Os presentes pedem que Jesus “imponha as mãos sobre ele”. É dos gestos mais antigos da comunidade cristã, tanto para transmissão do Espírito quanto para a cura das enfermidades. Nesse caso, pedem que Jesus imponha as mãos sobre um estrangeiro, alguém tido impuro. Felizmente, graças à mulher de Tiro, sabemos que não há puros e impuros, mas todos igualmente necessitados de Jesus.


Jesus o leva para fora da multidão, à parte (v. 33). De fato, o vozerio da multidão pode, por vezes, nos ensurdecer. É difícil, no burburinho louco da massa, compreender as palavras de Jesus. Para que ele nos abra os ouvidos e nos solte a língua, é preciso estar com ele, à parte, na intimidade de um discípulo que vivencia de perto o ensinamento de seu Mestre.


O relato dos gestos de Jesus chega a ser extravagante: toca com os dedos os ouvidos e com saliva a língua do homem. Remetem ao relato do Gênesis, quando Deus “fez o ser humano com a argila da terra e soprou sobre ele seu hálito, para que vivesse” (cf. Gn 2,7). Também aqui, nessa que seria a recriação desse homem, Jesus toca nele e sopra (hálito, saliva). Encontrar-se com Jesus é um convite a renascer: reeducar ouvidos surdos, soltar a língua já pesada. É, pois, a isto que o ensino de Jesus convida: “Efata – abre-te” (v. 34). E o homem começa a ouvir e falar com perfeição (v. 35).


Apenas por curiosidade: é interessante que Marcos traduza a palavra “éfata”, conhecida aos judeus, mas estranha aos gregos. É um sinal de que, de fato, a comunidade à qual se dirige seu Evangelho se compõe tanto de judeus quanto gregos que abraçaram a fé.


Mais uma vez, Jesus pede que se preserve o “segredo messiânico”. Um pedido inútil, pois os efeitos de sua ação são cada vez mais evidentes (v. 36). Tanto que despertam a costumeira admiração nos espectadores – admiração que conduzirá à pergunta fundamental de Mc: quem é Jesus? (v. 37). Aqui, a admiração vai além: “ele tem feito tudo muito bem”. Pois nele a multidão reconhece o cumprimento da profecia de Isaías: “os olhos dos cegos vão se abrir e abrem-se também os ouvidos dos surdos; os aleijados vão pular como cabritos e a língua dos mudos entoará um cântico, porque águas vão correr no deserto, rios na terra seca” (Is 35,6).


 * * *


Puros são todos os alimentos, pois foi Deus quem os deu a nós. Com muito mais razão, puras são todas as pessoas, pois são obras das mãos criadoras de Deus e de seu sopro que dá vida. E, mesmo aqueles mais aparentemente distantes, impuros e indignos, trazem em si a marca inextinguível de filho muito amado do Pai do céu. A partir de Jesus, também nós, seus discípulos, somos convidados a recordar ao mundo essa Boa Notícia.