Evangelho DominicalVersículos Bíblicos
 
 
 
 
 

215. Sobre analfabetismo existencial e paixão pela vida

Ler do Início
23.03.2020 | 8 minutos de leitura
Solange Maria do Carmo
Crônicas
215. Sobre analfabetismo existencial e paixão pela vida

“O samaritano chegou junto dele,

viu-o e moveu-se de compaixão” (Lc 10,33)


 


“É no seio das grandes desgraças
que cresce a paixão de viver”

(Albert Camus, A Peste)



Para quem sabe ler um pingo é letra, diz o dito popular. Há muito o que ler nos livros, nas revistas e nos jornais. Há muito o que ler nas telas, nas redes sociais... O que não falta é material para ler. Mais importante, porém, que ler as letras, as palavras, as frases e os textos, é ler os acontecimentos da vida. Basta ter um mínimo de bom senso, de empatia ou de compaixão.


Paulo Freire dizia que o pior analfabetismo é o da vida. Não saber ler a vida, não compreender sua trama, é analfabetismo existencial. Por isso insistiu tanto o Pedagogo dos Pobres que não bastava ler “Eva viu a uva”. É preciso saber quem é Eva, que lugar ocupa na sociedade, quais são seus dramas e suas esperanças. É necessário saber quem plantou e colheu a uva, de quem são as terras nas quais a uva foi cultivada, para quem ficou o lucro da colheita, e por que motivo alguns veem a uva, mas não podem comê-la, pois ela é privilégio de alguns poucos. Na frase “Eva viu a uva” há um mundo de possibilidades e nem todos a leem da mesma forma.


Para Paulo Freire, a vida é um grande texto e como tal tem suas regras. Sem a capacidade de mergulhar na gramática existencial do mundo humano, ficamos alheios ao que nos rodeia; criamos um mundo ilusório e imaginário, próprio dos que padecem de alguma patologia psiquiátrica grave. Daí a importância da empatia: a capacidade de se alegrar com as conquistas dos outros ou de chorar com os que sofrem, como nos ensina o Evangelho de Lucas na parábola do Bom Samaritano.


As regras básicas da vida, das contingências da história, das finitudes da vida, dos desejos e das lutas dos povos e das pessoas em particular, precisam ser não só conhecidas, mas estudadas, analisadas, discutidas, aprimoradas. Daí a importância das ciências humanas: da psicologia, da sociologia, da filosofia, da antropologia, da teologia etc. Elas nos ajudam a mergulhar na gramática da vida, para melhor saber ler o texto da história. Como um linguista estuda a gramática da sua língua e se aprofunda nos meandros e nos detalhes mais sutis da mesma, assim um bom vivente não se cansa de se interrogar sobre os acontecimentos do mundo e sobre o que a aprender com a lição da história.


Se essa característica da empatia com os dramas existenciais é exigida de todo ser humano como condição sine qua non para a vida em comum e para o bem-estar da sociedade, muito mais deve ser exigida de um governante. Nenhuma liderança pode governar um país com um mínimo de equilíbrio se é analfabeto existencial. É triste quando nos encontramos diante de dramas existenciais terríveis – como a Covid-19 que assola o mundo e deixa rastro de morte por toda parte – e parece que não aprendemos nada. É estarrecedor ver que somos liderados por gente analfabeta e cruel, que não se importa com o sofrimento alheio. Gente que lê “Eva viu a uva” e diz “Que bom que Eva viu a uva. Eva é abençoada por Deus, pois é gente de bem. Ela é merecedora da uva. Eva vai comer a uva e a economia vai girar. Se o marido de Eva não comprar a uva, a economia para e o país quebra. O importante é a venda da uva”. 


Foi esse diálogo que se desenrolou no bate papo de comadres do chefe da nação brasileira com o apresentador Ratinho. Uma coisa patética, de fazer não só corar de vergonha, mas de dar desespero não fosse a fé cristã que nos nutre e a revolta digna dos profetas que nos constitui. Não há palavras suficientes para descrever o estarrecimento dos que têm bom senso diante dessa cena. Os dois interlocutores se mostram totalmente alheios ao mundo e não se deixam impactar pelos dramas humanos. Vivem em bolhas artificiais, nas quais o umbigo deles é o centro. O mundo gravita em torno deles, como os planetas em torno do sol. Ah, isso se acreditassem que a Terra é redonda e o sistema solar existe!


Não é possível que num momento como esse a gente tenha que aturar tal despautério. Um apresentador boçal e tosco, sem nenhuma elegância ou preparo civilizacional, conversa amigavelmente com o Hitler tropical, que por sua psicose e mania de perseguição, insiste em não ver o perigo real que o país corre. Não pode ser verdade o que meus olhos veem, o que meus ouvidos escutam. Disse o tal presidente: “Vão morrer alguns. Sim, vão morrer (…) Mas não podemos deixar esse clima todo que está aí. Prejudica a economia”. Para quem disse antes das eleições que o país só teria jeito quando morresse uns três mil, não é de estranhar que a morte de “alguns” não lhe preocupe. É muita perversão para tão pouca gente. Ultrapassa o limite da aceitação social. É caso de polícia!


Enquanto o presidente inventa inimigos imaginários que teriam criado o coronavírus e continua deitado eternamente no berço esplêndido de sua ignorância e crueldade, o gráfico da pandemia mostra a força real do inimigo invisível. Nossa população empobrecida e explorada continua sem defesa, sem hospitais, sem reclusão social, sem medicamentos, sem salário, sem comida, sem escola, sem nada... O Brasil parou – ou pelo menos tem de parar – e ele quer que a economia gire. Nos seus olhos têm cifras e no seu peito tem pedra. Na sua cabeça tem merda e um vácuo na sua alma, porque não é capaz de solidarizar-se com ninguém, nem quando uma população inteira está ameaçada.


É triste saber que cristãos elegeram essa coisa e que igrejas inteiras fizeram campanha para ele, até posaram fazendo arminha. Sem o apoio desses tais cristãos, ele nunca teria chegado no lugar que ocupa. Não é possível que essa gente não se envergonhe do que fez ou nem sequer suspeite do erro que cometeu. Enquanto a fé cristã nos ensina a solidariedade com o homem caído, assaltado e deixado quase morto à beira do caminho (Lc 10,29-37), milhões de cristãos apoiam o assaltante da nação que esfola viva nossa gente e a empurra para a vala da morte.


É revoltante ouvir a palavra que faz viver, a Escritura Sagrada, recitada na boca desse infeliz: “E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. De verdade ele não sabe nada e de libertação menos ainda. Seu lema é a mentira, e sua meta é a escravidão e a morte dos pobres e marginalizados. Chego a pensar que é por isto que ele nega a gravidade da pandemia: porque a morte dos pobres não lhe diz respeito e parece ser seu interesse. O extermínio dos moradores de rua lhe convém, pois eles sujam e atrapalham as cidades. A morte dos idosos e dos doentes lhe é favorável porque eles são uma despesa inútil e quebram a Previdência. O massacre dos presidiários confinados em cubículos não lhe assusta: não são humanos direitos e por isso não têm direitos. A contaminação das putas e das travestis nos nojentos submundos não tem nada a ver com ele: elas são a vergonha da nação. E o que dizer do povo das favelas que resolveu reivindicar seus direitos? São pessoas inconvenientes e o grito deles não deixa sua família dormir em paz. Ecoa em todo o país o grito “Marielle presente!”. Um “limpa” na nação não seria assim tão ruim.


Acontece, porém, que “é no seio das grandes desgraças que cresce a paixão de viver” dizia Albert Camus. Nossa gente criativa e cheia de paixão pela vida não se entrega facilmente. Em todo canto, ainda que timidamente, vemos sinais de esperança. Nossos braços não se cruzam, nosso espírito não se deixar abater. A solidariedade dos amantes da vida há de falar mais alto que a perversão de alguns. Basta citar Padre Júlio Lancelot, já idoso e enfraquecido, andando pelas ruas de São Paulo ensinando cuidados básicos para a população de rua. É comovente ver essa cena! Surgem gestos de solidariedade e cuidado em cada canto. Nós vamos resistir!