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205. Entre a gratuidade e a gratidão

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08.10.2019 | 6 minutos de leitura
Solange Maria do Carmo
Crônicas
205. Entre a gratuidade e a gratidão

Não houve quem voltasse para dar glória a Deus

 senão este estrangeiro? (Lc 17,18)


 

“Como agradecer por tanto bem que fizeste a mim, 

E que eu não mereço, mas vem do teu imenso amor por mim. 

Nem um coro de milhões de anjos pode exprimir a gratidão, 

Pelo que sou, e ainda espero ser, com minha vida em ti.” 

(Canção Popular - Autor desconhecido)



O Evangelho de Lucas pode ser caracterizado como a grande viagem de Jesus com seus discípulos, que vai da Galileia a Jerusalém. No caminho, o Mestre de Nazaré vai ensinando aos seus seguidores tudo que é importante para o discipulado, para a jornada da fé cristã. Jesus lhes ensina sobre a importância da partilha e o risco da avareza, sobre o cuidado e o zelo pelos pequeninos do Reino, sobre a dádiva da oração, que não é uma graça recebida, mas sim a graça da comunhão com Deus gerada naquele que ora de coração sincero. Dentre os ensinamentos preciosos do Mestre, encontra lugar privilegiado a gratuidade e sua correspondente, a gratidão.


Lucas conta que dez leprosos encontram Jesus às portas de um povoado e lhe pediram socorro: “Mestre, tem compaixão de nós!”. Jesus simplesmente lhes disse: “Vão se mostrar ao sacerdote”. O sacerdote funcionava como um sanitarista. Ele reconhecia os perigos de contaminação por uma doença e a ele cabia a tarefa de reintegrar o doente ao convívio social, caso se mostrasse são, especialmente o leproso, cuja doença era temida por todos, levando seu portador a viver excluído em vilas e vales, sem poder entrar nas cidades. A ordem de mostrar-se ao sacerdote significa o cumprimento da prescrição deixada por Moisés na Torah. Um homem com lepra estava impedido do culto, não participava da liturgia, não estava em condições de viver harmoniosamente no ambiente religioso. Logo, ninguém melhor que o sacerdote para reintegrá-lo junto aos seus.


A narrativa de Lucas 17,11-19 segue afirmando que os leprosos, tendo ouvido o que Jesus lhes disse, seguiram pelo caminho rumo ao sacerdote que faria a verificação de seu estado de saúde. No percurso, porém, um deles se viu limpo da letra. O texto faz crer que todos estão na mesma condição (“Não foram dez os curados?”, diz Jesus), mas nove seguiram decididos em busca do cumprimento da prescrição religiosa. Um, porém, não se conformou de cumprir a ordem dada e voltou para agradecer. Entendeu que aà ação gratuita corresponde a gratidão, não o legalismo ou o cumprimento de preceitos. Então, voltou pelo caminho louvando e glorificando a Deus, até alcançar Jesus e poder lhe demonstrar toda sua gratidão. E justamente esse leproso era um samaritano.


O samaritano era um irmão torto dos judeus, mas, na prática, era considerado umestrangeiro por causa de seu sincretismo religioso. Logo ele – tão discriminado – mereceu elogios. Não é a primeira vez que Lucas coloca um samaritano como o “bom moço” da parábola. Basta lembrar a parábola desconcertante do Bom Samaritano. Além dele, Lucas sempre escolhe personagens não muito ortodoxos ou certinhos segundo a prescrição religiosa para simbolizar as pessoas mais sinceras e mais dignas de elogio da parte de Jesus. É o caso da mulher pecadora que ungiu Jesus; de Zaqueu, que era um publicano; de um ladrão crucificado ao lado de Jesus.


Lucas está insistindo em nos ensinar que os mais certinhos na religião nem sempre são os mais próximos de Deus. Ao contrário, uma pessoa cuja fé não s e encaixa nos padrões contratuais da religião pode nos surpreender com uma fé muito mais autêntica e bonita que a fé rigorosa e meticulosa de alguns que se acham muito cristãos. Isso acontece porque um dos princípios fundamentais da fé cristã é a gratuidade, cuja atitude correspondente é a gratidão. A gente pode fazer tudo, seguir os dogmas, não cometer heresias, frequentar direitinho o templo, cumprir os preceitos estabelecidos pela religião e não viver na presença de Deus.


A canção Trem Bala, de Ana Vilela, fala sobre essa gratuidade: “Não é sobre ter todas pessoas do mundo pra si. É sobre saber que em algum lugar alguém zela por ti. É sobre cantar e poder escutar mais do que a própria voz. É sobre dançar na chuva de vida que cai sobre nós”. Sabemos que as melhores coisas da vida não são compradas com dinheiro, nem com são conquistadas pelo merecimento. O amor gratuito de uma mãe ou a ajuda simpática de um desconhecido não contam com a meritocracia, ou seja, não são resultado do merecimento de quem recebe. A vida é bem mais que interesses e comércios. Ela é feita de pequenos gestos de gratuidade, gestos de amor e bondade que não esperam nenhuma retribuição. Para quem faz o gesto de bondade, a gratuidade é a lei. Para quem recebe a generosidade ofertada, resta a gratidão do coração que se transforma em agradecimento e louvor.


No âmbito da fé cristã, nunca é muito lembrar que Deus não se deixa comprar nem impressionar pelo cumprimento de preceitos e nem por gestos de piedade. Deus vê o íntimo do coração. Ele não é mercantilista, nem interesseiro. Ele não aceita negociações, não aceita suborno, não recebe propinas... Não se impressiona com jejuns, nem com preces, nem com promessas ou gordas ofertas.Ele é pura gratuidade, por isso age gratuitamente. Na relação com Deus, conta mais a gratidão do coração de se saber não merecedor de sua graça do que a meritocracia de alguns que pensam comprar Deus com sua vida impecavelmente reta. Deus é gratuidade, não ama por obrigação. Não se deixa convencer pelo cumprimento de rituais, nem pela obediência às prescrições. Em tempos de pós-modernidade, em que a teologia da retribuição está em voga, Lucas nos ensina que Deus não premia bons nem pune os maus. Deus é gratuidade pura, e a relação com ele se dá no âmbito da gratidão e não do merecimento, afinal Deus é amor.