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204. A procissão dos desprezados

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18.08.2019 | 6 minutos de leitura
Solange Maria do Carmo
Crônicas
204. A procissão dos desprezados

 “Servo bom e fiel, vem participar

da alegria do seu Senhor” (Mt 25,21)


 

“Morreu na contramão


atrapalhando o tráfego"

(Chico Buarque)


 

Mal amanheceu e eles estão em toda parte das grandes cidades. Revirando latas e sacos de lixo, com olhos de águia, separam os recicláveis. A maioria deles se encontra desarmada do mínimo necessário para esse trabalho insalubre. Raros são aqueles que usam luvas ou que se protegem de alguma forma dos perigos do ofício. Sujeira aos montes, podridão, mal cheiro e, ainda, cacos de vidro, latas cortantes e material contaminado. Os pequenos faxineiros do planeta trabalham feito formigas, sendo ignorados por todos. Fazem parte da paisagem urbana e nem são mais notados. São como os cães que reviram o lixo: estão ali incomodando e, como não há o que fazer para combatê-los, melhor ignorá-los. Seguem no anonimato, sem reivindicar reconhecimento.


Alguns já passaram do grau do improviso e começaram a sofisticar o trabalho. Com um carrinho de supermercado, uma carroça cuja força motora são eles próprios ou uma charrete puxada por um cavalo, os amigos do planeta seguem recolhendo latinhas, plásticos, embalagens, papelões, ferro velho, eletrodomésticos inutilizados etc. Possuídos de uma força descomunal, perambulam pela cidade arrastando peso e “atrapalhando o trânsito”, diriam alguns cuja capacidade de empatia se aproxima de zero ou já entrou na escala negativa.


Em meio ao reciclável, também aproveitam uma comida descartada, algum legume não apodrecido ou um pão ainda em condição de consumo. Uma parada para um gole d’água em meio ao deserto da cidade, um suspiro, um segundo de descanso e lá vão eles, seguindo a procissão dos desprezados do mundo.


Ao fim do dia, filas intermináveis em frente ao recolhimento de recicláveis da cidade, para –depois de um dia de exaustão – garantir trinta, quando muito, quarenta reais. Imundas de suor e de dor, as formigas humanas retornam para seus formigueiros. Dormem em comunidades de catadores, debaixo dos viadutos ou nos cantos das ruas. Um ou outro ainda tem um barraco onde pode reclinar a cabeça, normalmente incorporado a tantos outros empobrecidos, também explorados pelo deus-capital.


Para aqueles que cultivaram a rara capacidade de se solidarizar com a dor do outro, impossível ignorar o fenômeno da população de rua e ou dos catadores de recicláveis. Não há como não os ver, a não ser sob o custo de cegar os olhos. Não há como não escutar seus clamores, a não ser sob o preço da surdez sociológica. Não há como deixar de falar sobre eles, a não ser que a tirania dos maus já tenha conseguido seu objetivo: silenciar os bons em nome do medo.


Num impulso, ao vê-los, tenho desejo de parar o carro e ajudá-los a empurrar a carroça. Ou quereria eu, ao menos, abaixar o vidro do carro, dar-lhes um dinheiro, beijar suas mãos calejadas e imundas e agradecer pela limpeza da casa comum, tornando-a ainda habitável. Não o faço. Sigo estarrecida de dor e anestesiada pelo sistema capitalista, que me impede de chegar atrasada ao trabalho, a não ser sob pena do desemprego.


Se o evangelho nos ensina a reconhecer no pequenino a pessoa de Jesus Cristo sofredor, não há,na minha opinião, Cristo mais perto de nós que a população de rua e ou os catadores de descartáveis: humilhados, desprezados, ignorados, ultrajados, maltratados, roubados em sua dignidade, perseguidos pela escabrosa política de higienização da cidade que os governantes perversos têm implantado. São outro Cristo. Arrastam a cruz de grandes e pesados sacos de lixo; como animais puxam carroças e carrinhos de peso descomunal, enquanto os homens e as mulheres de bem gritam com as buzinas de seus possantes: “Crucifica-os, pois atrapalham a vida da cidade!”.


Tendo chegado ao calvário dos depósitos de matérias recicláveis,o “pequenino rebanho” (Lc 12,32)ainda é atormentado pela dor da espera, da fadiga, da fome, da sede, da trapaça e da humilhação. E, tendo vazado sangue e água de seu lado transpassado, eles experimentam a morte e não são dignos de sepultura. Morrem como indigentes, ignorados e esquecidos, e não há sequer quem possa chorar sua ausência, pois nunca viveram, não existiram, não fazem parte do censo, não são contados entre os bons da Terra. Seu trabalho salvador não é lembrado. A purificação do planeta, que assumiram como ofício, é desconhecida. “Não fizeram mais que obrigação. São servos inúteis e incômodos, a quem toleramos por um gesto de extrema misericórdia”, dizem os bons. Nós, os justos produtivos, não perambulamos pela rua atrapalhando o trânsito; ao contrário, trabalhamos duro como escravos do mercado capital para produzir mais lixo e mais lixo e mais lixo e mais lixo...


Quando atropelados por algum veículo, finalmente eles param o trânsito e ganham a atenção que nunca lhes fora dispensada em vida. Irados, os motoristas esbravejam, proferem impropérios e xingam sem nenhum pudor. A gente de bem é periciada na arte de falar palavrões e de ofender o próximo. Eu, da janela de meu carro, com o coração dilacerado, cantarolo a profecia de Chico Buarque: “Morreu na contramão atrapalhando tráfego”. E, antes que o desespero me domine, a fé cristã me consola. Vejo meu irmão catador, como o filho pródigo, correndo para o abraço do Pai. Vejo a ternura com que é acolhido; ouço cantos de festa porque ele chegou; sua roupa – agora limpa e nova – cheira à alfazema e ele tem um anel de filiação no dedo. Seus pés, antes descalços, foram protegidos com sandálias que o fazem bailar no salão da casa paterna. Escuto baixinho o Pai a lhe dizer: “Porque foste fiel no pouco, eu te darei o muito. Vem para o gozo do seu Senhor” (Mt 25,21). E começa a festa que não tem fim. Pode ser alienação da minha parte pensar assim, mas, sem essa esperança, eu não teria energias para continuar lutando por eles, nem teria forças para continuar vivendo na cidade.