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199. Violência acima de tudo (ou os pequeninos que se danem)

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31.05.2019 | 7 minutos de leitura
Solange Maria do Carmo
Crônicas
199. Violência acima de tudo (ou os pequeninos que se danem)

“Mandou matar todas as crianças” (Mt 2,16-18)




“Há muitas maneiras de matar. Podem enfiar-te uma faca na barriga,
arrancar-te o pão, não te curar de uma enfermidade,
meter-te numa casa sem condições,
torturar-te até a morte por meio de um trabalho, levar-te para a guerra, etc.
Somente poucas destas coisas estão proibidas na nossa cidade” 

(Bertold Brecht)



Quem tem fé faz sempre uma leitura teológica de todos os acontecimentos da história, ou seja, vê em tudo vestígios da revelação divina. Isso não é novo. A própria bíblia, também conhecida como Sagrada Escritura, é uma leitura teológica das experiências marcantes das comunidades judaico-cristãs. No Antigo Testamento, o povo israelita, mais tarde conhecido como povo judeu, leu cada evento de sua existência sob a ótica da fé e buscou no Deus do monoteísmo explicações para os eventos mais marcantes da sua história, tais como o Êxodo, o Exílio na Babilônia, os diversos domínios estrangeiros, as lutas nas pelejas da vida etc.


Não é de se estranhar, pois, que a gente continue a fazer o mesmo hoje. Sob a ótica da fé cristã, cristãos explicam a vida e o mundo, seus desencontros e suas alegrias, e até justificam suas escolhas éticas, políticas etc. Nada demais que assim se faça, pois, de fato, a fé ressignifica a vida. Ela diz respeito à opção fundamental, ou seja, aquela direção na qual miramos e da qual não desejamos nos desviar.


O olhar lançado sobre as diversas narrativas da vida será diferente, dependendo do grau de maturidade da fé. Certamente que nenhuma fé é madura, mas caminha sempre em busca da maturidade; ela é devir ou vir-a-ser, uma eterna iniciante. De outro modo, diríamos: a leitura da vida depende da teologia que nos orienta. Se ela é esclarecida, a leitura é libertadora. Se ela é obscurantista, a leitura legitima o poder dos grandes sobre os mais fracos e vulneráveis.


Como sou mulher de fé, teóloga, biblista e professora de teologia bíblica, seria estranho se meu olhar sobre o mundo não me remetesse aos relatos escriturísticos; seria incoerente se eu não visse em cada acontecimento o lugar por onde Deus passa.


Estou encucada e indignada, já faz dias, com a decisão do ministro da educação de cortar investimentos na área que representa. As verbas, especialmente para a pesquisa, já tão escassas e comprometidas pela PEC 241 (ou 55), vão se diluir definitivamente na imensidão chamada Brasil nos próximos anos. É o fim das universidades públicas.


Primeiramente, a mira foi posta sobre a UFBA, a UNB e a UFF, sob a desculpa de “balbúrdia”, palavra até então caída em desuso e ressuscitada  para justificar arbitrariedades. Vendo que tal perseguição a essas três universidades não seria ignorada, pois é claramente marcada pela inconstitucionalidade, o senhor ministro retrocedeu e fez ainda pior: resolveu cortar verbas de todas as escolas públicas de ensino superior.


Quando o ódio é maior que o bom senso, qualquer medida, mesmo drástica e violenta, fica justificada desde que o alvo seja alcançado. Foi assim com o Faraó, quando o povo hebreu, escravizado pelo sistema egípcio, começou a mostrar seu poder de organização. O tirano, acuado pelo medo de uma liderança eficaz, mandou matar todas as crianças. Eliminava assim a possibilidade de um hebreu esclarecido organizar sua gente para reivindicar seu direito à vida digna. O livro do Êxodo relata a matança dos meninos hebreus, como sinal do desequilíbrio da tirania, sempre imposta sobre os mais fracos.


Certamente, essa narrativa não é um relato factual, mas uma tentativa teológica de explicar a liderança eficaz de Moisés, o único que se safou da foice mortífera do grande chefe do Egito. Desde pequeno, o Homem salvo das águas mostrou seu diferencial dentre todos os outros. Velado por Deus para uma missão muito especial, Moisés não sofreu nem um arranhão em tempos de perseguição. Trata-se de um tipo de escrito intitulado “relato de heróis”, muito utilizado na Escritura, ou seja, uma leitura teológica da vida e não um acontecimento histórico, afinal não se conhece nenhum registro de tal matança no Egito por essa ocasião, coisa que não passaria incólume na história.


Tal artimanha dos poderosos não se encontra somente no Antigo Testamento. Também no Evangelho a tentativa de atingir com ódio o alvo perseguido foi contada por Mateus. Trata-se da famosa narrativa da matança dos inocentes. Mateus, um rabino bem treinado na literatura judaica, escreverá, a partir do relato de Moisés, um midrash envolvendo Jesus e a meninada de seu tempo. Um midrashé uma espécie de atualização de uma palavra entendida como divina. Para Mateus, Jesus – que é o novo Moisés, que dá a nova Torah para o novo Israel de Deus – sofrerá os mesmos ataques que o Libertador do Êxodo, mas sairá vencedor.


Desta vez, o tirano é Herodes, o governador da Judeia, que, sabendo do nascimento do Messias por intermédio dos Magos do Oriente, toma a firme decisão de matar Jesus. Não conseguindo identificar o menino em meio à criançada, pois os Magos não cooperaram com seu plano de morte, Herodes manda matar todas as crianças menores de dois anos. Sua violência planejada para um único alvo se estende a todos. Não importa quem vai morrer; importa que o Menino-rei seja destruído antes mesmo de ganhar fama. Com isso, o relato mateano mostra mais uma vez como agem os tiranos: matam, destroem, aniquilam, semeiam morte por toda parte. São completamente necrófilos os governos totalitários, que criam para si inimigos fictícios que devem perecer a qualquer custo. Mais uma vez, trata-se de um relato de heróis. Jesus, o novo libertador, desde pequeno revela a que veio: libertado pelas mãos de Deus será o libertador de Israel.


A atitude do ministro da educação, ao punir todas as Universidades com cortes, não se distancia do que relata a Escritura acerca do Faraó ou de Herodes.  Os tiranos repetem os mesmos erros: inseguros e abusados, usam de violência até conseguir seus fins. Mais uma vez, a vida imita a arte, nesse caso, a literatura bíblica. Mas não pense ele que isso nos passa em branco. Sabemos ler a vida e a história. Nossa teologia não compactua com poderosos, nem dá bênção a malfeitores. Ela não se cala diante da injustiça, nem engana o povo com consagrações teatrais feitas à Virgem em palácios para legitimar interesses escusos. O Deus dos cristãos derruba os poderosos dos tronos e eleva os humildes. Ele é o bom pastor que cuida da ovelha ferida e não do rebanho gordo. Ele prefere magoar o filho mais velho, sempre beneficiado pelas benesses da casa do pai, a desprezar o filho perdido que precisa de acolhida.


A violência do senhor ministro contra o povo pobre, que depende da escola pública não só para estudar, mas para se beneficiar com suas conquistas, ficará registrada nos anais de nossa história e encontrará resistência entre nós. Somos todos Moisés, somos todos novos cristos: não cedemos a chantagens, nem nos curvamos diante dos abusos. A vida segue: a resistência é nosso lema e a fé é nossa força.