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180. Palavra não dita

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30.05.2018 | 5 minutos de leitura
Solange Maria do Carmo
Crônicas
180. Palavra não dita

 Mestre, eu trouxe a ti o meu filho que tem um espírito mudo,

que o agride, faz espumar e ranger os dentes” (Mc 9,17-18)




“Só uma palavra me devora

Aquela que meu coração não diz"

(Abel Silva)


 

Quando uma palavra fica atravessada na garganta sem poder ser dita, a gente se transforma. De raiva. De estarrecimento. De indignação. O evangelista Marcos definiu bem essa experiência, no episódio do homem mudo: um possesso, a vítima de um diabo, um coitado violentado, lançado no chão, com dentes travados e boca espumada.


Quase todo mundo já experimentou isso. Quase todo mundo já levou um desaforo para ruminar em casa, já ouviu mudo o que merecia resposta, já engoliu um sapo, uma cobra, um jacaré, um universo animal inteiro... A palavra estava na ponta da língua, mas não pôde sair. Foi calada pelo autoritarismo, de poderes políticos, econômicos e religiosos. Quase todo mundo já quis dizer ao patrão o que ele merecia ouvir, já se revoltou com uma bobagem que o padre disse na homilia, já se indignou diante de uma violência policial, já teve vontade de quebrar a cara do apresentador de TV... Quase toda mulher já sofreu algum tipo de violência causada pelo machismo. Quase toda funcionária sofreu algum tipo de assédio e se calou. Quase todo mundo já travou os lábios quando foi maltratado por um funcionário no serviço público. E contou até dez para não dizer a verdade que o servidor precisava ouvir ou o palavrão espontâneo que lhe escorria nos cantos da boca.


Nessa hora, a sensação de sufocamento não tem comparativo. Sobe um ímpeto; uma coisa não definida, mas de uma força tão medonha que corrói o estômago. Um trem estranho, dizem com sabedoria os mineiros. Experimentamos um turbilhão de emoções; uma espécie de furacão revira as entranhas. Para não morrer sufocados, respiramos fundo, contamos um... dois... três... cem... até o infinito. E engolimos a seco.


Quem já viveu isso sabe que calar-se é morrer um pouco. Não sei que química acontece dentro da gente, mas imagino que o pulmão ganha menos ar e o coração bombeia menos sangue. Não é boa a sensação de ficar sufocado pela palavra não dita, emergido num lixo de emoções tóxicas que se concatenam e produzem uma corrente que aprisiona cada vez mais. Como disse Abel Silva, uma palavra nos devora, aquela que nosso coração não diz. Ou diz, mas não ganha som, porque não pode ser externalizada, para não sofrer reprimendas ainda maiores e pagar preços bem mais altos que a morte de alguns neurônios.


Em tempos de tantos meios de comunicação, de tantas redes sociais, de tantas mídias, quando cada um pode falar tolices e escrever coisas insanas e inconsequentes, parece estranho a gente ainda viver subjugado pelo demônio do sufocamento das palavras. Mas aí está ele: o diabo que obriga ao silêncio e impede a comunicação, pois intimida pela violência de seus poderes. Infelizmente, o fato de haver tantos espaços virtuais não significa que podemos ou conseguimos dizer o que gostaríamos – ou o que precisamos.


Sonho com um espaço de liberdade pra gente conversar livremente, sem violência física ou simbólica, sem coerção, sem dominação dos grandes sobre os pequeninos. Sonho com os marginalizados tendo voz, expressando seus anseios e suas esperanças, denunciando seus direitos roubados. Como disse a humorista Concessa, quem já viveu o tempo das “arma forçada” (a ditadura), cresceu no tempo do “cala a boca”. Em tempos de ameaças, de torturas em paus-de-arara, de gente amada sumindo sem dar notícias, de filhos fugindo para países distantes para preservar a vida, de conhecidos aparecendo mortos por todo canto do Brasil, o que mais ouvíamos quando criança era “cala a boca”. “Ainda lembro que eles ficava falando assim: ‘cala boca; num pode falar assim não; cala a boca’; por isso eu tenho uma raiva de quem fala ‘cala a boca’ comigo”.


Em nome da fé cristã, espero a hora em que Jesus nos arranque esse diabo que faz calar a boca e nos devolva a voz. Busco um espaço de convivialidade e de diálogo no qual a gente possa soltar a voz, como disse Gonzaguinha. Um ambiente de confiança e respeito, no país e nas igrejas, que nos permita ser quem somos, sem máscaras, sem assumir papéis, sem camuflar a verdade mais profunda. Por isso, realmente não entendo como alguém que se diz cristão – seguidor do Cristo, aquele que dá a palavra aos sufocados – pode pedir intervenção militar e querer nos subtrair o resto de palavra a que temos direito. O silêncio opressor não combina com a fé genuinamente cristã, mas somente o silêncio orante daquele que se sabe libertado por Deus. Já fomos sufocados demais, na sociedade, no trabalho, no mundo econômico, nas assembleias religiosas. Cansamos de engolir a palavra não dita. Nada de intervenção militar ou coisa parecida! Queremos soltar a voz: “Quando eu soltar a minha voz, por favor entenda. Quando eu abrir a minha garganta, esteja certa que estarei vivendo!”...