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172. Gratidão

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20.02.2018 | 5 minutos de leitura
Frei Abdias Júnior OFMCap
Crônicas
172. Gratidão

“Não eram dez os que foram curados?

Onde estão os outros nove?” (Lc 17,17)


 

“A gratidão é uma flor roxa.”

(João Doerdelein)


 

O calendário da Igreja Católica, em novembro, marcou o encerramento de mais um ano litúrgico com a festa de Cristo-rei. Com o advento, começamos novo ciclo celebrativo e, pela fé, recomeçamos a vida a partir da encarnação, do mistério do Deus feito homem. O calendário civil, no dia 31 de dezembro, registrou o fechamento de mais um ano. Por todo canto se ouvia a conhecida canção “adeus ano velho, feliz ano novo”. Escutamos o estourar dos champanhes e vimos os fogos de artifício riscar os céus. As pessoas se abraçaram e fizeram propósitos de recomeços. Mas dizem que, no Brasil, a vida só começa mesmo depois do carnaval. Agora, comemorada a grande festa popular, é hora de retomar a vida com coragem e força. Não dá mais para adiar.


Para recomeçar bem, nada como um olhar retrospectivo. É importante rever o caminho trilhado, reconhecer os passos dados, perceber os esforços dispendidos e fazer um balanço da vida. O que ficou sem fechamento? Que sonhos foram realizados? Quem fez parte desse caminho e deixou nele suas marcas? É hora de agradecer a presença do outro e dizer obrigado, pois sozinhos teríamos feito o caminho com dificuldades bem maiores.  


A gratidão, como escreveu Doederlin, “é uma flor roxa” e só floresce no terreno dos corações singelos. Ela se compõe de duas pétalas entrelaçadas, ou seja, de um duplo movimento de reconhecimento. Reconhecimento de nós mesmos e do outro. Reconhecemos que somos frágeis, limitados e necessitados de cuidados. Um ser carente; é isso que somos. Na estrada da existência, somos todos crianças abandonadas. Estamos com frio, temos os descalços e calejados, estamos com a moleira quente de sol e sem um copo d’água ou uma sombra para nos refrescar. Somos um ser peregrino que não chega muito longe sem o afeto e o cuidado do outro.


No reconhecimento de nossas fragilidades, nossos olhos se abrem para o outro, para sua generosidade. Quem nos estendeu a mão e nos dispensou cuidados? Por que o fez? Estava obrigado a fazê-lo ou o fez por pura gratuidade? Começamos a notar que a amizade de uma pessoa, a palavra amiga de outra, o carinho de alguém, a coragem de um companheiro etc. fizeram toda diferença no percurso.


Realmente, não fomos feitos para a solidão, mas sim para a sociabilidade, para a convivência, para a solidariedade e a partilha. Graças à fraternidade, podemos ver o mundo e a vida para além de suas miudezas. Ampliamos nossos horizontes e enxergamos mais longe a partir do rosto do outro. José Maria Castilho, em seu livro A humanidade de Jesus, baseado em pesquisas científicas recentes, afirma que “não foi a inteligência tecnológica a causa do grande avanço do tamanho do cérebro. A causa que determinou o crescimento de nosso cérebro foi a inteligência social”. Segundo esse teólogo, a capacidade de cooperação e o interesse pelo bem-estar alheio estão intimamente relacionados com o salto quantitativo no cérebro dos primatas, que passou da média de 800 cm3 (Homo ergaster) para 1200 cm3 (nos exemplares descobertos em Sima de los Huesos). Não seria, pois, a capacidade de pensar, de fazer artefatos técnicos, que é genuinamente humano, mas a capacidade de amar e de cuidar do outro. Segundo Castilho, há provas suficientes para afirmarmos que, em Sima de los Huesos, essas pessoas com grandes cérebros cuidavam dos que padeciam limitações ou daquelas que não estavam devidamente capacitadas. Assim, amar e cuidar do outro amplia a inteligência ou é sinal de inteligência. E, cá entre nós, não é preciso muita pesquisa científica, mas apenas um pouco de observação e bom senso, para perceber que, por meio dos olhos do outro, um novo universo se descortina para nós. Nosso conhecimento se multiplica, pois vemos pelos olhos do outro. Na acolhida do outro, abre-se um universo sagrado, uma terra na qual nem podemos pisar calçados.


É bem verdade que nem sempre conseguimos ter acesso ao mais sagrado do outro. As relações ficam na superficialidade; nem sempre penetramos o sacrário de seu coração. Também o que há de mais santo e íntimo em nós não é dado a qualquer um; apenas a alguns poucos que caminharam lado a lado conosco, àqueles que se fizeram cúmplices de nossos sonhos e alimentaram nossas esperanças mais profundas. Mas, apesar de poucas, são essas cumplicidades que ressignificam a vida e fazem dos acontecimentos diários, tão ordinários e cotidianos, um evento a ser celebrado. São esses encontros gratuitos de amizade, como afirmou Neruda, que nos fazem perceber que “nós, os de então, já não somos os mesmos”. Quando isso acontece, resta-nos voltar para o outro e dizer “obrigado” e, com a força da gratidão, recomeçar a caminhada.