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17. Aprendendo catequese com o autor de Hebreus

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15.04.2015 | 26 minutos de leitura
Solange Maria do Carmo
Acadêmicos
17. Aprendendo catequese com o autor de Hebreus

Salta aos olhos o caráter cristológico de Hebreus. Uma catequese cristológica bem elaborada se delineia nesse escrito do começo ao fim. Seu autor, com maestria e elegância, traça um verdadeiro itinerário teológico-catequético, mostrando quem é Jesus. O autor oferece aos seus leitores a oportunidade de abraçar a fé, aceitando a salvação que só o Filho, único e sumo sacerdote (cf. Hb 8,1), oferece. Um verdadeiro mergulho no mistério pascal acontece quando se acolhe a chamada Carta aos Hebreus.


Tendo em mente uma catequese mistagógica e querigmática muito bem arquitetada, num diálogo franco com uma comunidade de origem judaica, o autor de Hebreus escava as raízes escriturísticas que alicerçam a fé de seu público e aponta as fragilidades desse arcabouço teológico. Para anunciar Jesus, sumo sacerdote e autor do único sacrifício aceito pelo Pai, o autor primeiramente mostra a caducidade dos tempos antigos: “Muitas vezes e de muitos modos, Deus falou outrora aos nossos pais” (Hb 1,1). E imediatamente prepara seu público para o novo teológico do qual ele é arauto, fazendo a passagem do outrora para a definitividade do hoje inaugurado em Cristo Jesus: “Nestes dias, que são os últimos, falou-nos por meio do Filho a quem constituiu herdeiro de todas as coisas e pelo qual também criou o universo” (Hb1,2). O outrora de Hb1,1 cede espaço aos dias que são os últimos, presente em Hb1,2.


Desde o começo de seu escrito, o autor do texto, cujo nome permanece incógnito, deixa clara a sua intenção: passar da palavra de Deus manifestada aos nossos pais na história de Israel à Palavra de Deus encarnada no Filho que se fez homem, “a quem Deus constituiu herdeiro de todas as coisas e pelo qual criou o universo” (Hb 1,2b). Torna-se sabido, pois, que a glória de Deus antes experimentada pelos pais e pelos profetas acaba elevada à máxima potência no Filho, “resplendor da glória do Pai e expressão do seu ser” (Hb 1,3).


O edifício teológico do texto de Hebreus é consistente e forte. Para edificá-lo foi preciso derrubar o antigo edifício, pois não há espaço na vida dos cristãos – mesmo que de origem judaica – para dois edifícios da fé. Ao longo do percurso, o autor mostra que os grandes símbolos da fé judaica – a Torá, o Templo e o Sacerdócio Levítico, com seus cultos, sacrifícios e rituais – são apenas prefiguração cristológica e que, por isso, cederam lugar a algo mais consistente e definitivo. A nova construção teológica de Hebreus não ignora a história e a catequese anterior. Ao contrário, mostra toda sua força e significação a partir de Cristo. Assim, o autor de Hebreus tece uma catequese totalmente nova, mas com bases na Escritura Sagrada, já bem conhecida de seu público cristão de origem judaica. Ele se aventura a buscar a significação mais profunda dos ritos e das instituições judaicas, fazendo intensa e original exegese de textos seletos do Antigo Testamento. A partir desse retorno escriturístico, fica revelada a caducidade desses símbolos, que se tornam aperfeiçoados somente em Cristo, o “aperfeiçoado de Deus” (Hb 2,10), cuja “vida foi levada à perfeição e por isso tornou-se causa de salvação eterna para todos os que lhe obedecem” (Hb 5,9).


Num contínuo jogo entre o outrora e o hoje, o autor de Hebreus põe na balança o antigo e o novo. É o característico método hermenêutico judaico, o derash[1], que, nas suas mais diversas modalidades, interpreta e atualiza as Escrituras Antigas, considerando-as como tradição viva e iluminadora do momento atual e dando espaço para Deus continuar falando ao longo da história. Dentro desse modelo, encontra-se o derash prefiguração/realização, que utiliza regra hermenêutica conhecida como Qal wa-chomer (literalmente, leve e pesado). Por meio dessa regra hermenêutica, fica revelada a leveza das antigas instituições. A Torá, o Templo e o Sacerdócio Levítico mostram sua inconsistência e incapacidade de salvar. Transparece o peso da realidade em Cristo e a densidade teológica de sua obra salvífica. Tudo que já houve ganha peso de palha diante do peso pesado da ação salvadora de Jesus, o sacerdote do Pai.


Delineia-se, assim, a catequese cristológica de Hebreus: “Tal é o sacerdote que temos, que se sentou à direita do trono da Majestade, nos céus. Ele é o ministro do Santuário e da Tenda verdadeira, erguida pelo Senhor e não por mão humana”. Há um sacerdote que os destinatários de Hebreus parecem desconhecer. Há um outro santuário ainda não frequentado por eles. Há uma liturgia que vem sendo celebrada, mas parece ser ainda ignorada. Mas uma coisa é certa: passaram os antigos ritos. Os antigos mediadores – Moisés (cf. Hb 3,1-6), Josué (cf. Hb 4,1-10), os anjos (cf. Hb 2,5-18), os sacerdotes levitas (cf. Hb 5,1-10; 7,1-28) – cederam lugar ao definitivo sacerdote. A Tenda do deserto, sombra ou cópia do Santuário Celeste (cf. Hb 8,1-6), fica obsoleta: o Filho, imagem do Pai, inaugurou a Tenda definitiva com sua entrada no céu (cf. Hb 9,11-12). Os sacrifícios e rituais perderam seu vigor, tiveram vencido seu prazo de validade. Já não têm mais eficácia! Quem tem a imagem verdadeira não precisa mais da sombra. O Filho ofereceu uma vez por todas o único e irrepetível sacrifício de sua vida aperfeiçoada pela obediência ao Pai. Um sacrifício de expiação eficaz foi apresentado ao Pai. O Yom Kippur[2] definitivo realizou-se no Céu (cf. Hb 9,24-28), eliminando toda possibilidade de expiação do pecado por meio de outra vítima, que não o Filho imolado na cruz.


Alimentada por tal catequese, a comunidade cristã ouvinte dessa belíssima homilia pascal[3] sente-se convidada a não se contentar com a periferia da fé. Tendo mergulhado no mistério de Cristo sacerdote eterno, faz a experiência da salvação e compartilha a dolorosa trajetória de Jesus de Nazaré por meio do martírio (cf. Hb 10,32-39). Mergulha no núcleo da fé recebida, transmitida pelos apóstolos, fé que não é confundida com mera emoção ou religiosidade, nem com a prática de rituais, mas que é entendida como “certeza daquilo que se espera” (Hb 11,1). A comunidade dos iluminados pelo batismo (cf. Hb 10,32) penetra na dinâmica da salvação, toma parte na grande procissão de fiéis que desde muito tempo caminha sustentada pela fé (cf. Hb 11,4-40): uma “nuvem de testemunhas” que deixa para trás o que a atrapalha de viver a vida nova em Cristo (cf. Hb 12,1-3), experimentando o amor fraterno no qual é chamada a perseverar (cf. Hb 13,1). Uma tarefa árdua e exigente: uma maratona que exige “correr com perseverança na competição proposta” (Hb 12,1b), sempre com os olhos fixos naquele que leva a fé à perfeição: Cristo Jesus (cf. Hb 12,2a). Há uma maratona a correr, uma olimpíada a disputar. E o desânimo é combatido quando a comunidade olha para a caminhada do próprio Jesus, que enfrentou tamanha oposição dos pecadores (cf. Hb 12,2b). A quem abraçou a fé, resta a perseverança no amor fraterno, que é marca registrada dos iluminados em Cristo (cf. Hb 13,1). Nada mais tem importância; nada mais interessa a não ser esse amor fraternal. Para que perder tempo com coisas inúteis? Afinal, “não temos aqui cidade permanente, mas estamos à procura da que há de vir” (Hb 13,14). Então, “por meio de Jesus, ofereçamos a Deus perene sacrifício de louvor, isto é, o fruto dos lábios que celebram seu nome” (Hb 13,15) com uma vida a ele agradável (cf. Hb 13,21b).


Impressiona-nos a habilidade do autor de Hebreus para, dentro do contexto judaico e a partir de categorias e modelos próprios do judaísmo, anunciar Jesus Cristo, único e eterno mediador junto do Pai. De forma narrativa, ele resgata as origens, percorre as experiências fundantes, retoma e atualiza as Escrituras. Vê em Jesus o cumprimento pleno de tudo que outrora esperaram os pais da fé. O texto faz progressiva caminhada: reforça os antigos valores, dando-lhes novo significado; constrói novos alicerces a partir da vida nova experienciada em Cristo, o único sacerdote do Pai.


O sacerdócio de Cristo em Hebreus encontra suas bases na figura de “Melquisedec, rei de Salém, sacerdote do Deus Altíssimo” (Hb 6,20). Figura enigmática, sem começo e sem fim, sem genealogia e sem destino (cf. Hb 7,3), Melquisedec desponta como aquele a quem Abraão, o pai da fé, entrega seu dízimo como gratidão a Deus por uma batalha vencida (cf. Gn 14,17-20). Pão e vinho[4] são entregues pelo Patriarca em louvor a Deus nas mãos de Melquisedec, muito antes que se pudesse pensar no sacerdócio levítico. Ora – pensa o genial autor de Hebreus – se Abraão, o pai da fé, entrega seu dízimo a essa figura desconhecida que o abençoa, certamente Melquisedec é maior que Abraão (cf. Hb 7,4-8). Afinal, é maior aquele que abençoa que aquele que é abençoado! Além disso, se ele recebe as ofertas, só pode ser sacerdote. Assim, conclui o autor de Hebreus, antes mesmo de Levi, há outro sacerdócio que não o tão conhecido sacerdócio dos levitas: um sacerdócio instituído não por mãos humanas, mas por Deus (cf. Hb 7,8-10), eterno e imutável; um sacerdócio cujo sacrifício não é feito no Templo de Jerusalém, mas no Santuário Celeste (cf. Hb 9,11-14); um sacerdócio que não oferece animais como vítimas, mas cuja vida vitimada é oferenda perfeita aos olhos do Pai, um sacerdócio de uma oferenda única e irrepetível: a vida na Cruz do homem Jesus que agrada a Deus e é por ele glorificada (cf. Hb 7,23-28; 9,24-28).


Os sacerdotes, que eram separados do povo para o serviço do altar (cf. Hb 5,1), agora já não têm mais função. O grande Separado – o Santo de Deus – se misturou entre os homens, se fez um com eles e igual a eles (cf. Hb 4,15) e ofertou sua vida em sacrifício. “Quando levou a termo sua vida, tornou-se causa de salvação eterna para todos os que lhe obedecem. De fato, ele foi proclamado sumo sacerdote segundo a ordem de Melquisedec” (Hb 5,9-10). O autor de Hebreus percebe a plenitude das promessas anteriores agora cumpridas em Cristo Jesus, que elimina de vez toda distância entre Deus e a humanidade. No homem Jesus, o Filho de Deus, a mediação definitiva acontece. Não há mais o véu que separava o lugar Santo do Santo dos Santos (cf. Hb 9,1-10). Ele foi eliminado a partir do momento em que, feito homem, Jesus, por sua morte, retorna ao Pai. Pela encarnação, a esfera divina e a esfera humana não se encontram mais distantes: há um ponto de interseção entre Deus e os homens, construída em Cristo, que faz a mediação definitiva junto do Pai a nosso favor. Por esse motivo, insistente convite interpela a todos: “Temos, pois, irmãos, a ousadia de entrar no Santuário, pelo sangue de Jesus, pelo caminho vivo e novo que ele inaugurou para nós, passando através da cortina, quer dizer, através de sua humanidade. Aproximemo-nos, portanto, de coração sincero e cheio de fé, com o coração purificado de toda má consciência e o corpo lavado com água pura” (Hb 10,19-22 ).


Ribomba como trovão o apelo do autor de Hebreus à comunidade judaica, saudosa do Templo, dos costumes, da tradição, dos rituais de outrora. Não há nada mais cristológico nem mais eficaz. Mesmo em tempos de crise e perseguição, o vigor da boa-nova anunciada pelos evangelistas não se arrefeceu; o evangelho anunciado pelos apóstolos não perdeu sua potencialidade; ao contrário, a Palavra de Deus que se fez carne em Cristo e tem sua plenitude nele encontra acolhida no coração dos fiéis sedentos de Deus.


Impressiona-nos a atualidade do texto de Hebreus. Nesses tempos de Pós-modernidade, a Igreja do Brasil[5] e do mundo, preocupada com a fragilidade da fé dos iluminados pelo batismo, volta seus olhos para a necessidade de concentrar sua força evangelizadora na centralidade da fé: Cristo Jesus, Palavra do Pai, único mediador entre Deus e os homens, cujo sacerdócio, exercido uma vez por todas, introduziu a humanidade na glória definitiva de Deus. O Documento de Aparecida não cessa de afirmar que “a natureza do cristianismo consiste em reconhecer a presença de Jesus Cristo e segui-lo” (DA, 244).


Num mundo tão secularizado e ao mesmo tempo com experiências religiosas tão múltiplas, partir do pressuposto de que o católico já fez sua experiência de Deus e já conhece Jesus Cristo é no mínimo arriscado, se não ingênuo. A evangelização é atualmente desafiada a desenvolver um trabalho de revelação mais que um trabalho de explicação e de expressão de uma fé já vivida. A tomada de consciência da virada epocal nos anima a propor a passagem de um modelo de catequese, que mantém e garante a fé – por meio de uma pastoral de manutenção – como disse o Documento de Aparecida –, a uma catequese que favoreça o encontro com Jesus Cristo e promova a descoberta da singularidade cristã, fazendo dessa experiência uma mediação fecunda para a busca da identidade do sujeito contemporâneo.


Assim, percebe-se que a evangelização para ser eficaz hoje deve ter uma orientação resolutamente querigmática, iniciática, que favorece a experiência fundante da fé. O catequeta frances, Denis Villepelet[6] nos lembra que o desafio do evangelizador hoje não é tanto o de ajudar o povo a ligar a vida e a fé, como se a fé já fosse um pressuposto, um dado concreto inquestionável, presente na vida dos frequentadores das comunidades cristãs. Seu desafio atual parece ser o de ajudar sua gente a se apropriar desse ato de fé e de assimilar suas verdadeiras repercussões para a vida. A experiência da fé não é algo tão evidente assim. Deus é um Deus totalmente outro, um mistério inacessível e incompreensível que ultrapassa infinitamente o homem e que se encontra inevitavelmente escondido. Se ao ser humano é dado o privilégio de conhecê-lo é porque esse Deus escondido se comunica em seu Filho para bem da humanidade e de cada um de nós. Ao assumir sua tarefa, o evangelizador contemporâneo precisa se lembrar de que o único caminho possível do homem para Deus é o caminho que Deus mesmo fez até o homem e que se chama Jesus Cristo. Ter fé é se confiar a esse Deus de amor revelado em Jesus Cristo, sem o qual ele ficaria totalmente outro. Ajudar o povo a fazer essa experiência do Deus totalmente Outro mas totalmente próximo e presente em nossa história desponta como missão primeira da catequese hoje[7]. A fé cristã não sobrevive mais nas atuais circunstâncias se não for assumida como uma convicção pessoal e livre. A fé herdada de nossos pais já não garante mais a nossa fé. Antes de ser transmissão, a fé é proposta que deve ser livremente assumida ou rejeitada. Uma convicção de fundo atormenta os evangelizadores: a necessidade de passar “da herança à proposição”, pois homens e mulheres deste novo tempo chamado Pós-modernidade não conhecem Jesus Cristo, não experimentam mais a eficácia dessa boa notícia. Então, o que fazer?


Ecoam por todos os cantos vozes imperiosas que percebem essa urgência cristológica.


A Igreja do Brasil, desconfiada de que o pressuposto da cristandade falseia o trabalho catequético, corajosamente afirma que é preciso evangelizar os catequizandos e não apenas burilar a fé gestada no seio familiar. Finalmente a Igreja do Brasil percebe que hoje não se respira mais aquele ar sagrado e sacralizante de tempos anteriores e admite que o catequizando que se tem diante dos olhos não é mais alguém com fé, com experiência de Deus, pronto para receber apenas um acabamento doutrinário, que servia de preparação para os sacramentos da iniciação. O DNC esclarece: “A finalidade da catequese é aprofundar o primeiro anúncio do Evangelho: levar o catequizando a conhecer, acolher, celebrar e vivenciar o mistério de Deus, manifestado em Jesus cristo, que nos revela o Pai e nos envia o Espírito santo” (DNC, 43). E mais: entende que “a evangelização é uma realidade rica, complexa dinâmica, que compreende momentos diferentes entre si” (DNC, 33), sendo seu primeiro momento o anúncio de Jesus Cristo por meio do querigma[8].


Os bispos franceses falam de “voltar ao coração da fé”[9], para passar “da herança à proposição da fé”[10]. Conhecedora da realidade da secularização e percebendo que a Cristandade tornou-se página virada, a Igreja francesa deseja anunciar o Cristo vivo e, sabiamente, os cristãos franceses realçam o caráter da adesão livre e pessoal da fé. Insistem, pois, na urgência de recuperar a força transformadora da fé, da boa-nova cristã, que não perdeu seu vigor, nem caducou: Cristo Jesus está vivo e continua interpelando ao seguimento.


O Episcopado de Quebec[11] fala de ir “do rio à fonte”, de retornar à fonte, relativizando as doutrinas transmitidas tradicionalmente para se fazer a experiência de Cristo Jesus, fonte de toda vida, de “conduzir-se para além das crenças [...], de se esforçar para revelar a experiência espiritual que nasce da vida, que surpreende, que faz entrever o essencial, que desperta, que põe a caminho, que faz viver”. Ventos fortes sopram na direção de resgatar a experiência pessoal com o Ressuscitado, perdida no marasmo da vida cristã tradicional.


O texto belga[12], dando centralidade à mensagem do amor como coração da mensagem cristã, sugere retomar “a mensagem única, o único querigma: Deus, em Cristo, ama até o fim e salva nosso mundo”, uma notícia tão simples e tão elementar, mas ainda não divulgada e acolhida pelos próprios cristãos.


A Igreja da Itália[13], em inspiração que vai no mesmo sentido, insiste na iniciação cristã e na importância do primeiro anúncio.


Os alemães[14] falam de “Elementarisierung”[15], de uma concentração no nó cristológico que permite responder às demandas que interpelam a identidade cristã hoje em dia. Em meio a tanta preocupação com doutrinas e ritos, com intelectualismos e moralismos, a Igreja percebe que a fé quase se perdeu no caminho: foi dissipada como pó ao vento. É preciso agregar de novo os esforços; concentrar-se no núcleo duro da fé, no seu nó fundamental: o evento Cristo.


Convidando a essa conversão cristológica, a reflexão catequética atual corrige a tendência unilateral de alguns movimentos catequéticos pós-conciliares que colocaram o acento sobre o caráter central da experiência humana na caminhada da fé, como se fosse possível se chegar à fé unicamente fazendo uma reflexão mais profunda acerca dos mistérios. Um esforço que merece reconhecimento e cujos efeitos ainda hoje são sentidos na catequese. Uma virada copernicana se deu, passando de uma realidade totalmente teocêntrica para um antropocentrismo teológico. A renovação catequética trouxe a superação do período catequístico, que fazia uso dos catecismos e dava importância à memorização das fórmulas. Na América Latina, então, nem se fala! Uma leitura criteriosa do evento Vaticano II, motivada pelas Conferências Episcopais, deu amplo espaço à renovação catequética, que ganhou vida e tomou corpo no Brasil com o documento Catequese Renovada da CNBB, em 1983[16].


Uma revolução catequética começava a despontar: novo modelo teológico, com vertente mais antropológica, ocupava o lugar cativo da teologia descendente. A pedagogia do ensino – entendendo o destinatário da catequese como uma tabula rasa – abria espaço para a pedagogia da aprendizagem, alicerçada em Piaget ou no brasileiríssimo pedagogo dos pobres, Paulo Freire. Uma visão muito otimista da humanidade! Uma catequese que se propõe a revelar aos catequizandos o que eles têm neles, mesmo sem o saber, fazendo uma conexão entre fé e vida. Uma pedagogia muito indutiva: o encontro com Deus realizado a partir da vida, da experiência concreta à luz da Palavra da Escritura[17]. E quanta conquista se deu: quantos desafios enfrentados com sucesso, quanta encarnação especialmente na realidade latino-americana que só podia desembocar em avanços.


Acontece, porém, que a fé não é conclusão lógica de uma meditação sobre o sentido da existência ou sobre o mistério da realidade, como disseram com propriedade os bispos da Bélgica. A fé é adesão a Jesus Cristo e sua proposta do Reino, é amor incondicional a ele, como ele nos amou. A reflexão acerca da realidade certamente ajuda a perceber onde está o xis da questão: o que distancia nossa vida do projeto de Deus para a humanidade, o Reino anunciado e realizado por Jesus. Mas a vida compreende tramas muito mais complexas e exigentes que uma transformação social poderia provocar, mesmo que provocada por motivações evangélicas.


Diversos outros documentos elaboram a mesma performance. A lógica do processo de fé inclui necessariamente a experiência da salvação, realizada em Cristo Jesus, único sacerdote e mediador. Essa experiência se apresenta como exigência intrínseca da novidade da fé. E, como consequência, a quem já experimentou a vida de fé, advém o desejo de compreender e de aprofundar os mistérios cristãos. A experiência do Nazareno morto e ressuscitado, que entra no Santuário celeste para fazer o único e definitivo sacrifício, reclama a inteligência da fé, em função do mergulho no mistério que ela realiza (mistagogia). O que não elimina, é claro, a tarefa do ensinamento e da aprendizagem, uma vez que estes têm dimensão didática. Assim, a catequese prioriza o conhecimento de Cristo, e não de uma doutrina ou até mesmo da mensagem cristã[18], cuja acolhida não vem pela cognição, mas pela adesão que passa pela via do coração.


O autor de Hebreus parecia vislumbrar os tempos atuais. Não poucos batizados têm abandonado o mistério no qual foram inseridos para pertencer a grupos misteriosos. Sedentos de Deus e sem saber onde o encontrar, cristãos trocam o mistério pelo misterioso. Risco que os destinatários de Hebreus também corriam, abandonando a liturgia definitiva realizada em Cristo para voltar à liturgia judaica, cuja validade já tinha passado e cujo lugar do culto – o Templo – já tinha até sido destruído.


A homilia destinada aos cristãos de origem hebraica fala hoje ao coração humano, sedento da experiência da salvação que só o Filho oferece. Em meio a tantos mediadores apresentados aos fiéis católicos, urge tecer uma cristologia mais consistente na catequese. É só abrir alguns manuais de catequese e logo saltará aos olhos a dispersão da fé. É só participar de uma liturgia católica e se verá a dificuldade para celebrar o mistério salvífico. É só visitar um santuário, uma catedral, uma igrejinha qualquer: o altar, qual carro alegórico, carrega uma multiplicidade de enfeites que não revelam mais a centralidade de Cristo. Maria, cuja piedade marca os fiéis católicos, é apresentada como medianeira de todas as graças e como mediadora dos bens celestiais, em vez de seu Filho que deu a vida pela humanidade. Os santos, amplamente conhecidos pela piedade popular católica, ofuscam a centralidade de Cristo, sendo cultuados por si mesmos e não por Cristo que os santificou. Os anjos, em meio à mística pós-moderna que revive o ressurgimento do sagrado e seus representantes, ofuscam o papel do Filho, pois eles enfrentam a luta contra o mal e protegem o fiel. Devoções cada vez mais extravagantes acerca dos anjos crescem e se proliferam no meio católico. E mais: os presbíteros, com seu ministério ordenado, reclamam para si o sacerdócio, entendendo a mediação litúrgica como algo que só eles podem realizar, esquecendo-se que são apenas partícipes do único sacerdócio real, o de Cristo Jesus.


Não seria demais dizer que a catequese feita pela Carta aos Hebreus seria oportuna para nossa Igreja. Até seu método (Qal wa-chomer) continua atual. Ao mostrar a relatividade e a leveza de todos os signos sagrados dos judeus – respeitando o que o povo já conhece, já experimenta e já conserva em seu imaginário religioso –, o autor anuncia a boa-nova: a densidade e o peso da obra de Cristo, único mediador do Pai.


O texto de Hebreus apresenta-se, portanto, como uma grande catequese: eficaz, profunda, teológica, espiritual, encarnada. Conserva três características fundamentais da catequese que hoje a Igreja procura resgatar: o caráter iniciático, mistagógico e narrativo da fé.


O caráter iniciático se faz presente, pois apresenta Jesus como o Filho que revela o Pai e, por meio do Espírito, realiza a obra de salvação definitiva (o querigma). A vida, morte e ressurreição de Cristo é o nó fundamental dessa bela homilia. Não se parte de conjecturas, nem de vãs elucubrações. Parte-se da vida concreta de Cristo, por meio do qual Deus agora fala ao mundo: aquele que é a Palavra de Deus.


O traço mistagógico, tão relevante, introduz os ouvintes no mistério da salvação por meio de uma catequese experiencial e cuja pedagogia ultrapassa o ensino-aprendizagem. Já mergulhados em Cristo, os iluminados pelo batismo dão passos significativos para sair da sombra e chegar à luz do conhecimento de Deus. Pouco a pouco, cada mistério é vivenciado, sentido, percebido. Cada realidade nova em Cristo é vivida como ação salvífica exclusivamente dele e não de outro mediador: nem de Moisés, nem de Josué, nem dos anjos, nem dos sacerdotes... O cristão se vê abarcado pelo mistério da salvação que o Filho realiza em seu favor.


O tom narrativo da fé se conserva. O autor parte da vida concreta do homem de Nazaré, aperfeiçoado pela obediência, vendo nas Escrituras Antigas a Palavra viva de Deus que ganha cumprimento no Filho. Passeando pelos relatos, ensinamentos e rituais antigos, o escritor faz um verdadeiro derash; uma hermenêutica ampla, aberta, histórica. Tudo o que aconteceu até aqui é apenas tipo do que se realiza em Cristo. Só nele tudo é definitivo.


Assim, a catequese de Hebreus é respeitosa (parte da realidade hebraica de seus ouvintes), sem deixar de ser atrevida (lança seus interlocutores para além do lugar onde se encontram); é querigmática (apresenta Jesus de Nazaré como Filho de Deus vindo ao mundo), sem deixar de ser profunda (apresenta algo que é teológico, dito como difícil de ser compreendido – cf. Hb 5,11-14). Um belo modelo de catequese para os dias de hoje.


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[1] Sobre o derash bíblico, cf. AGUA PEREZ, Augustín del. El método midrásico y la exégesis del Nuevo Testamento. Valencia: Institución San Jerónimo, 1985.


[2] Literalmente, Dia da Expiação. Cf. ANDRADE, Aíla Pinheiro. Sombra e realidade: um estudo de Hb 10 à luz da “perfeição” de Cristo. Revista Bíblica Brasileira, Fortaleza, v. 21, n. 4, p. 100-104, 2004. Sobre a celebração do Yom Kippur, cf. AVRIL, Anne-Catherine; DE LA MAISONNEUVE, Dominique. As festas judaicas. São Paulo: Paulus, 1997. p. 123-138.


[3] Pensa-se que a conhecida Carta aos Hebreus, originalmente, tenha sido uma homilia proferida na ocasião da Páscoa. Mais tarde, um redator, acrescentando os versículos finais (13,22-25), remete-a à comunidade de destino com esse bilhetinho anexo. Cf. VANHOYE, Albert. La question littérarie de Hébreux 13,1-6. New Testament Studies, n. 23, p. 121-139, 1976.


[4] O mais antigo sacrifício, chamado Zevah, consistia numa refeição ritual onde aquele que oferece o sacrifício e o Deus a quem ele é oferecido comem juntos. Alimentos cotidianos eram usados neste ritual, dentre eles pão e vinho. Cf. ANDRADE, Aíla Pinheiro. À maneira de Melquisedec: o messias segundo o judaísmo e os desafios da cristologia no contexto neotestamentário e hoje. Belo Horizonte, FAJE, 2008. p. 167. Tese de doutorado.


[5] Cf. CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Diretório Nacional da Catequese. São Paulo: Paulinas, 2006.


[6] VILLEPELET, Denis. O futuro da catequese. São Paulo : Paulinas, 2007, p. 42-43.


[7] Idem.


[8] Apesar de o DNC falar de três momentos da evangelização: o anúncio de Jesus Cristo (querigma), a catequese (continuidade do anúncio) e a ação pastoral (formação continuada), é bom lembrar que esses momentos não são etapas estanques. Não se afirma com isso uma diferença entre catequese e evangelização, dizendo que evangelização é um processo mais querigmático, o primeiro anúncio da fé para pessoas que não fizeram ainda a experiência de Deus, e que catequese seria mais doutrinária, significando o aprofundamento do primeiro anúncio. Como se a Igreja precisasse primeiro evangelizar para depois catequizar. Sabe-se que a própria catequese é querigmática, apresentando seus conteúdos de modo a aprofundar não um conhecimento, mas uma experiência de Deus. E que todo anúncio querigmático é também catequético, pois não é possível anunciar nenhum Jesus Cristo se não de forma situada, na fé tematizada da Igreja a qual se pertence. Esses três momentos são diferenciados de forma didática, mas não cronológica, o que seria impraticável. O querigma é dito como primeiro anúncio não no sentido cronológico, mas como fundante da fé, como algo que sustenta e perpassa todo o caminho da evangelização.


[9] COMMISSION ÉPISCOPALE DE LA CATÉCHÈSE DU CATÉCHUMÉNAT. Aller ao coeur de la foi. Questions d’avenir pour la catéchèse. Paris: Boyard/cerf/ Fleurus-Mame, 2003.


[10] LES ÉVÊQUES DE FRANCE. Proposer la foi dans société actualle: Lettre aux catholiques de France. Paris: CERF, 1997.


[11] ASSEMBLÉE DES ÉVÊQUES DU QUÉBEC. Proposer aujourd’hui la foi aux jeunes, une force pour vivre. Montréal: Fidel, 2000.


[12] Devenir adulte dans la foi. La catéchèse dans la vie de l’Eglise. Bruxelles: Licap, 2006.


[13] CEI. Comunicare il Vangelo in un mondo che cambia. Orientamenti pastorali dell’episcopato italiano per il primo decennio del 2000. Leumann (Torino): Elledici, 2001.


[14] DIE DEUTSCHEN BISCHOFE. Katechese in veranderter Zeit. Bonn: Sekretariat der Deutschen Bischofskonferenz, 2004.


[15] Que literalmente significa “ato de tornar elementar”.


[16] Cf. CNBB. Catequese Renovada: orientações e conteúdo. Documento 26. São Paulo: Paulinas, 1983.


[17] Cf. VILLEPELET, Deschristianisation , p. 370.


[18] Se essa é entendida como conjunto de ensinamentos evangélicos.