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167. Reflexão para o 14º Domingo do Tempo Comum - Mt 11, 25-30 (Ano A)

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04.07.2020 | 10 minutos de leitura
Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues
Evangelho Dominical
167. Reflexão para o 14º Domingo do Tempo Comum - Mt 11, 25-30 (Ano A)

Neste décimo quarto domingo do tempo comum, a liturgia retoma a leitura sequenciada do Evangelho segundo Mateus, interrompida de novo no domingo passado, por ocasião da solenidade dos santos apóstolos Pedro e Paulo. O trecho lido hoje – Mt 11,25-30 – faz parte da seção narrativa intermediária entre o discurso missionário (Mt 10) e o discurso em parábolas (Mt 13). Como já afirmamos em outras ocasiões, a alternância entre discurso e narrativa é uma característica literária marcante do Evangelho segundo Mateus. A recordação dessa dinâmica é importante para a compreensão da obra em seu conjunto, bem como de cada texto lido separadamente, como o de hoje, por exemplo.


No discurso missionário (Mt 10), Jesus preparou seus discípulos e os enviou em missão para ajudar a sanar a situação de abandono e exploração em que se encontravam as multidões (Mt 9,36–10ss). Diz o evangelista que, após instruir os discípulos para a missão, também Jesus saiu para ensinar e pregar nas cidades da Galileia (Mt 11,1). De fato, sempre que Jesus conclui um discurso, Mateus o mostra tomando iniciativas, agindo concretamente em favor da libertação do povo sofrido. Isso serve de advertência para a comunidade cristã de todos os tempos: os discursos só têm sentido se forem acompanhados de ações e gestos concretos. A maneira como Jesus conciliava discurso e práxis é o parâmetro para a comunidade.


Embora o evangelista não fale nada sobre o retorno dos discípulos e o resultado da missão deles e do próprio Jesus, tudo indica que não foram bem-sucedidos. O contexto e as entrelinhas dão a entender que houve rejeição e hostilidades. Inclusive, o própria João Batista, já preso, desconfiou da autenticidade do ministério de Jesus, a ponto de enviar seus discípulos para tirar algumas dúvidas, afinal, o comportamento de Jesus não correspondia às suas expectativas (Mt 11,2-19). Ora, João tinha anunciado um messias juiz e vingador, alguém que vinha ao mundo para premiar os bons e condenar os pecadores (Mt 3,7-12), enquanto Jesus se misturava com os pecadores, bebendo e comendo com eles (Mt 11,18).


Além das dúvidas de João, o evangelista registra o desgosto de Jesus com as cidades que Ele escolheu como primeiras destinatárias da sua missão: “Então começou a recriminar as cidades onde tinha realizado a maioria dos seus milagres, porque elas não tinham se convertido” (cf. Mt 11,20-24). Essas cidades eram Corazim, Betsaida e Cafarnaum, escolhidas a dedo para o anúncio da chegada do Reino dos céus. Com a sua reputação posta em dúvidas pelo seu próprio mentor, João Batista, e a rejeição de seus compatriotas galileus, Jesus tinha tudo para decretar a falência do seu projeto. Porém, fez exatamente o contrário: louvou ao Pai por tudo o que estava acontecendo. É esse o contexto do Evangelho de hoje.


Feita a devida contextualização, voltamos nossa atenção para o texto de hoje, que apresenta a resposta de Jesus a tudo isso que acabamos de recordar: “Naquele tempo, Jesus pôs-se a dizer: ‘Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos, e as revelastes aos pequeninos” (v. 25). A primeira observação importante que fazemos diz respeito à expressão “Naquele tempo” que, dessa vez, faz parte mesmo do texto bíblico, e tem uma importância relevante. Como a liturgia praticamente banalizou essa expressão, colocando-a sempre como fórmula de introdução ao Evangelho, corremos o risco de não perceber seu real significado no texto de hoje. Ora, ao precisar temporalmente o episódio, “Naquele tempo” (em grego: έν έκείνω τω καιρω – En ekeíno tô kairô), o evangelista relaciona diretamente o texto com os acontecimentos anteriormente narrados. O que Jesus está para dizer é reação ou resposta aos últimos acontecimentos.


E a reação de Jesus não foi o desespero e nem o desânimo, mas uma oração de louvor e ação de graças ao Pai. Ao invés de sentir-se falido em suas pretensões, diante das rejeições sofridas e desconfiança do seu mestre, João Batista, Jesus sente-se realizado porque, de fato, os propósitos de Deus, o Pai, começam a concretizar-se: o mundo novo só pode ser construído com a adesão dos pequeninos (em grego: νηπίοις – nepióis), o que significa também inocentes, indefesos, humildes e pobres. É a síntese dos verdadeiros necessitados de vida nova e libertação. O Reino dos céus, que implica no desmoronamento dos sistemas de poder vigentes, por isso é ameaça para os ricos e poderosos, os detentores de poder político e religioso, só tem sentido e só é possível se o programa de vida de Jesus for abraçado. Esse programa consiste na vivência das bem-aventuranças” (Mt 5,1-12). Os pequeninos que estão conhecendo “estas coisas” são: os pobres, os mansos, os aflitos, os famintos e sedentos de justiça, os misericordiosos, os puros de coração, os promotores da paz e os perseguidos, ou seja, os bem-aventurados. Essas pessoas, sim, percebem em Jesus o advento de um novo mundo, um novo tempo.


Quanto aos “sábios e entendidos”, para eles os valores do Reino permanecem ocultos devido à soberba, orgulho, avareza, legalismo e uso da força e da violência, tanto física quanto simbólica, incluindo os sistemas religiosos que se impõem pelo medo. Esses são os dirigentes, a elite política e religiosa, principalmente. São aqueles que não tem coragem de tornar-se pequenos e, por isso, não entrarão no Reino dos céus (Mt 18,3). Quem assume o poder como meio de dominação, seja econômica, política ou ideológica, tende a rejeitar um projeto de sociedade justa, igualitária e fraterna, como é o Reino dos céus. Não resta dúvida de que a crítica de Jesus aqui se aplica mais ao campo religioso: os “sábios e entendidos” que não conhecem “as coisas do Pai” são os representantes oficiais da doutrina e da Lei – escribas, mestres da Lei, sacerdotes e fariseus – aqueles que passam a vida impondo normas e vigiando quem está cumprindo ou não. Esses, como representantes de um Deus juiz, severo e vingativo, não estão aptos a aceitar os propósitos de um Deus-Pai, o Deus de Jesus, que nada impõe, mas apenas oferece amor.


Diante disso, Jesus não se desespera, mas expressa mais uma vez a sua convicção de que os desígnios de Deus, o Pai, estão acontecendo: “Sim, Pai, porque assim foi do teu agrado” (v. 26). O rechaço à vontade de Deus por quem deveria abraçá-la primeiro, os conhecedores da Lei, já era previsto, por mais paradoxal que pareça. E a comunhão íntima de Jesus com o Pai lhe permitia conhecer os seus desígnios. Ninguém pode conhecer o Pai e seus propósitos a partir de códigos e doutrinas, mas somente amando e sentindo-se amado, fazendo-se pequeno para sentir a grandeza do amor de Deus. E Jesus fala do seu Deus-Pai com propriedade porque é o Filho. Por isso, pode dizer convictamente: “Tudo me foi entregue por meu Pai, e ninguém conhece o Filho, senão o Pai, e ninguém conhece o Pai, senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar” (v. 27). Essa declaração reforça a intimidade de Jesus com o Pai e ao mesmo tempo denuncia a ilegitimidade da religião vivida pelos considerados grandes da sua época, os fariseus, mestres da lei e sacerdotes. Aquela religião não tinha legitimidade porque anunciava sem conhecer, pois, se baseava em códigos legais e doutrinas e, assim, ao invés de revelar, escondia o rosto do verdadeiro Deus.


Os pequeninos podem conhecer o que Jesus revela – o amor do Pai – porque não é fruto de especulações, mas de uma relação íntima entre um Pai e um Filho que se amam reciprocamente. Jesus não propõe uma teoria, mas o resultado de uma experiência de amor; por isso, é compreensível pelos pequeninos, os seus prediletos. Ainda a respeito dessa declaração que fala claramente da relação Pai-Filho, convém recordar a novidade que ela representa aqui, pois se trata de uma linguagem muito característica das tradições ligadas ao Evangelho de João. Por isso, é muito significativa a sua presença nesse texto, exatamente quando Jesus expressa a sua satisfação em ver os pequeninos compreendendo a dinâmica do Reino. Esses pequeninos são aquelas mesmas multidões cansadas e abatidas, que provocaram a compaixão em Jesus, porque estavam como ovelhas que não têm pastor, ou seja, estavam abandonadas e exploradas, sobretudo pelas lideranças religiosas da época (Mt 9,36).


Inconformado com o abandono do povo e a exploração da qual era vítima, especialmente pelo peso da Lei, Jesus faz um solene e ousado convite: “Vinde a mim todos vós que estais cansados e fatigados sob o peso dos vossos fardos, e eu vos darei descanso” (v. 28). A ousadia de Jesus aqui consiste em convidar à ruptura com todos os sistemas de opressão, que negam liberdade e vida plena. E era exatamente a religião quem mais deixava o povo cansado e fatigado, impondo fardos que nem mesmo os chefes religiosos conseguiam carregar (Mt 23,4). Além da opressão do império romano, com a cobrança excessiva de impostos, o povo ainda era submetido à coerção de uma religião vazia e hipócrita. Daí o convite de Jesus para a verdadeira libertação: “Vinde a mim... e eu vos darei descanso”. É claro que o descanso que Jesus promete não é uma vida cômoda e fácil, mas sim uma vida livre das imposições Lei e do peso da doutrina. Em outras palavras, esse descanso é a liberdade e a capacidade de amar e sentir-se amado; é sinal de realização do Reino dos céus e da vocação originária do ser humano, pois evoca a perfeição e a completude de uma obra boa, como a criação (cf. Gn 2,2).


E o convite é ampliado: “Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração, e vós encontrareis descanso” (v. 29). Tomar o jugo de Jesus é trocar a observância rígida da Lei pela prática das bem-aventuranças. É preciso aprender de Jesus porque somente Ele, como Filho, pode revelar plenamente o rosto amoroso do Pai, e somente fazendo uma experiência profunda de amor-comunhão, é possível libertar-se do jugo imposto pelos guardiões da lei e da doutrina. Se as bem-aventuranças em si resumem o perfil de Jesus, as suas duas características que Ele cita aqui constituem uma boa síntese da sua pessoa: manso e humilde de coração. É importante ressaltar que a mansidão vivida por Jesus não pode ser confundida com resignação, nem comodismo. Pelo contrário, essa consiste na coragem de lutar pelo Reino mesmo na adversidade, sem, no entanto, recorrer aos mecanismos do opressor, como a violência e o ódio.


Ao contrário do peso das prescrições legais impostas pela religião do seu tempo, Jesus dá uma garantia aos seus seguidores: “O meu jugo é suave e o meu fardo é leve” (v. 30). É claro que ele não está prometendo facilidades na vida para aqueles que abraçarem o seu projeto. O seu fardo consiste exatamente na vivência das bem-aventuranças, o que implica em muitas dificuldades e desafios. Inclusive, o principal critério para reconhecer se alguém está vivendo as bem-aventuranças é exatamente a perseguição (Mt 5,11-12). A proposta de Jesus é suave e leve porque não consiste em regras a cumprir, mas em um amor a ser experimentado.