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163. Egoísmo

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19.12.2017 | 6 minutos de leitura
Solange Maria do Carmo
Crônicas
163. Egoísmo

“Ai dos que se deitam em cama de marfim,
bebem canecões de vinho

e usam os mais caros perfumes,
indiferentes ao sofrimento de José” (Mq 6,4-6).


 

“Mas o Brasil vai ficar rico

Vamos faturar um milhão

Quando vendermos todas as almas

Dos nossos índios num leilão”

(Legião Urbana)



Meu pai era um homem pobre e simples, sem nenhum estudo, mas era pessoa de rara sabedoria, daquela que se aprende não com os livros ou a pesquisa, mas com os amigos e a vida, como disse Cora Coralina. Acho até que ele era da mesma têmpera que Cora. Sem chances para desenvolver seus dons, fez milagres com os talentos que lhe foram entregues. O velho matuto amava ditos populares e elegia algumas expressões como forma de ensinar os filhos. Por meio delas, ele nos iniciava nos mistérios da vida.


Dentre suas expressões favoritas, estava a que intitula essa crônica: “Põe entre o meio das pernas”. A expressão pode não ser bela e dar margens para mentes poluídas – ou as mais pudicas? – pensarem obscenidades. Apesar de nada ter a ver com a intuição inicial, a expressão de fato fala de obscenidades. A obscenidade da avareza e do desejo de tudo possuir; a obscenidade de reter para si, sem se lembrar do necessitado. Certamente, não pode haver obscenidade maior do que essa e nenhum outro pecado pode superar em gravidade a falta de fraternidade.


Na minha casa materna, essa expressão se tornou comum. Casa cheia, muitos filhos, família pobre, bens escassos. Não éramos pobres de passar fome, mas de passar vergonha e vontade, isso sim! Criança é bicho esfomeado quando é pobre. As riquinhas não; essas fazem luxo, precisam ser aduladas para comer e desprezam o pão da mesa. Mas, na casa de pobre, não tem isso não. O que vier a gente traça. A fome é sempre maior que o paladar seletivo.


Quando, em ocasião especial, alguma iguaria aparecia na mesa, tipo arroz doce, mingau de milho verde, canjica, pastéis com guaraná no Natal ou até um belo cacho de banana madurinha colhida no quintal, a gente costumava ir com muita vontade na comida, exagerando na dose servida, sem pensar nos que ainda estavam por se servir. Meu pai imediatamente dizia: “Põe entre o meio das pernas”. Imediatamente a mensagem era captada. No desejo de nos fartar, havíamos esquecido que havia mais gente para comer. Bastava essa expressão pra gente saber que não podia agir com falta de educação e avançar nas panelas. Era preciso saber dividir o dom do alimento com equidade. Por menor que fosse a quantidade, todos deviam comer um pouquinho. Com generosidade, cada qual poderia se deliciar um pouco com os bens que estavam à disposição.


Em tempos de tantos absurdos, quando leiloam nosso país às multinacionais perdoando as grandes empresas de gigantescos impostos, fico pensando que meu pai deveria ter sido presidente do Brasil. Certamente, ele governaria nossa nação bem melhor que o impostor que usurpou o poder por meio de um golpe e colocou nossas riquezas “entre o meio das pernas” de alguns poucos, privando os pobres de comer, de cuidar da saúde, de ter acesso à educação etc.


Não fosse a gravidade do momento vivido, a gente riria do que está acontecendo. Mas tal é a tragicidade do acontecido que não há espaço para piadas, nem para charges, nem material para os humoristas – que têm se mostrado bem mais sérios que os políticos e os líderes religiosos – fazerem suas pataquadas. Só a tragédia grega daria conta de exprimir a gravidade da dor de nossa gente. Crianças morrendo de fome; pais e mães desempregados; jovens sem oportunidade de trabalho; famílias inteiras se abrigando no colo da mãe-rua... Tudo isso porque os famigerados políticos, na calada da mídia populista, votam leis que retiram os direitos dos trabalhadores, adiam ad eternum a aposentadoria, fazem reforma da previdência, isentam a s grandes empresas de trilhões de impostos... Colocaram o Brasil “entre o meio das pernas” de uns poucos. Estes se fartam até ter ânsia de vômito do não-sentido, mas não admitem repartir com a população os bens que o país na sua prodigalidade dispensa a todos. Brasil, um país de poucos, bem pouquinhos mesmo! A maioria que se dane, que se lasque!...


Não sou do tipo que acha que a justiça divina virá e fará correções na história, que nossa pasmaceira política não fez. Nem sou do tipo que transfere a justiça para a vida pós-morte. Mas não posso deixar de escutar os ecos da palavra dita por Tiago: “Vós, os ricos chorai e gemei por causa das desgraças que estão para cair sobre vós. Vossa riqueza está apodrecendo e as vossas roupas estão carcomidas pelas traças. Vosso ouro e vossa prata estão enferrujando e vão depor contra vós” (Tg 5,1-3). Não entendo tal invectiva como ameaça aos malfeitores ou como promessa de punição. A teologia da retribuição (ou da prosperidade) já mostrou sua caducidade. Tem muita gente ruim se dando bem; tem muita gente boa se dando mal. É só olhar nossa gente inocente sofrendo, morrendo à míngua, sem remédios e sem alimentos, ou olhar a impunidade dos corruptos, que continuam viajando em seus iates e dando festas de milhões em seus palácios. Mas estou certa: tanta maldade não passará ilesa. O ser humano não foi criado à imagem do diabo ou capeta, como dizem por aí. Aquele que foi criado à imagem do Deus-amor não achará a paz mais plena, nem viverá o gozo maior senão na partilha e na generosidade. Sou totalmente a favor de punições severas para os corruptos, e todo desvio de dinheiro público deve ser considerado crime hediondo, pois mata milhões de inocentes. Para além de toda punição prevista pela legislação, se é que ela um dia será implantada, o verme do não-sentido corroerá as consciências dos que põem o país “entre o meio das pernas” e o ranger de dentes se fará ouvir no íntimo dos que se fartam sem repartir os bens que são de todos. Essa gente está condenada por si mesma à solidão e ao isolamento. Todo dinheiro não consegue comprar amor, apesar de comprar muitos bens; não é capaz de comprar presença, apesar de comprar companhia; não é capaz de comprar consolo, apesar de comprar drogas; não é capaz de comprar felicidade, apesar de comprar muitos antidepressivos.  


Na próxima eleição, não fosse meu pai já ter morrido para não morrer de desgosto com essa gente traiçoeira, ele seria meu candidato à presidência. Algum pai de família razoável se habilita?