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14. Coração indiviso e confiante (Mt 6,19-34)

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13.11.2014 | 14 minutos de leitura
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Curso Bíblico
14. Coração indiviso e confiante (Mt 6,19-34)

6


19“Não ajunteis tesouros aqui na terra, onde a traça e a ferrugem destroem e os ladrões assaltam e roubam.
20Ao contrário, ajuntai para vós tesouros no céu, onde a traça e a ferrugem não destroem, nem os ladrões assaltam e roubam.
21Pois onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu coração.
22A lâmpada do corpo é o olho: se teu olho for simples, ficarás todo cheio de luz.
23Mas se teu olho for ruim, ficarás todo em trevas. Se, pois, a luz em ti é trevas, quão grandes serão as trevas!
24Ninguém pode servir a dois senhores: ou vai odiar o primeiro e amar o outro, ou aderir ao primeiro e desprezar o outro. Não podeis servir a Deus e ao Dinheiro!
25“Por isso, eu vos digo: não vivais preocupados com o que comer ou beber, quanto à vossa vida; nem com o que vestir, quanto ao vosso corpo. Afinal, a vida não é mais que o alimento, e o corpo, mais que a roupa?
26Olhai os pássaros do céu: não semeiam, não colhem, nem guardam em celeiros. No entanto, o vosso Pai celeste os alimenta. Será que vós não valeis mais do que eles?
27Quem de vós pode, com sua preocupação, acrescentar um só dia à duração de sua vida? 28E por que ficar tão preocupados com a roupa? Olhai como crescem os lírios do campo. Não trabalham, nem fiam.
29No entanto, eu vos digo, nem Salomão, em toda a sua glória, jamais se vestiu como um só dentre eles.
30Ora, se Deus veste assim a erva do campo, que hoje está aí e amanhã é lançada ao forno,
não fará ele muito mais por vós, gente fraca de fé?
31Portanto, não vivais preocupados, dizendo: ‘Que vamos comer? Que vamos beber? Como nos vamos vestir?’
32Os pagãos é que vivem procurando todas essas coisas. Vosso Pai que está nos céus sabe que precisais de tudo isso.
33Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas vos serão dadas por acréscimo.
34Portanto, não vos preocupeis com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã terá sua própria
preocupação! A cada dia basta o seu mal.

Situando


O espírito das bem-aventuranças (cf. Mt 5,1-12), que abrem o Sermão da Montanha, bem como o Pai-nosso (cf. Mt 6,9-15), que transforma esse espírito em oração, são a fogueira em cujo calor e luz deve ser lida a presente perícope de Mt. Mediante imagens diversas, o Mestre Jesus ensina qual é a atitude a ser assumida pelos discípulos, com relação às riquezas e ao sustento quotidiano. Não aconteça que, embotados pelo que é secundário, acabem se esquecendo do que é principal, isto é, o Reino e a sua justiça (cf. Mt 6,33).


Dois tesouros


Três fórmulas antitéticas, primorosamente elaboradas e reunidas numa só perícope, lembram ao discípulo as radicais exigências do Reino e o confrontam com as ambiguidades do próprio seguimento. A presente instrução também é testemunhada por Lucas, que, diferente de Mateus, a conserva de maneira esparsa e em outro contexto (cf. Lc 12,33-34; 11,34-36; 6,24).


A primeira antítese contrapõe os tesouros da terra aos tesouros do céu (v. 19-20). Os da terra são transitórios, fugazes e sujeitos a todo tipo de contingência. A perfeita alegria, isto é, a genuína bem-aventurança, não reside neles porque, se a traça e a ferrugem os destruírem, ou se forem roubados por assaltantes, o coração afeiçoado a tais tesouros se perderá com eles (v. 19 – estudo 11). Disso não se segue, entretanto, o desprezo dos bens terrenos, uma vez que tudo tem sido criado, por pura graça do Pai, para o sustento da vida. Mas ninguém se iluda, buscando a alegria e a paz duradouras, que só Deus pode dar, na sedução de uma riqueza perecível ou de uma glória que se esvai. O movimento profético já tinha advertido contra o brilho caduco e fugaz da riqueza: “Onde estão os que acumulavam tesouros de prata e de ouro – nessas coisas confiam os homens – e cujas riquezas não tinham limite? Desapareceram, caíram na fossa dos mortos, e outros surgiram em seu lugar” (Br 3,18a.19).


Ao contrário, o discípulo há de ajuntar tesouros no céu, onde a traça e a ferrugem não corroem, nem os ladrões podem roubar (v. 20). Mas que tesouro é esse? A imagem do tesouro celestial não era alheia à literatura veterotestamentária, que concebia os dons divinos como um acúmulo de riquezas, que o Altíssimo distribuía abundantemente entre os homens que se ajustam a seus preceitos (cf. Dt 28,1-14). Um acúmulo de maldições, entretanto, era prometido a quem, recusando-se a obedecer à voz do Senhor, resista às suas leis e aos seus decretos (cf. Dt. 28,15-68). Mas como interpretar o ensinamento do Mestre? Trata-se, por acaso, de acumularmos méritos no “banco do céu”, para sermos retribuídos segundo o balanço final? Mais do que duvidoso, uma vez que a gratuidade do amor de Deus é a chave de leitura do Primeiro Evangelho. Afinal de contas – insiste Mateus – o Pai é como aquele patrão que retribui os trabalhadores da última hora para além de todo merecimento, de modo que, quem começou a trabalhar ao por do sol, recebe o mesmo salário que quem entrou no serviço ao despontar a aurora (cf. Mt 20,1-15). Ou, melhor ainda, Deus não retribui nada a ninguém; ele se dá a si mesmo por puro amor, sem limites e sem esperar nada em troca. Ajuntar tesouros nos céus significa, pois, referenciar a própria existência a Deus, porque ele e somente ele é a nossa prata, o nosso ouro, o nosso tesouro. Disso se trata, em definitiva, a sexta bem-aventurança: “Felizes os puros no coração, porque verão a Deus” (Mt 5,8). Só Deus é o seu tesouro.


Às duas sentenças precedentes, acrescenta-se uma terceira, a modo de conclusão: “Pois onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu coração” (v. 21). Por “coração” deve entender-se não apenas um órgão, mas o homem todo, enquanto ser que deseja, almeja, decide e age em consequência. Não há, no ditado, nem reprimenda, nem crítica, nem juízo de valor, senão apenas uma simples constatação, a saber: cada homem escolhe e possui um tesouro, que ocupa, domina e orienta integramente o seu coração. Isso é um fato que Mateus não discute. O decisivo é que o homem só pode possuir um único tesouro, sem poder dividir-se entre dois. Compreende-se melhor, assim, a radicalidade exigida, tanto na antiga quanto na nova Torah, pelo primeiro dos mandamentos: “Amarás o SENHOR teu Deus com todo o teu coração...” (Mt 22,37 – cf. Dt 6,5).


Dois olhos


Uma enigmática metáfora constitui o núcleo do segundo binômio antitético: “se teu olho for límpido... se teu olho for ruim...” (v. 22-23). Mateus imagina o corpo como uma habitação, cuja lâmpada, quer dizer, cuja fonte de luz são os olhos da cara (v. 22a). O termo “corpo” (em grego, soma), por sua vez, não deve ser entendido como uma parte do ser humano, uma vez que a antropologia judaica, que molda o pensamento bíblico, não admite o “desmembramento” do homem em partes, senão que o concebe como uma unidade. O evangelista não está falando, pois, do corpo “material”, distinto, oposto ou separado da alma “imaterial” (em grego, psyke) – como entendia a filosofia grega –, mas do homem todo e em todas as suas dimensões. Ora, a missão do olho, que consiste em enxergar a realidade para que o homem possa discernir, depende, em última instância, de sua boa ou má saúde. Pois se o olho for límpido, ficará cheio de luz (v. 22b); mas se for ruim, grandes serão as trevas (v. 23). De fato, o olho límpido, ou seja, puro, simples, franco e obediente, discerne os tesouros dos céus, para que o coração, assim, possa apreciá-los e ser possuído por estes. Ao contrário, o olho ruim, isto é, enfermo, débil e malicioso, não permite enxergar o brilho dos tesouros celestes, fazendo como que o coração se incline por tesouros de pouco valor. A luminosidade ou a escuridão do olho apontam, em definitiva, para a capacidade de discernir, apreciar e aderir ao único tesouro definitivo: o Reino e a sua justiça.


Dois senhores


A terceira e última antítese chama a atenção sobre a impossibilidade de servir a dois senhores (v. 24a), porque, “ou vai odiar o primeiro e amar o outro, ou aderir ao primeiro e desprezar o outro” (v. 24b). Mateus se vale da figura do escravo, uma vez que este não podia, senão, pertencer a um único senhor, cujos interesses devia cuidar de modo exclusivo e excludente. A contraposição “amar... odiar” – convém aclarar – não deve ser entendida em sentido literal, pois se trata de um semitismo, cujo significado é “amar mais... amar menos” e não propriamente odiar. O Mestre – está-nos dizendo Mateus – pede do discípulo uma adesão completa e uma dedicação incondicional. A pertença ao Reino exclui, portanto, a possibilidade de uma dupla e ambígua pertença. Pois, assim como o coração não pode dividir-se entre dois tesouros, nem o servo pode atender os interesses de dois patrões, assim também o cidadão do Reino só pode servir a um único Senhor. Por isso – conclui Jesus – “não podeis servir a Deus e ao Dinheiro”, ou, literalmente, “a Mâmon” (v. 24c). Este último termo, que só aparece aqui e no Evangelho de Lucas (cf. Lc 16,9.11.13), designa a riqueza personificada e feita ídolo, à qual o avarento entrega seu coração. Para a comunidade mateana, o sentido da metáfora era evidente, uma vez que nela ressoa, de novo, o primeiro dos mandamentos mosaicos: Ouve, Israel! O SENHOR nosso Deus é o único SENHOR...” (Dt 6,4).


Confiados no Pai


Tendo advertido aos discípulos do perigo de um coração apegado a tesouros vãos, imerso nas trevas de um olho enfermo e desintegrado pela tola tentativa de servir a mais de um senhor, o Mestre previne contra outro perigo, tão sério e atual quanto o anterior. Que perigo pode ser tão grave assim? O de cairmos no desespero, preocupados com o que comer ou beber, “quanto à vida”; ou com o que vestir, “quanto ao corpo”; ou melhor, com todas aquelas coisas que precisamos para subsistir (v. 25a). O termo “corpo” – insistimos – designa o homem todo, necessitado de alimento, de bebida e de vestido. Porque o dom da vida, afinal, vale mais que a comida e a bebida; e o corpo, isto é, o ser humano inteiro, vale mais que um agasalho (v. 25b). Ou, em outras palavras, se Deus dá “o mais”, que é o precioso dom da existência, dará também “o menos”, que é o necessário para o sustento.


O Mestre, então, dirige o olhar para os pássaros do céu, que nem semeiam, nem colhem, nem amontoam em celeiros. E, no entanto, nada lhes falta, porque o Pai providencia tudo que precisam para viver (v. 26a). De novo, o mesmo argumento: “o menos” inclui “o mais”. Ou seja, se Deus cuida dos pássaros, que valem menos, o que não fará por vocês, que valem muito mais? (v, 26b). À vista desse corriqueiro espetáculo, o discípulo é levado à reflexão: “Quem de vós pode, com sua preocupação, acrescentar um só dia à duração da sua vida?” (v. 27). Isto é, de que adianta agitar-se e perder a calma? Pois a ansiedade – sabemos por experiência – é sempre estéril e, ao invés de fortalecer-nos, consome a energia, compromete a saúde e entristece o coração. Em seguida, o olhar se volta para a terra, onde os lírios do campo, que não trabalham, nem fiam, deslumbram, contudo, com sua graça e perfeição. Por que preocupar-se, então, pela roupa (v. 28), se nem Salomão, no ápice do seu fausto e esplendor, vestiu com tanta beleza? (v. 29 – 1Rs 10,25). Valemos mais do que as florzinhas da roça, que hoje estão aí e amanhã são queimadas! Por que, então, nos custa tanto confiar? Jesus dá a resposta: “...sois fracos na fé” (v. 30).


Os pagãos, ou seja, aqueles que não conhecem o Pai, é que vivem em função da comida, da bebida e do abrigo, tremendo pelo que virá. Mas o Pai, “que está nos céus”, conhece as nossas necessidades e, por isso, não devemos nos inquietar (v. 31-32). Aliás, como o Mestre já ensinou, “o vosso Pai sabe o que precisais, antes de vós o pedirdes” (Mt 6,8). Quer dizer, só às pessoas que não conhecem o Pai é permitido angustiar-se pelo sustento. Só a quem pensa ter sido lançado, sem rumo certo, na existência, como os dados são lançados, aleatoriamente, numa mesa de cassino, é permitido agitar-se assim, mas não ao discípulo, que conhece o Pai. Conforme já foi dito, a expressão “no céu” não designa o lugar onde mora Deus – pois ele habita no coração do homem e se faz presente em toda parte –, senão que se trata de um semitismo, cujo único propósito é garantir a transcendência do Criador.


Dito isso, o Mestre oferece seu tesouro ao coração desordenado; retifica o foco do olho nubloso; propõe o único senhorio que vale a pena: “Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas vos serão dadas por acréscimo” (v. 33 – cf. estudo 5). Não é por acaso que, na oração do Pai-nosso, o pedido do Reino (cf. Mt 6,10) vem antes que a súplica pelo pão quotidiano (cf. Mt 6,11)... O discípulo deve, portanto, empenhar-se em fazer a vontade do Pai; o resto lhe será concedido. Por motivos que desconhecemos, desta vez, Mateus não utiliza a fórmula “Reino do céu”, como é costumeiro nele, mas “Reino de Deus”. Só duas vezes, de resto, aparece em Mt esta última expressão (cf. Mt 12,28 – cf. estudo 8).


A esta altura, muitos se perguntarão, não sem certo nervosismo: Mas, então, para que acordar, tão cedo, cada manhã; para que tomar, todos os dias, um ônibus abarrotado; para que aguentar, de segunda à sexta, os desaforos de um chefe mal-humorado? Para que se Deus dá tudo por acréscimo? E, se Deus cuida do homem mais que dos pássaros do céu e que dos lírios do campo, por que, então, tanta miséria na terra? Ninguém se engane, pois o Pai não dispensa ninguém da peleja quotidiana... De fato, se os passarinhos dos céus são postos como exemplo, não é, certamente, porque não trabalham, mas porque também eles tecem seus ninhos, cuidam dos seus filhotes e procuram o alimento sem cair no desespero. E o mesmo vale para a erva do campo, que amanhã será queimada e, mesmo assim, conserva a calma. Finalmente, Deus não dispensa ninguém de ser solidário, nem de trabalhar por uma sociedade mais igualitária, onde a ninguém falte o que comer, o que beber, o que vestir...


Compreende-se melhor, assim, a exortação final de Jesus: “Portanto, não vos preocupeis com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã terá a sua própria preocupação! A cada dia basta seu mal!” (v. 34). Não nos adiantemos, então, ao que ainda não chegou, mas enfrentemos os desafios da vida um por um, dia por dia. Lembremos, de resto, que a força e o amor do Pai, que são nosso maior sustento, nunca nos faltarão.


* * *


É bom perguntar-se, de vez em quando: Qual é o meu tesouro? Como estou enxergando? Quem é o meu senhor? Porque se o nosso tesouro não vale a pena, se os nossos olhos não enxergam bem ou se servimos a um mau patrão, então, nos cansamos inutilmente. Para que isso não suceda, busquemos confiantes o Reino de Deus... E, enquanto buscamos, permitamo-nos descansar nos braços paternos de Deus...







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