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124. Reflexão para o 22º domingo do Tempo Comum - Lc 14, 1.7-14 (Ano C)

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31.08.2019 | 9 minutos de leitura
Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues
Evangelho Dominical
124. Reflexão para o 22º domingo do Tempo Comum - Lc 14, 1.7-14 (Ano C)

A liturgia deste vigésimo segundo domingo do tempo comum continua a nos situar no contexto do longo caminho de Jesus, acompanhado de seus discípulos e discípulas, em direção à cidade de Jerusalém, onde consumará a sua missão com a paixão, morte e ressurreição. Como temos insistido ao longo dos últimos domingos, esse caminho é um itinerário catequético e uma metáfora da vida da comunidade cristã e do discipulado, sobretudo; é uma criação de Lucas, que selecionou os mais importantes ensinamentos de Jesus e distribuiu-os nesta longa seção narrativa (cf. Lc 9 – 19). Por isso, não consiste apenas no ato de caminhar, mas no ensinamento dos valores do Reino de Deus, sendo que Jesus é o próprio Reino em pessoa, de modo que tais valores se manifestam na sua maneira de agir diante das mais diversas situações. Enquanto caminhava, Jesus se servia dos fatos do cotidiano para instruir o povo e formar seus discípulos e discípulas.


O trecho escolhido para a liturgia de hoje – Lc 14,1.7-14 – apresenta Jesus numa refeição festiva do sábado, na casa de um fariseu. A refeição, para todas as culturas antigas, possuía um valor sagrado; na cultura judaica era, acima de tudo, um momento de memória e rendimento de graças a Deus por suas obras em favor de Israel, ao longo da história. No mundo greco-romano, que Lucas conhecia tão bem, a refeição era também ocasião de ensino e aprendizado, através dos diálogos travados entre os comensais, de modo que o banquete se tornou um elemento importante para a filosofia grega, considerado, inclusive, um gênero literário próprio. Neste texto, Lucas procura sintetizar as duas perspectivas. Por sinal, é exatamente Lucas o evangelista que mais apresenta Jesus sendo convidado e aceitando convites para participar de refeições, utilizando, assim, o banquete como ocasião de ensinamento (cf. Lc 5,29-39; 7,36-50; 11,37-54; 19,5-6), além das refeições pascais de antes e depois da ressurreição (cf. Lc 22,14-23; 24,41-43). Das refeições de Jesus que Lucas descreve, três foram em casa de fariseus (cf. Lc 7,36ss; 11,37ss; 14,1ss), sendo a de hoje a última. Por sinal, sempre havia conflito quando Jesus comia na casa de um fariseu.


Eis o texto: “Aconteceu que, num dia de sábado, Jesus foi comer na casa de um dos chefes dos fariseus. E eles o observavam” (v. 1). Nos dias de sábado, após o culto matinal da sinagoga, as famílias almoçavam festivamente; a comida tinha sido preparada na véspera, a sexta-feira, o “dia da preparação”, como eles chamavam, uma vez que nenhum trabalho poderia ser feito no sábado, dia de culto e repouso. Nos povoados, os judeus mais influentes costumavam oferecer verdadeiros banquetes, convidando com frequência o pregador daquele dia na sinagoga, de modo que o almoço fosse uma extensão do culto. Assim, à mesa se discutia o assunto da pregação, tirando as dúvidas suscitadas. Isso nos faz supor que, naquele sábado, Jesus pregou na sinagoga do lugar por onde passava e, após o culto, recebeu o convite para uma refeição na casa de um chefe dos fariseus, alguém importante do lugar. Como a fama de Jesus já tinha se espalhado bastante, os primeiros interessados em conferir o teor de sua mensagem eram os fariseus, como guardiães da sã doutrina na época. Ao dizer que “observavam” Jesus, o evangelista denuncia qual era a intenção deles com o convite: observar cuidadosamente seus gestos e palavras para o acusarem de blasfemo e transgressor da Lei de Deus, uma vez que a interpretação de Jesus geralmente trazia elementos novos que eles não aceitavam.


Podemos dizer que havia uma dupla malícia: os fariseus convidavam Jesus para observá-lo e depois acusá-lo, e Jesus aceitava tais convites para desmascará-los, muito mais que para desfrutar da fartura do banquete, como evidencia o próprio texto: “Jesus notou como os convidados escolhiam os primeiros lugares. Então, contou-lhes uma parábola:” (v. 7). Com base em suas observações, Jesus faz sérias advertências, tanto aos convidados, quanto ao anfitrião, especificamente sobre a humildade (vv. 8-11) e a generosidade-gratuidade (vv. 12-14). Destas advertências a pessoas específicas, os fariseus, surge um ensinamento universal, direcionado inicialmente aos discípulos de primeira hora, mas estendido aos cristãos de todos os tempos: o cultivo da humildade e da gratuidade nas relações, ou seja, um estilo de vida baseado em novos critérios, em discordância com os valores defendidos pelas tradições ultrapassadas e excludentes do judaísmo da época.


Ao advertir os convidados (vv. 8-11), Jesus recorre à tradição sapiencial e constrói uma pequena parábola, baseada em uma citação do livros dos Provérbios: “Não te vanglories na frente do rei, nem ocupes o lugar dos grandes; pois é melhor que te digam: ‘Sobe aqui!’ do que seres humilhado na frente de um nobre” (Pr 25,6-7). Ora, tendo notado que os convidados escolhiam os primeiros lugares, foi muito oportuna a chamada de atenção. A princípio, parece um convite à esperteza: como lograr de sucesso na frente dos demais ao ser promovido, passando do último para o primeiro lugar (v. 10). Era essa a mentalidade do autor sapiencial. Mas, Jesus usou o texto de Provérbios apenas como ilustração. O que, de fato, Ele quer apresentar é a dinâmica do Reino de Deus e, ao mesmo tempo, prevenir seus discípulos para não imitarem o comportamento dos fariseus. Por isso mesmo, Ele continuará essa observação em outras ocasiões: na parábola do fariseu e o publicano (cf. Lc 18,9-14) e, já em Jerusalém, no discurso contra os escribas (cf. Lc 20,45-47). Portanto, o contexto é o da formação dos discípulos. Ora, a busca pelos primeiros lugares, característica do grupo dos fariseus, não pode fazer parte do discipulado de Jesus. A atitude do cristão deve ser sempre a do serviço, e quem serve não pensa nos lugares de honra, mas nas necessidades do próximo. Certamente, esse texto reflete também a preocupação de Lucas com a tendência hierarquizante nas suas comunidades. O banquete dos fariseus é, aqui, apresentado como o anti-modelo do banquete cristão, o qual deve prefigurar o banquete do Reino. Assim, renunciar aos lugares de destaque é, mais que humildade, um gesto de amor. É dar espaço para o outro, optando por uma modelo de sociedade alternativa, renunciando a qualquer indício de concorrência e egoísmo. É uma atitude inclusiva, como será desenvolvido na sequência do texto.


A segunda advertência completa a primeira: “E disse também a quem o tinha convidado: “Quando tu deres um almoço ou um jantar, não convides teus amigos, nem teus irmãos, nem teus parentes, nem teus vizinhos ricos. Pois estes poderiam também convidar-te e isto já seria a tua recompensa. Pelo contrário, quando deres uma festa, convida os pobres, os aleijados, os coxos, os cegos” (vv. 12-13). Ora, tendo antes “observado como os convidados escolhiam os primeiros lugares” (v. 7a), Ele percebeu também as características destes convidados, e os critérios usados pelo dono da casa para convidá-los. Estava muito clara a lógica da retribuição naquele ambiente. Aqui, Ele retoma o discurso das bem-aventuranças: “fazei o bem e emprestai sem esperar nada em troca” (cf. Lc 6,35). Esse conselho dado ao dono da casa é completamente contrário aos costumes da época. Trata-se de algo revolucionário. O convite à generosidade e gratuidade nas relações é, aqui, apenas um dos ricos significados desse trecho. Fazer o bem sem esperar recompensa é, de fato, uma atitude necessária para a comunidade dos discípulos.


Há um forte apelo a uma revolução social, ao conceber as novas relações, e um convite para uma luta da qual nenhum cristão pode fugir: a superação de todas as formas de exclusão e marginalização. Ele observou, naquele ambiente, quatro categorias de convidados: “amigos, irmãos, parentes e vizinhos ricos” (v. 12), e todas com capacidade de retribuir. Para reverter essa situação, Ele propõe outros critérios, sendo o primeiro a impossibilidade de retribuição. Por isso, sugere também quatro categorias: “os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos” (v. 13). É aqui onde se encontra a máxima da novidade de Jesus neste episódio. Ora, é inegável que a religião dos judeus pregava uma atenção especial aos pobres, juntamente com os órfãos e as viúvas, sobretudo nos livros proféticos; mas a prioridade aos “aleijados, coxos e cegos” é uma exclusividade de Jesus; essa atenção é fruto do seu amor infinito pelos últimos. Inclusive, de acordo com a Lei, quem fosse portador de qualquer deficiência física, incluindo “cegos, coxos e aleijados”, não podia sequer entrar no templo (cf. Lv 21,18-20), enquanto Jesus diz que eles devem ser os convidados principais do banquete.


Para aquele fariseu e seus convidados, o que Jesus disse foi apenas uma sugestão. Para os cristãos, isso é compromisso e exigência: não há vida cristã sem luta pela inclusão e pela superação de todas as formas de discriminação e preconceitos. É interessante observar a fórmula “quatro por quatro”: tirar os privilégios de quatro grupos específicos, e incluir quatro grupos que representam todas as categorias de excluídos, inclusive da vida religiosa, uma vez que os aleijados, os coxos e os cegos nem entrar no templo podiam. Assim, o projeto do Reino, anunciado no Evangelho de Lucas, logo no cântico de Maria, prevendo a ascensão dos humildes e a queda dos poderosos (cf. Lc 1,52), vai ficando cada vez mais claro. Não podemos deixar de perceber aqui uma antecipação da Eucaristia e seu sentido mais profundo: banquete para todos, motivado por amor-doação, sem exclusão alguma.


Na conclusão, Jesus proclama uma bem-aventurança destinada a quem aceitar o seu projeto de inversão de ordem nas estruturas e nos costumes exclusivistas, conservados pela religião e a sociedade da época: “Então, tu serás feliz! Porque eles não te podem retribuir. Tu receberás a recompensa na ressurreição dos justos” (v. 14). É feliz quem assimila a lógica do Reino. A única recompensa para quem acolhe os mais necessitados, e excluídos em geral, é a certeza do amor de Deus em demasia. A expressão “ressurreição dos justos”, aqui, não é uma definição doutrinal, mas significa uma relação tão íntima com Deus que nem a morte consegue interromper. E, aquilo que garante essa relação é o amor e a solicitude para com os mais necessitados.