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110. O que se é

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31.10.2016 | 5 minutos de leitura
Solange Maria do Carmo
Crônicas
110. O que se é

“Que ninguém faça de si uma ideia muito elevada,

mas tenha de si
uma justa estima de acordo com o bom senso e a medida da fé” (Rm 12,3)



“Isso de querer ser
exatamente aquilo
que a gente é
ainda vai
nos levar além"

(Paulo Leminsk)



Se tem algo que normalmente nos deixa enojado é ter que tolerar gente arrogante, narcísica, cujo centro do mundo é ela mesma. Difícil de aguentar. Os narcísicos – coitados! – são intoleráveis. São sempre o centro do mundo e não veem nada além de si mesmos. Tudo gira em torno deles; todos devem viver para bajulá-los pois a imagem que têm de si mesmos é tão perfeita que ninguém pode arranhá-la. Ai Deus! Isso cansa!


Tenho presenciado cenas que fazem pensar: uma senhora xinga e destrata a funcionária de um estacionamento de shopping por causa de centavos – na opinião dela – cobrados indevidamente; um professor menospreza os alunos, reafirma seus limites intelectuais e os faz se sentirem um lixo; uma mãe agride verbalmente uma criança em público afirmando que ela é burra e feia… Fico me perguntando se só eles são bons, se só eles não erram, se só eles são inteligentes e capazes…Impossível ver uma coisa dessas e não pensar que são narcísicos, aquele tipo de gente que tem de si uma ideia bem elevada e – consequentemente –, dos outros, uma imagem sempre pequenina.


Paulo, na Carta aos Romanos, advertia os cristãos da comunidade da capital do Império que cultivassem a modéstia. Sabe como é: gente da capital, nobreza da corte começando a se interessar pela fé cristã, pessoas privilegiadas diante dos coitados dos Cafundós do Judas por onde Paulo andava evangelizando. Quanto mais avantajadas as oportunidades, maior a possibilidade de a pessoa esquecer-se do barro de que é feita.  Reconhecer-se vaso de argila, sempre susceptível a trincas, rachaduras e até ao rompimento mais radical pode ser um caminho para evitar a arrogância. “Que ninguém faça de si uma ideia muito elevada, mas tenha de si uma justa estima de acordo com o bom senso e a medida da fé” (Rm 12,3), recomendava o Apóstolo de Tarso.


Hoje em dia, temos escutado falar a todo instante sobre a tal autoestima (com “u” porque é estima de si mesmo e não estima elevada; por isso podemos ter autoestima baixa – quando a gente não se valoriza – ou autoestima alta – quando a gente está de bem com a vida, com a gente e com as nossas próprias misérias).


Apesar da multiplicidade de manuais de autoajuda, a estima de si continua em baixa em alguns. Não basta ter manuais para que ela se eleve. O problema é muito maior. A imagem desses é sempre distorcida. A pessoa está magra de doer, mas – lá no espelho – vê uma baleia. Os cabelos estão lindos, mas vê um ninho de guacho. Ela é inteligente e capaz, mas só vê seus limites e impossibilidades… Haja amigos, amores, família, terapias, tratamentos para curar isso! Há uma infinidade de recursos destinados a esse fim e também há pessoas que nos amam e que podem nos ajudar na cura do coração com sua presença benfazeja. Sempre vale a pena lançar não desses recursos para buscar a cura e corrigir essa distorção.


O contrário também não é infrequente. Em outros, a estima de si é sempre tão super elevada que a pessoa não se enxerga. Enxerga seu superego. Só ela é bacana, capaz, inteligente, perfeita, santa… No fundo, deve ser insegurança e necessidade de se afirmar. Para esses, até a fé cristã, instrumento de aceitação de si e compreensão dos próprios limites, fica instrumentalizada em função de justificar e esconder suas neuroses. Até a santidade, caminho para os pobres pecadores, vira pódio no qual se sobe para exibir a coroa da glória. Caetano Veloso tem razão: “Narciso acha feio o que não é espelho”. Para esses, até Deus está a seu serviço, e a Palavra de Deus, que deveria revelar quem somos, torna-se espelho distorcido que reafirma sua imagem. Coisa triste!


Querer ser o que a gente não é, além de ser patético, pode ser perigoso. A gente pode pensar que é um verme enquanto é gente como qualquer outro. Ou pode pensar que é um pássaro e querer voar; pensar que é um semideus e “dar com os burros n’água”, como diziam os antigos. Parafraseando Leminsk, “isso de querer ser o que a gente não é ainda vai nos levar bem aquém de nós mesmos”. Se a autenticidade leva mais longe, pois dá asas para voar, o narcisismo quebra as asas e inibe toda possibilidade de liberdade.


O problema é que ser escravo da própria imagem é coisa tão sutil que passa despercebida aos nossos olhos. Daí a importância do outro. Podemos nos equivocar quanto à nossa imagem, podemos nos enganar, mas isso não passa despercebido aos olhos dos outros. Se nós não temos a justa medida acerca de nós mesmos, para os outros essa medida é bem clara. Na maioria das vezes, os outros nos veem bem melhor. Veem de todos os lados, de todos os ângulos, enquanto nós só nos vemos em parte – e para ver um pouquinho mais precisamos de espelho, mas este só fornece nossa imagem invertida e não o que realmente somos. Até nisso, a fraternidade, a comunhão, a vida entre irmãos é salvífica. Salva-nos não só do egoísmo, da maldade, impondo-nos a tarefa do perdão, da partilha etc.; salva-nos de nós mesmos. No rosto outro, diria Levinas, podemos nos ver. E, na acolhida dele e no esquecimento de nós mesmos, ensinou-nos o Mestre de Nazaré, podemos ir bem mais além. Ainda bem que não vivemos sozinhos!